Na sua extensa bibliografia, Romeu Correia, autor que cultivou o conto, a biografia, o romance e o teatro, não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça constituída por um prólogo e duas partes, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que, ao longo dos tempos, se tem prestado a ser personagem de inúmeras ficções, de biografias e de outros textos dramáticos – lembro, de repente, obras mais recentes, na área do teatro, como Bocage, de José Sinde Filipe (Lisboa: Prelo, 1974), Bocage, Ele Mesmo!, de Fernando Cardoso (Lisboa: Portugalmundo, 1999) e Bocage e as ninfas, de Fernando Gomes (produção do Teatro Animação de Setúbal, em 2005, sem texto publicado).
A obra de Romeu Correia, aparecida quando passava o segundo centenário sobre o nascimento de Bocage, mantém ainda hoje um vigor moderno, seja pela leitura que apresenta da obra e do percurso bocagiano, seja pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, seja pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.
Se, como subtítulo, Bocage foi apresentado como uma “crónica dramática e grotesca”, não foi para facilitar o entendimento ou a leitura, antes terá sido para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. Na verdade, a anteceder a lista de personagens que entram em cena, a abrir a obra, ficou a observação: “Esta é a crónica dramática e grotesca de uma época, centralizada na figura singular do poeta maldito que foi Bocage. Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”
A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta, e conclui com a morte do mesmo Bocage, associada a uma encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”
Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.
O que vai zelando pela (boa) memória de Bocage é a presença em cena de uma figura como a de José Pedro. No início da peça, em tempo localizado na Lisboa de meados do século XIX, é ele quem se insurge contra o Bocage das anedotas e das pilhérias – “Não dêem ouvidos! É falso! Tudo o que dizem do sr. Manuel Maria são mentiras! As anedotas, as indecências… são quase todas inventadas!...” Esta indignação vivida em palco acentua a reacção ao anúncio de um cego que apregoava “as anedotas do Bocage… e mais versos deste grande brejeiro!...” No final, é o mesmo José Pedro quem anda a vender os versos de Bocage para o ajudar, apregoando os folhetos, num paralelo (de sinal contrário) com o cego do início da história: “Para o grande poeta Bocage! Ajudem o grande Bocage! (…) Socorram Bocage! Bocage está muito mal!... Os últimos versos do grande poeta Bocage!...”
A intenção desta peça passa, pois, por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior – “Os mecenas matam a fome aos poetas, mas não lhes dão talento”, diz uma personagem (a 6ª Máscara) a dada altura, tentando aliviar o juízo de ingratidão que de Bocage estava ser dado.
Esta peça de Romeu Correia só teve estreia em palco cinco anos depois da sua publicação, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. Em 1978, mereceu nova edição em livro (Lisboa: Ed. Maria da Fonte). Pouco mais de quatro décadas volvidas sobre o seu nascimento, este Bocage bem merecia a reedição, assim como justificava a sua apresentação no sítio que mais vida lhe daria – o palco.
A obra de Romeu Correia, aparecida quando passava o segundo centenário sobre o nascimento de Bocage, mantém ainda hoje um vigor moderno, seja pela leitura que apresenta da obra e do percurso bocagiano, seja pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, seja pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.
Se, como subtítulo, Bocage foi apresentado como uma “crónica dramática e grotesca”, não foi para facilitar o entendimento ou a leitura, antes terá sido para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. Na verdade, a anteceder a lista de personagens que entram em cena, a abrir a obra, ficou a observação: “Esta é a crónica dramática e grotesca de uma época, centralizada na figura singular do poeta maldito que foi Bocage. Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”
A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta, e conclui com a morte do mesmo Bocage, associada a uma encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”
Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.
O que vai zelando pela (boa) memória de Bocage é a presença em cena de uma figura como a de José Pedro. No início da peça, em tempo localizado na Lisboa de meados do século XIX, é ele quem se insurge contra o Bocage das anedotas e das pilhérias – “Não dêem ouvidos! É falso! Tudo o que dizem do sr. Manuel Maria são mentiras! As anedotas, as indecências… são quase todas inventadas!...” Esta indignação vivida em palco acentua a reacção ao anúncio de um cego que apregoava “as anedotas do Bocage… e mais versos deste grande brejeiro!...” No final, é o mesmo José Pedro quem anda a vender os versos de Bocage para o ajudar, apregoando os folhetos, num paralelo (de sinal contrário) com o cego do início da história: “Para o grande poeta Bocage! Ajudem o grande Bocage! (…) Socorram Bocage! Bocage está muito mal!... Os últimos versos do grande poeta Bocage!...”
A intenção desta peça passa, pois, por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior – “Os mecenas matam a fome aos poetas, mas não lhes dão talento”, diz uma personagem (a 6ª Máscara) a dada altura, tentando aliviar o juízo de ingratidão que de Bocage estava ser dado.
Esta peça de Romeu Correia só teve estreia em palco cinco anos depois da sua publicação, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. Em 1978, mereceu nova edição em livro (Lisboa: Ed. Maria da Fonte). Pouco mais de quatro décadas volvidas sobre o seu nascimento, este Bocage bem merecia a reedição, assim como justificava a sua apresentação no sítio que mais vida lhe daria – o palco.
2 comentários:
Olá, João Ribeiro.
Gostei muito do seu post. Romeu Correia é um escritor que me interessa bastante.
Você sabe onde consigo encontrar essa reedição da peça??
Li em algum sítio que não me recordo mais, que a obra, de 1965, foi refundida anos depois.
Você sabe se isso é verdade??
obrigada
Ana Carolina Frota Costa
(meu e-mail é anacarolfrota@gmail.com)
Olá, Ana Carolina!
Gosto de saber que há quem queira ler Romeu Correia. Na verdade, como muitos outros escritores e porque não há reedições, Romeu Correia corre o risco de ser esquecido (se não está já!). Há dias, uma pessoa que trabalha na escola que tem o nome do escritor confessava-me que nunca tinha lido nada dele! Isto não é grave do ponto de vista da leitura pessoal(cada qual lê o que quer), mas é grave do ponto de vista da cultura e da memória!
Já lhe respondi com outros dados editoriais por mail.
Boas leituras! E vale a pena ler Romeu Correia, acredite-se.
João Reis Ribeiro
Enviar um comentário