domingo, 6 de setembro de 2009

"A Ministra", de Miguel Real

“A personagem de A Ministra só existe no plano da ficção. Transfigurá-la da ficção para a realidade e alojá-la em tal ou tal pessoa é um exercício permitido pela imaginação. Porém, esse exercício, de que só leitor será responsável, nada acrescenta à ficção. A intenção do autor foi – exclusivamente – a de desenhar ficcionalmente, como tipo literário geral, uma mulher feia, triste e de existência infeliz, e, por isso, autoritária e severa, antes de mais consigo própria, uma mulher que nunca conheceu o amor.”
Esta não é a primeira advertência que aparece em A Ministra, de Miguel Real (Matosinhos: Quid Novi, 2009), mas é elementar: a eventual colagem da história a uma personalidade conhecida na vida política portuguesa recente tem responsabilidade declinada no leitor. A alicerçar esta explicação, já antes fora dito que este é o terceiro título de uma tetralogia de novelas dedicadas à mulher, em que a personagem é caracterizada como “mulher maquiavélica, calculista, feia e má, que reduz a realidade ao cálculo dos seus interesses.”
Queiramos ou não, a chegada da ministra, ou da mulher que vai fazer correr esta história, está já marcada por este retrato previamente traçado. A narrativa, na primeira pessoa, acontece nas vésperas do Natal, depois de um telefonema que a narradora, e também protagonista, reconhece ter sido perturbador – “veio alterar radicalmente a minha vida, força-me a expor-me publicamente”. No entanto, decalcando observação do filho, “não fosse este telefonema salvador e este Natal seria o mais triste da minha vida”, comenta a narradora.
E o leitor vai conhecendo a história de uma mulher que, de infância sofrida, subiu na vida, não olhando a meios. Professora universitária, depois de ter leccionado no ensino secundário durante dois anos, tentou ultrapassar tudo e todos para construir uma carreira, se bem que confesse ter consciência do contributo quase nulo que prestou: “Nunca possuí uma ideia original, nem nunca dei uma aula original, saco as ideias de relatórios europeus e, trabalhando as estatísticas, apresento-as como próprias”. A questão das estatísticas, dos números trabalhados, vai, de resto, ser afirmação muito presente na história, pormenor que acompanhará a personagem até final, de forma quase obsessiva – a dois passos de dar a resposta definitiva ao convite que lhe fora formulado para ser ministra, pensa: “saiba eu conquistar o povo estúpido para o meu lado, manipular números com argúcia já sei, terei agora de aprender a manipular multidões”.
Nesta narrativa, um quase total monólogo, a personagem dá-se a conhecer pelos seus actos, mas também pelo retrato que de si mesmo traça: “sei de onde me vem este meu feitio desconfiado, casmurro e autoritário (…), foi algo que nasceu comigo, este génio teimoso e intolerante, esta necessidade de ser superior aos outros, de os manipular e humilhar”. Bem perto do final, o retrato surge cada vez mais cru e a ameaçar o que pode vir a ser a prática futura da personagem, evidenciando as intenções que a animam – “Farei agora com quem me convidou para o novo cargo o que fiz então com o meu ex-marido, tornar-me-ei, como pessoa, necessária e insubstituível e precioso o meu trabalho, de modo que todos vejam e sintam que possuo tanta vontade e saber que posso substituir com proveito aquele que ora me convida, como aconteceu com o meu ex-marido, quem sabe se não será este o meu destino nos próximos cinco, dez anos, substituir aquele que me convidou, tomando-lhe o lugar”. Encenação total, pensada, amadurecida, em dois dias de recordação do passado (o tempo que dura a história) e de ânsia na resposta a dar, em que a personagem se (re)conhece e se representa: “Aproxima-se do espelho e encena o telefonema que fará no dia seguinte: ‘Sim, senhor Primeiro-Ministro, muito me honra o convite de V. Exa. A seu lado, sob as suas ordens, terei o privilégio de ser Ministra da Educação.’”
O que a personagem não sabia, porque isso lhe escapou durante toda a história, era que do outro lado (do telefone e das decisões) havia também outra personagem com o seu feitio e com o seu trajecto. Páginas antes, esta mulher observara sobre quem a convidou, no caso o Primeiro-Ministro: “não foi o saber nem o mérito que o puseram naquele alto lugar, bem pelo contrário, é o Chico Esperto da turma, foi a sorte, o acaso, o seu antecessor mostrara-se tão trapalhão que todos quiseram ver-se livre dele, elegendo um janota para o seu lugar, que se agarrou a duas ou três palavras de ordem e as cumpre com um grau de obstinação autoritária semelhante ao meu”. Este retrato, que termina com a aproximação das duas personagens – a que convidou e a que foi convidada – decide também o fim da história. E a obstinada candidata a ministra sofre o desfecho mais violento, com os motivos mais fúteis (mas eficazes no quadro social traçado), que lhe podia acontecer e que não esperava. E o romance fecha-se.
A Ministra é um bom exercício. De escrita, em primeiro lugar, em que uma personagem ocupa o palco do livro sozinha, na totalidade da história, num discurso na primeira pessoa, a mostrar o fel que a constrói e a consome, num percurso de construção de personagem até ao limite. De crítica, num tempo em que nem sempre são claros os valores de uma sociedade e em que a perversidade se (tra)veste da mais eficaz competência. De imaginação, não porque seja mais importante colar esta ou outra personagem a esta ou outra figura, mas porque denuncia o tom gratuito de muito discurso com que vamos convivendo. De reflexão, porque, em paralelo, existem também os poemas que abrem e fecham o livro, ambos de Alexandre O’Neill, ambos sobre o medo, a provarem que os anti-heróis são, muitas vezes, os que determinam as histórias, por mais maquiavelismo que exista.

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