quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (1)


 

O estado de emergência, por razões de saúde pública ligadas à pandemia, foi decretado em Portugal em 18 de Março de 2020. Situação inusitada, abalou as formas de estar, de viver, de partilhar. No dia seguinte, Arlindo Mota trocava mensagem com os frequentadores da Universidade Sénior de Setúbal retransmitindo uma ideia de Maria Alice Silva: “Estes dias, em que temos de reinventar ocupações, para encher as horas que teimam em ficar presas no relógio do tempo, dão lugar a muita reflexão e descoberta... Estes textos poderiam depois ser lidos e reflectidos nas aulas futuras.”

O desafio foi aceite por duas dezenas de voluntários e começaram os registos diarísticos de pequenos acontecimentos, de quotidianos simples, de olhares através da janela, de medição do mundo e da vida numa escala que era desconhecida. Dessa produção nasceu o livro Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, editado pela UNISETI (2022), reunindo 24 autores, incluindo a poeta brasileira Vânia Lopez (que, do outro lado do Atlântico, quis colaborar no projecto) e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), imunologista ceifada pela pandemia, de quem são transcritos três poemas, um deles escrito dez dias antes de falecer.

O tempo de escrita decorre entre 19 de Março e 27 de Julho (correspondendo ao tempo que faltava para finalizar o ano lectivo da UNISETI), sendo o mês de Abril o mais frequentado, com mais de quatro dezenas de participações.

Entrar por estes “dias entreabertos” possibilita uma série de lembranças das pequenas descobertas e aprendizagens, dos aspectos de um dia-a-dia a construir fora da normalidade, que enternecem pelo que avivam relativamente àquele tempo. Um exemplo: o açambarcamento de papel higiénico que sucedeu nos supermercados, tratado num texto repleto de ironia por Arlindo Mota, mais parecendo estar-se numa contemplação do fantástico.

Perante um viver fora do que era a normalidade, os diaristas vão reconstruindo os seus universos e partilhando essas novas combinações - Ana Maria B. entende, logo em 19 de Março, que “estes tempos difíceis são de facto uma prova a todos nós”, retirando uma conclusão: “Se não aproveitarmos isto para um ‘acordar’ e uma mudança de mentalidade e paradigma, se não aprendermos a perceber o que é realmente importante, então todo este esforço, sacrifício e vidas perdidas não servirá para nada.” Entretanto, o ciclo da Natureza não se alterava e, segmentada pela tristeza, Malice Silva dava, no dia seguinte, conta da chegada, “enrolada na chuva, escondida numa máscara que lhe cobria o rosto”, da Primavera. Com o afectar das relações de convivência diária graças ao isolamento, os canais de comunicação alteram-se também e uma volta pelo parque, bem cedinho, permite a Maria do Carmo Branco, num percurso quase solitário, aproximar-se da casa de algumas amigas, “falando elas da janela e eu da rua”.

A invenção de formas alternativas para as rotinas leva Malice Silva a duas descobertas repletas de simplicidade: a primeira, os passeios na varanda - “na minha varanda da frente, posso dar 40 passos, vinte em cada direcção, e outros tantos na varanda das traseiras, o que, somado, dá 80 passos em cada ‘caminhada’. Não é mau!”; a segunda, a atenção da vizinhança - “descobri, nas janelas dos prédios em redor, vizinhos que nunca tinha visto.” Nestas rotinas, emerge também o tempo para os pequenos prazeres, como sucede com José Manuel Fernandes, ao pensar sair para um passeio no jardim e uma passagem pelo café para comer um pastel de nata: “De repente, voltei à realidade: estamos em quarentena. Regressei a casa e aproveitei para ler um livro. Agora tenho tempo de sobra para ler...”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 951, 2022-11-02, p. 10.


sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Sampaio Faria e as reflexões sobre Tróia


 

Logo na introdução, o livro anuncia ao que vem: “este texto não pretende ser mais do que um limitado conjunto de reflexões sobre a Península de Tróia, tendo como base uma revisão sumária do seu povoamento e do possível impacto que a acção antropogénica daí resultante possa ter desencadeado ou venha a desencadear no desenvolvimento e consolidação evolutiva do seu ecossistema.” E, mais adiante: “teremos de nos indagar quanto ao tipo de acção antropogénica que queremos nas décadas vindouras e até que ponto essa acção poderá ser compatível com a sobrevivência da actual estrutura ecossistémica troiana”.

É assim que J. G. Sampaio Faria abre o seu ensaio Península de Tróia - Reflexões Improváveis (Primeiro Capítulo, 2022), anunciado como “reflexão partilhada sobre o presente e o futuro da península” e conjunto de “pontos de vista e questões resultantes da interpretação do autor sobre a realidade evolutiva do ecossistema troiano”.

Depois de explicar a formação da península (cujo perfil actual rondará uma idade de milénio e meio), surge a pergunta que não será apenas retórica “Península a prazo?”, levantando-se aí um conjunto de interrogações sobre as consequências advindas do aquecimento global e da ocupação humana na região peninsular, antevendo-se uma alteração do espaço, seja na forma da península, seja no estuário sadino.

Várias páginas são dedicadas ao estudo do povoamento da península de Tróia, servindo-se Sampaio Faria de uma cronologia determinada por dois períodos: o “sem aparente modificação do ecossistema troiano” e o “com aparente modificação do ecossistema troiano”, bem mais longo o primeiro, com origem em época anterior à chegada dos Fenícios, tempo de “relativo sossego ecossistémico” que se estendeu até aos anos 70 do século passado; por essa altura, o turismo intensificava-se na península - algo com efeito muito superior ao que fora desenvolvido por manifestações de curta duração e de efeitos diminutos (em termos comparativos), como a ocupação estival localizada das praias troianas, as acções de índole religiosa, a indústria baleeira (em curtos dois anos), as instalações militares para apoio à Base Aérea de Beja ou o alojamento dos regressados das ex-colónias - e trazia consigo a poluição resultante da mobilidade motorizada e do aumento de ruído e a progressiva devassa do sistema dunar por parte dos visitantes esporádicos.

Teme o autor que este conjunto de pressões se torne ingovernável no futuro se não houver planeamento adequado associado às unidades de desenvolvimento turístico entretanto aprovadas (e em curso) na península, situação agravada pela multiplicidade de instituições com responsabilidade sobre o local, num retalho facilitador de acções desfavoráveis ao ecossistema.

Considerando a importância da península para a solidez do perfil do estuário do Sado, o autor lamenta a intervenção humana que tem contribuído para a degradação progressiva do ecossistema e para a sua descaracterização, assim como lastima a quase inexistência de pontes da parte dos grandes proprietários e entidades tutelares com os “moradores / residentes frequentes”, que constituem “uma minoria sem capacidade de decisão sobre o futuro do seu habitat” e que deveriam “ter uma palavra a dizer sobre as suas condições de vida”.

Assim, Península de Tróia - Reflexões Improváveis afirma-se, por um lado, como um texto que equaciona a acção sobre o território a partir de dados históricos e da situação actual, e, por outro, como uma proposta de participação cidadã de quem ali vive um tempo significativo, com vontade de participar no interesse comum perante um espaço que não deverá estar à mercê de decisões que não contem com as pessoas. Em poucas palavras: um alerta e a disponibilidade e expressão do direito à participação.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 947, 2022-10-26, pg. 9.


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Brincar, como acção amorosa


 

O que pode acontecer se ouvirmos duas dúzias de pessoas com idades entre os 70 e os 100 anos para nos falarem sobre o brincar? Provavelmente, o mesmo que sucedeu aos entrevistadores João Pedro Santos, Leonardo Silva, Paula Moita e Vanessa Iglésias Amorim, que, em Setúbal, fizeram dessa experiência uma forma para acordar “a memória que fica registada no corpo durante o acto de brincar”, capaz de “trazer os sorrisos mais genuínos que podemos ver num Ser Humano”. A conclusão foi simples, mas muitas vezes contrariada ao longo dos tempos e das educações: “brincar é realizar a infância, é inventar o próprio tempo, onde os corpos são livres através do jogo e do amor.”

Memórias e considerações sobre essa “realização da infância” constam no livro Museus de brincar (Dar cor à vida, 2022), de cujo prefácio são extraídas as citações utilizadas, obra coordenada por Leonardo Silva e Paula Moita.

Por sete capítulos passam o brincar e a sua interpretação em termos sociológicos, mundo e tempo sempre contextualizados em função da sociedade, da economia, da política, dos espaços e das formas de vida, ressaltando perante o leitor o mundo das diferenças, pois “ser criança e poder brincar para muitos era privilégio e para outros era sonho e resistência”. Por outras palavras: ser criança nem sempre foi fácil, uma vez que a educação a relegou, por muito tempo, para o ponto mais frágil da ordem social e, como tal, dependente da formatação que a sociedade lhe oferecesse, fosse na família ou na escola. Assim se compreenderão as diversidades de tratamento de acordo com o género - os rapazes iam à escola, mas as raparigas não, pois tinham o trabalho da casa para fazer; raparigas e rapazes tinham brincadeiras diferentes; etc. Por outro lado, a duração da infância afigura-se nestes testemunhos como algo discutível, pois, em muitas situações, ela foi rápida, determinada pela dificuldade - se a nonagenária Conceição Pereira testemunhou ter sido “pouco criança” e o octogenário Ciríaco Visitação lembrou que, “a partir dos 10/11 anos”, deixou “de ter infância”, o que, na verdade, querem dizer é que o mundo do trabalho começou muito cedo, tornando-se limitada essa fase de crescimento.

É curioso verificar como a sociabilidade infantil, no entanto, se foi construindo: algo que foi variando, mas que teve como cadinho a distância da família, a rua, a vizinhança, a necessidade de inventar brincadeiras e brinquedos (muitas vezes construídos a partir do mundo dos adultos), universos amplos para a imaginação e para o estabelecimento de relações, para descobrir mundos - “a bola era feita de meia de mulher, depois enrolava-se e punha-se papéis lá dentro” (Manuel Lúcio dos Santos); “íamos às modistas e pedíamos bocadinhos de trapo e fazíamos umas bonequinhas com uns trapos e um bocadinho de linha” (Maria Dilar Pimpão); “o meu pai tinha um torno e eu comecei a fazer piões para jogar, também os fazia para os meus colegas de escola” (José Gonçalves); “fazíamos partidas, fazíamos umas às outras trinta por uma linha, brincávamos com farinha e enchíamos a cara umas das outras, outras vezes era com carvão” (Suzete do Carmo).

Testemunho e recolha interessantes, este livro leva-nos a outros tempos, é verdade, mas também chega ao presente, em que as mesmas personagens optaram por reconhecer o valor do brincar e da sua importância na educação dos netos e bisnetos, assim mostrando como é verdadeira a definição de José Tolentino Mendonça na obra O hipopótamo de Deus e outros textos (2010): “Brincar significa agir, não a partir do necessário ou utilitarista, mas como pura expressão gratuita, amorosa.”

J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 942, 2022-10-19,  p. 10.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Imagens do ser professor (a propósito do Dia Mundial do Professor)



Em 1886, Edmundo de Amicis (1846-1908) publicava a narrativa Coração, diário de um jovem estudante, que, num determinado dia, relatava a visita da criança e do seu pai a Crosetti, velho professor de 84 anos. Este encontro advinha do facto de o educador ter sido condecorado pelos seus 60 anos de ensino e da forma viva como o progenitor do jovem, seu ex-aluno, ficara marcado pelas lições recebidas, tal como, durante a viagem foi testemunhando: “Foi o primeiro homem que me estimou e ajudou, depois do meu pai. Nunca esqueci alguns dos conselhos que me deu, nem de certas descomposturas que me faziam voltar para casa com um nó na garganta. Todos os dias chegava à aula com a mesma disposição, sempre muito consciencioso, cheio de boa vontade e atento, como se começasse a ensinar pela primeira vez.”

A recordação de Bottini pode parecer apenas sentimental, mas ganha todo o sentido se pensarmos com Christopher Damien Auretta: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.” (Autobiografia de uma sala de aula, Colibri, 2020). E lembremos Frank McCourt (1930-2009), que, na sua obra autobiográfica O professor (Presença, 2009), relata que chegou a ter de pensar com os alunos o que era o acto de ensinar e o que era a escola: “Descobri uma equação. Vou escrever do lado esquerdo do quadro um M maiúsculo e do lado direito do quadro um L maiúsculo e depois faço uma seta da esquerda para a direita, de MEDO para LIBERDADE. Acho que nunca ninguém é completamente livre, mas o que estou a tentar fazer com vocês é empurrar o medo para um canto.”

Estratégias úteis para a vida, na sua pluralidade de sentidos, era também aquilo que o professor do romance As sombras de uma azinheira, de Álvaro Laborinho Lúcio (Quetzal, 2022), pensava conseguir junto dos seus alunos, pois, “para ele, ser professor não era muito diferente de ser médico. A ambos se exigia estudo e dedicação para compreenderem, para conhecerem bem aqueles com quem lidavam, perceberem as suas origens, comprometerem-se na construção dos seus destinos.”

O objectivo supremo da escola e do ser professor, como pensou Manuel Nunes em A Professora, os Porcos e os Cisnes (Gradiva, 2012), é claro: “A escola existe para educar para o sublime. A sua missão consiste em conduzir para o mais alto do mais alto. Ela tem a obrigação moral de ter como meta e como horizonte a perfeição.” Este é o desafio de sempre para o professor, personagem que, no romance Não matarás, de Teresa Martins Marques (Gradiva, 2022), é assim apresentada: “sorriso e cordialidade, conhecimento seguro das matérias, autoridade sem autoritarismo, fazem o bom professor.”

Para seguir este caminho, Sebastião da Gama (1924-1952), em 1949, anotava no seu Diário (Presença, 2011): “- Tens muito que fazer? - Não. Tenho muito que amar. (Não entendo ser professor de outra maneira.)” E estes princípios não se delapidam no tempo - em 2007, Daniel Pennac manifestava, em Mágoas da escola (Porto Editora, 2009), um sentimento semelhante: “Os professores passam o tempo a refugiar-se nos métodos, quando, no fundo, sabem perfeitamente que o método não basta. Falta-lhe qualquer coisa. (...) Amor!”

Misturam-se, ao longo destes retratos, muitas coisas, mas a essencial permanece - a imagem e o papel do professor. E que bom seria se pudéssemos subscrever aquilo que Albert Camus (1913-1960) disse sobre o professor no seu romance A peste (1947): “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 937, 2022-10-12, p. 4.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Eugénio Lisboa: poemas em tempo de guerra



Há um texto do ucraniano Andriy Lyubka (n. 1987, em Riga) intitulado “A guerra não é tempo de literatura”, de 7 de Abril, que, se afirma que os poetas ucranianos estão ocupados no apoio social e na defesa da pátria, também confessa: “Nunca na minha vida entendi tão bem poesia como durante a revolução e a guerra. É nestes momentos que ela pode acalmar, ajudar a chorar, e também inspirar à luta, ensinar a cerrar os dentes e a lutar pela vida.”

Podemos cruzar esta afirmação com a justificação que Eugénio Lisboa (n. 1930) apresenta para o livro Poemas em tempo de guerra suja (Guerra & Paz, 2022): “Preferia não ter escrito este livro, sinal de que não tinha havido uma guerra que, de resto, continua a haver. Um tirano (...) promoveu a invasão e a destruição da Ucrânia e, dentro de mim, a indignação que é o sangue destes versos.” Este desabafo confronta-se com uma inevitabilidade - a guerra continua(rá), tal como Lisboa reconhece em nota introdutória: “Nenhum dos grandes livros que se escreveram contra a guerra, ao longo dos séculos, evitou jamais que uma nova guerra se travasse, com o habitual cortejo de ruínas, mortos e mutilados.”

O título diz ao que vem: poemas produzidos na simultaneidade desta guerra que desde Fevereiro de 2022 nos assombra e minimiza, entre 25 de Fevereiro e 26 de Junho. Datados todos eles, assumem-se como registos dos dias, muitos falando sobre a guerra, outros reflectindo sobre a vida (sua longevidade e sentido), acontecimentos do tempo (a morte de Paula Rego, por exemplo), a memória (vivências do passado, recordações de Moçambique), a companhia da Ísis (a gata que motiva alguns belos textos sobre os felinos, “mínimos tigres de salão”).

A guerra suscita a indignação, prevalecendo o tom panfletário, irónico e provocatório, o apelo à tomada de posição - “Mas que merda de poetas, / de liras enferrujadas, / pouco vigor nas canetas / e de iras mal mijadas! // Mas que vergonha de gente, / tão indigna de Camões, / de tesão deficiente / e falta de palavrões!”, versos de 27 de Fevereiro, protestam contra o silêncio dos poetas portugueses perante a catástrofe (e de todos os que não querem comprometer-se), quadras que terminam numa interpelação desafiante: “Acordai a vossa lira, / apodrecida no sono / e instigai-lhe a ira, / que não fique ao abandono!”. O alvo notado nas reflexões poéticas sobre a guerra é Putine, tirano retratado como “Mostrengo”, motivador de perguntas “a alguns amigos russos”, como Turguénev, Tchékov ou Tolstoi, sobre o que diriam desta figura.

Se a indignação contra o absolutismo se funda na sua vontade de matar o inimigo, intensa é a contradição surgida no poema “Matei o meu inimigo”, em que o soldado se amargura, depois de reparar no cadáver que fez: “Empalei-o e abracei-o, / colocando-o no chão. / Com cuidado, observei-o: / era, horror!, o meu irmão!”

Mais para o final, o tom torna-se mais introspectivo, num diálogo com o passado, o sentido da vida, a valorização do que se sentiu, as ausências dos que já passaram, terminando o livro com um soneto-reflexão sobre o tempo preenchido: “Dizem-me que tive uma vida cheia. / Digo-lhes que sim, que, de facto tive. / Se quiserem, foi mesmo uma epopeia. (...) // Mas o que é ter tido uma vida cheia? / As vidas enchem-se como tonéis? / (...) // Uma vida cheia, dizem Vocês? / (...)” As perguntas retóricas pontuam o poema, devolvendo a reflexão para os outros, pretexto para o conhecimento das razões que levaram a que portas se abrissem e se fechassem, afinal a história das nossas circunstâncias... 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 932, 2022-10-04, p. 10.


quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Pensar o coração para homenagear Saramago



Quando Francisco aparece, após longa ausência, ouve de Clara o desabafo marcado pelo afastamento: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.” O excerto é da peça A segunda vida de Francisco de Assis (1987), de José Saramago, e originou o tema da terceira edição do concurso literário que a Câmara Municipal de Palmela organizou - De que é feito o teu coração? -, associando-se ao centenário saramaguiano e publicando a antologia com o mesmo título, reunindo os textos premiados (três de cada escalão).

No primeiro grupo (6 a 11 anos), as três histórias foram assinadas por Mariana Figueira Brinca (1º), Simão Rosa de Almeida (2º) e Matilde Alves (3º). O texto vencedor relata uma história cuja protagonista passa pela experiência do medo da doença e da paz resultante da recuperação, chegando à descoberta de que o amor começa nos mais próximos; em segundo lugar, surge uma história em que o coração dos outros é visto pelas atitudes, numa tentativa de olhar o outro, compreendendo o que o torna único; a terceira premiada faz passar a personagem por um percurso de simplicidade, pedagógico, para perceber algo tão complexo como saber de que são feitos os sentimentos.

No segundo escalão (12 a 17 anos), as assinaturas são de Tânia Parreira, Salomé Cruz e Marina Mendes. A primeira envereda por uma história de um amor que à partida parece impossível, mas que ajuda a mudar o mundo, cultivando ideias como a necessidade de se perceber a Natureza e acreditando na construção da utopia; a necessidade de o ser humano pensar, a importância do outro e a utopia como o mundo que se constrói são tópicos da narrativa do segundo texto, enquanto a descoberta de que não há seres perfeitos e a repugnância pela ambição desmedida são os ingredientes que dominam o terceiro classificado.

O último grupo (maiores de 18 anos) reúne os trabalhos de Carlos Vinhal Silva, José Carlos Almeida Lopes e João Alberto Roque. O narrador do primeiro texto, “Sou feito do que são feitos os livros que escrevi”, percorre os caminhos para apurar o sentido da existência, dando lugar ao sonho e ao desejo, num corajoso itinerário que busca construir o seu próprio coração (“agora sei do que sou feito; sou feito do que construí; agora sei de que é feito o meu coração: o meu coração é feito daquilo que há em mim”); a narrativa “Coração variegado”, que obteve o segundo lugar, leva a personagem a um passeio em que ressalta o papel da Natureza, num peregrinar pelas memórias de uma vida doce, agora sofrendo a ausência (“Não estás, mas sinto-te. Percebo agora a saudade. Ensinaste-me a entender de que é feito o meu coração!”); o terceiro texto tem título homónimo do tema do concurso, exercitando-se o narrador na procura da substância que forma o coração (partindo de expressões como “coração de manteiga”, “coração de ouro”, “coração de ferro” ou “coração de pedra”, variáveis de formas como os outros nos vêem), pretexto para abordar a pluralidade de sentimentos despertados e para reflectir sobre a complexidade de que o “eu” é feito.

A diversidade a propósito da matéria que faz o coração encontra linhas comuns na descoberta do outro, na faceta do sentimento, no caminho de que a vida se faz, no álbum que fica daquilo que as vidas são. Como, em O ano da morte de Ricardo Reis (1984), escreveu Saramago, “muitas vezes começamos por falar de horizonte porque é o mais curto caminho para chegar ao coração.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 923, 2022-09-21, p. 10.


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (3)



Ao saber do destino conventual de Beatriz (que poderia ser a mulher do seu filho Pedro), após visita ao convento, Álvaro despede-se, como se tivesse cumprido uma missão - “Adeus, mestre Mendo. Selado e brindado tenho o meu ginete, vou-me por aí fora. Deus vos dê felizes dias cá na terra e eterno repouso na bem-aventurança, e se o destino nos não tornar a unir, até ao dia do Juízo Final!” E conclui o narrador: “Despediram-se. De D. Álvaro ninguém mais soube.” Não podemos ler esta passagem sem nos lembrarmos daquele encontro entre as personagens Telmo e D. João de Portugal que Garrett criou para o seu Frei Luís de Sousa, em que o nobre, depois de se certificar sobre a história da família através do fiel escudeiro, entende estar errado no ódio e, despedindo-se, parte, desaparecendo de cena. No caso do garrettiano D. João de Portugal, como no caso do Álvaro Ataíde, de Henrique Freire, ambas as personagens antecipam o seu fim, através de uma morte psicológica, que acontece depois que o mundo se lhes fecha.

Em A Profecia, o espaço medieval da então vila sadina, em finais do século XV, é sempre caracterizado em comparação com a contemporaneidade de Henrique Freire - daí que haja ocasião para louvar a chegada do comboio ou a iluminação a gaz, que estava para breve. Mas, preocupação máxima, para lá da acção narrativa e do desenvolvimento que era sentido na cidade, Freire foca-se na preservação do património, tal como foi propósito da geração de Herculano e Garrett - há diversos momentos em que o desrespeito pela memória (tomando o exemplo da falta de reconhecimento a Bocage, haja em vista que o monumento ao poeta é posterior, de 1871), a falta de conservação dos bens culturais e o uso do camartelo são criticados, desejando que, no futuro, “a mão destruidora do vândalo desta época não se lembre de fazer do seu recinto uma praça de touros” (como acontecera no Convento de S. João, em Setúbal, duas décadas antes). Continuamos a não poder ler estes comentários sem nos lembrarmos do que Garrett ia dizendo no seu circuito por Santarém nas Viagens na minha terra, sempre condenando o despropósito com que o património edificado era deixado ao abandono...

A concluir, um desejo: “Que inteiro ou destruído, esse templo conserve sempre vestígios do antigo poder deste reino; é uma página de pedra do livro das nossas tradições.” E, para que dúvidas não restassem e incorrendo num apelo de consciência cívica, remata: “Eis os sinceros votos que fazemos em prol do Mosteiro de Jesus da cidade de Setúbal que a piedade ergueu há trezentos e setenta anos: praza a Deus nos não façam ainda um dia lançar um brado de reprovação contra os homens sem coração e sem crenças que tem reduzido a ruínas quase todos os monumentos do país.”

Advertência, é verdade, importante para o apelo à intervenção e defesa do património, uma marca que também preocupou os românticos e que foi determinante para a cultura oitocentista. Esta obra de Henrique Freire, partindo de uma profecia cuja autenticidade é discutível, pretendeu ser uma voz de defesa e de promoção da cultura local, eivada de todas as marcas do tempo em que foi escrita, fazendo coabitar figuras da nobreza e populares, exaltando o carácter testemunhal e a responsabilidade dos cidadãos. Uma história que, ao glorificar esta “página de pedra”, é um belo hino em honra do Convento de Jesus!

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 918, 2022-09-14, p. 8.


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (2)



Os onze capítulos do romance A Profecia abrem com epígrafes de Alexandre Herculano (1810-1877), oriundas das histórias que constituem a obra Lendas e Narrativas, com particular destaque para a intitulada “Mestre Gil”, narração que tem Setúbal como espaço predominante.

Estas aberturas com citações de Herculano acabam por conformar também o estilo de Henrique Freire, quer pela leitura (Lendas e Narrativas apareceu em livro em 1851, apesar de os vários textos já terem sido publicados esparsamente na imprensa), quer pela contemporaneidade de ambos. Mas as transcrições de Herculano implicam mais na escrita de Henrique Freire. Com efeito, o jovem setubalense absorvera as marcas essenciais do movimento cultural romântico, em que Herculano pontificava, pela escolha de um tema nacional para a sua ficção, pelo mergulho no passado, pela exaltação de valores patrióticos e nacionais, pela reverência demonstrada por figuras que, pelos valores que defendem e representam, se tornam modelos, seja na religião, na política ou no quotidiano.

Após o sermão do frade anunciador, a sequência dos acontecimentos é previsível - Justa Rodrigues Pereira (c. 1441 - 1514/1524) pedirá o apoio régio para construir um convento sonhado por Boitaca e a primeira pedra será lançada, em festiva cerimónia, por D. João II (1455-1495), o rei que chegou a viver em Setúbal e que, acompanhado do seu cronista Resende (1470-1536), é também personagem desta história. 

Paralelamente, uma história de amor destaca a acção joanina contra a nobreza, invocando episódios de exercício da justiça real sobre os fidalgos (como Pedro de Ataíde ou o duque de Viseu) e figuras do clero (como D. Diogo, bispo de Évora), ao mesmo tempo que uma personagem como Álvaro de Ataíde (que surge no início e no final da obra) serve para relatar a experiência dos que tiveram de exilar-se para fugirem à justiça régia. Ao falarmos destas personagens, não nos podemos desligar do movimento romântico de novo - é que a história entre Pedro e Beatriz se torna numa história de um amor impossível, acabando pela morte dele e pela entrada dela no convento, a sorte dele definida por convicções políticas e a dela por questões familiares. De imediato nos vem à memória uma ou outra personagem de Garrett (1799-1854), sejam elas de Viagens na minha terra (1846) ou de Frei Luís de Sousa (1844), obras em que, da parte dos amantes, há tudo para a construção da felicidade, desejo que é abortado pelas condições exteriores, muito mais fortes no contexto da época - situação que faz parte da tradição literária com histórias como a de Tristão e Isolda (lenda medieval, retomada na música - Wagner - e na literatura), Romeu e Julieta (da peça homónima de Shakespeare), Pedro e Inês (cuja história foi literariamente imortalizada por António Ferreira e por Camões, tendo sido retomada por muitos outros autores, designadamente Bocage), Paulo e Virgínia (do romance homónimo de Bernardin de Saint-Pierre), Simão e Teresa (de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco) ou, mais recentemente, Maria e Tony (de West Side Story, de Irving Shulman).

Mesmo noutras personagens de Henrique Freire conseguimos ver laivos de criações garrettianas - sirva de exemplo, quase no final do romance, o regresso a Setúbal de Álvaro de Ataíde, que se exilara no estrangeiro para não ser atingido pela justiça de D. João II e, já velho, vem visitar o convento, numa última viagem, acompanhado pelo alfageme Mendo Álvares, setubalense que está presente do início ao fim da obra, sendo testemunha de tudo o que na vila se passou.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 913, 2022-09-07, p. 9

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (1)



Em 1864, Henrique Freire tinha 22 ou 23 anos (1841 ou 1842-1908) e, desde os 18, andava pelos jornais de Setúbal - primeiro, n’ O Improviso (que acabou em 1859), depois n’ O Correio do Sado, onde conviveu com João Correia Manuel de Aboim (1819-1861), lisboeta que se radicara em Setúbal e teve ampla participação na imprensa sadina. Em 1864, Henrique Freire tinha conhecimento bastante de Setúbal, onde vivia desde a infância, nascido que fora na Trafaria, tendo-lhe permitido esse conhecimento participar na imprensa e publicar uma pequena monografia intitulada O rei e o soldado - Facto histórico do reinado do Senhor Dom Pedro V, livro que viu a luz do dia em 1862.

Nesse mesmo ano de 1864, em Lisboa, dos prelos da Imprensa Sousa Neves, saía, assinado por Henrique Freire, o romance histórico de pouco mais de 130 páginas intitulado A Profecia ou a Edificação do Convento de Jesus, acrescentado da indicação “tentativa histórica setubalense” (obra editada recentemente em fac-símile pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão). Título e subtítulo remetem de imediato o leitor para um tempo de finais do século XV e para um texto que não pretendia historiar, antes ser uma “tentativa histórica”, algo sugerindo o percurso entre uma ficção e os factos históricos locais.

Na “Nota Introdutória” a esse livro, o jovem Henrique Freire dedicava a obra ao pai e informava os leitores sobre a idade com que iniciara esta narrativa - 16 anos. Henrique Freire não nos diz o que leu para lá dos documentos que menciona sobre a história do Convento de Jesus, como o Santuário Mariano, obra de 1707 feita por Frei Agostinho de Santa Maria, ou o Tratado da Antiga e Curiosa Fundação do Convento de Jesus de Setúbal, manuscrito de 1630 devido a Soror Leonor de São João, e ainda a consulta de documentos do cartório do então Hospital da Anunciada e a Crónica de D. João II, de Garcia de Resende.

Uma e outra crónicas estão na origem da história que Henrique Freire constrói, pois o título A Profeciamais não é do que a exaltação do frade que terá antevisto o local onde o Convento de Jesus viria a ser construído. Frei Agostinho de Santa Maria é mais palavroso no relato do que Soror Leonor de São João, pois conta: “Alguns anos antes do de 1489, em que se fundou aquele Convento de Jesus, pregando um religioso Menor da Observância, e natural de Itália, varão de grandes virtudes, às portas da mesma ermida da Senhora dos Anjos, disse com espírito profético, pondo os olhos naquele campo aonde depois se fundou o Convento: ‘Vedes vós, dizia, aquele pedaço de terra inculta? Pois adverti que ainda há de ser um paraíso de Deus e fecundo jardim de plantas e de flores de virtudes e glorioso em santos frutos. Ali hão de viver criaturas que por obras eminentes transformarão aquele lugar humilde em um Céu admirável.’” (Santuário Mariano, 1707, vol. 2, pg. 425)

O discurso do frade italiano apresentado por Frei Agostinho de Santa Maria é integralmente aproveitado por Henrique Freire e serve como justificação para o título da sua obra.

 

OBS.: Texto usado para apresentação da obra A Profecia, efectuada no Convento de Jesus em 21 de Julho; o texto é dividido em três partes, de que hoje se publica a primeira.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 908, 2022-08-31, p. 9.