É reedição recente a obra Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz (1944-2009), que a
Câmara Municipal de Sesimbra levou a cabo, quando passam quinze anos sobre a
primeira publicação. Na verdade, trata-se de noventa e sete textos, que o
próprio autor, em nota de abertura, hesitava em classificar quanto ao género: “não
sei se são contos, se são crónicas, memórias, olhares ou retratos”, para logo
acrescentar “se calhar é um pouco de tudo isso ou nada disso”, porque, “no
fundo, são simplesmente coisas que, ao longo dos anos, fui buscando no sótão
desarrumado que é esta minha cabeça e que fui escrevendo, ao correr da pena que
tenho de não saber fazer melhor”.
E, na verdade, assim é. Os textos respeitam a
modalidade da crónica pela sua extensão, pela forma de tornar actuais muitas
histórias, por se cruzarem com o quotidiano de personagens com as quais o autor
também se cruzou, por partirem para pequenas reflexões sobre a memória e as
formas de vida, os exemplos, as convivências, os tempos. Havendo apenas um dos
textos sem data, os mais antigos remetem-se para 1972, com publicação no jornal
Record, enquanto os mais recentes
surgem datados de 2000.
O estilo de Cagica Rapaz é vivo, intenso, medido ao
pormenor, eficaz, levando o leitor a comungar os instantes e as situações, a
viver aquilo que o próprio narrador quer fazer reviver. São histórias de
Sesimbra, das suas gentes, do sítio. São narrativas de tempos recuados, assentes
na infância do seu contador, que vogam até às figuras que fizeram parte do seu
universo e que povoaram o tempo e a geografia entre Caixas, Cotovia e Sesimbra. São relatos que vivem
sobretudo pela sua humanidade, pelas relações que tal evocação gera entre as
pessoas, todas protagonistas de vidas e da vida do narrador, que nunca se
esconde atrás de um memorialista distante, antes insiste em tornar presentes os
momentos que sentiu e as personagens que os condimentaram, sempre levado por um
apego à terra, uma Sesimbra em que a paisagem tem de ser dominada, sem dúvida,
pelo mar – “O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por
isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal,
só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.”
A pouco e pouco, ao longo da quase centena de
crónicas, o autor vai revelando o seu propósito: vencer o tempo, revivendo-o
pela memória, que se torna escrita. É assim que, poucas páginas de leitura
volvidas, o leitor começa a entrar no desvendamento do porquê desta escrita: “foi-se
o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…” Um pouco adiante, ao fixar
o retrato de uma personagem, um pouco mais de confissão – “é o passado que
penetra o presente com ingénua autenticidade”. As histórias vão-se acumulando
e, uns encontros à frente, é dito que “ficam as recordações aqui e ali
reavivadas”. Já quase no final desta colectânea de crónicas, uma surge em que o
autor cimenta o seu gesto de caminhar pela memória – refere-se à colaboração de
António Lobo Antunes num periódico, entretanto recolhida sob o título de Crónicas, que, relidas, merecem de
Cagica Rapaz a seguinte reflexão: “Sentimos quão vivas estão as recordações da
infância, a ternura com que fala dos familiares, dos amigos, dos lugares, das
coisas e de um tempo.” O leitor percebe que este narrador sente a felicidade da
identificação, que cauciona o seu trajecto, mas, num gesto de simplicidade,
conclui, linhas adiante: “Desta leitura acabei por extrair uma satisfação
adicional que é o paralelismo que, vagamente, a espaços, a grande distância
qualitativa, me atrevo a vislumbrar entre algumas das suas crónicas e um ou
outro dos meus pobres escritos.”
A dimensão pictórica no traçado das personagens é
intensa em António Cagica Rapaz, como se pode ver pela descrição de memória que
faz de Maria Amália, sua familiar, impressão que quase nos remete para
Arcimboldo: “Com os meus oito ou nove anos, eu via nela um fruto autêntico da
terra, feito de trigo maduro, de sol cor de romã, de uva generosa, de bom pão
amassado com amor e cozido em forno de tijolo moreno”. Impressionante também é
a caracterização de uma outra personagem, que se manifesta em vários textos, o
padre João, a quem está associada uma construção literária – “foi, para todos
nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Dinis” –, resultante de um
retrato todo ele eivado de sentimento – “felizmente, acima dos dogmas rígidos e
tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua
ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia
connosco”. Intenso também é o passeio na memória através de uma professora,
Auzenda Pereira, que leccionava Francês no Liceu de Setúbal no início dos anos
60 e revelou aos alunos os caminhos da beleza e da arte – “Pessoas como a Dona
Auzenda acompanham-nos ao longo das nossas vidas, ensinando-nos a apreciar as
coisas bonitas da existência, com amor e o mesmo tacto poético com que nos
levava pela mão através dos campos da Provença, em manhãs de evasão na
biblioteca acolhedora do velho Liceu…” O recorte no tratamento das personagens
é fino e sensível e assistimos a um desfile que integra o sapateiro, o
pescador, o condutor do autocarro, o barbeiro, os amigos do café, aqueles que
chegam e se deixam tornar íntimos de Sesimbra (terra de recepção também) e
todos quantos acabam por fazer parte de uma vida, de uma comunidade, com
ligação aos sítios (o café, a praça, a praia, o campo), aos momentos (a
infância, a escola, a igreja, o futebol, as festas) e aos afectos. No fundo,
são os contares do que alimentou o quotidiano, do que foi a epopeia de cada um –
não por acaso, será a propósito da narração da matança do porco que o narrador
dirá que, nesse dia, “se escrevia mais um capítulo dos muitos que compõem a
epopeia do campo”…
Se dúvidas tivéssemos quanto ao que motivava António
Cagica Rapaz nestas crónicas, o mistério seria desfeito por este curioso
parágrafo que registou no texto “Omar” (designação vinda de poeta persa do século
XI, evocado por Amin Maalouf), de 1999: “O que resta da nossa urbe é o olhar
melancólico que alguns teimosos palermas, como eu, teimam em pousar sobre
Sesimbra, tentando descobrir, desenterrar, trazer à superfície restos de beleza,
de poesia, do encanto do passado.” E, quase no final do livro, mais um
contributo para ajudar a desvendar o porquê destas evocações: “continuaria a
fazer o que faço com as pessoas de quem gosto, evocando-as aqui e mais logo,
por isto, por aquilo, como quem diz adeus de longe, do muro da lota…” Duzentas
e poucas páginas de um livro que, dizendo adeus, traz o passado até ao presente,
assumindo-se como um percurso que (re)constrói a identidade!
Sublinhados
Felicidade – “Se calhar, a felicidade é apenas meia dúzia de
horas felizes, momentos espaçados e fugidios, uma sensação de paz, uma ilusão
de eternidade, um riso de criança…”
Vida – “A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos
realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de
interferir, impotentes para reagir. Até
ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o
relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas
o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes…”
Outro – “Andamos anos a cruzar-nos com pessoas de quem gostamos, a
falar-lhes de raspão, ao dobrar a esquina, e não somos capazes de arranjar
tempo para elas, para nós, para estarmos juntos, sempre a deixar para um
qualquer dia que, quando e se chega, não é o que sonhámos. (…) Importante é
gostarmos das pessoas e das coisas, sermos capazes de partilhar sentimentos e
emoções.”
Escrever – “Escrever não é indispensável, faz parte das coisas
supérfluas. Ninguém morre se não escrever e todos passam sem ler. Apenas
acontece que alguns de nós, com ou sem razão, com mais ou menos jeito, julgam
ter coisas para dizer. E escrevem. Por gosto, com paixão, por amor, escrevem.”
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