Numa entrevista a Carlos Vaz Marques na revista Ler (nº 99, Fevereiro.2011), Pedro Tamen (1934-2021) definiu a importância da poesia: “é, para mim, um permanente arranhar o mundo, com unhas na cal, para tentar encontrar coisas que se pressentem por detrás do branco uniforme do mundo e da vida.”
Era isso, então, que andava a fazer desde que, em 1956, saiu o seu primeiro livro, Poema para todos os dias (ed. Autor), obra em que haveria de registar marcas que pontuariam os seus títulos subsequentes: a escrita da poesia como elemento fixador ("Ontem / (ainda ontem) / aconteciam verdadeiras coisas, / aconteciam muitas e sérias coisas. / E, agora, neste seco papel, / tudo volta, e eu vejo."), a força da palavra ("Não há montanhas se não há palavras"), a capacidade de surpreender o leitor pela palavra intrometida ("Não penso, faço, / não estrada, sigo"), o apelo aos jogos de sonoridades ("e o dia perto, porto, parto ferido"), o engenho de (re)inventar significados ("aleluia-se um gesto"), o amor ("em ti não busco mais do que pensar-te"), o tempo ("o tempo todo corre num cigarro, / no suor a cair, e no ficar."), as marcas autorais ("formado em direito e em solidão" ou "Sentidos frios de pesadas frases / Ai Pedro, Pedro, tu que frases fazes?"), a subtileza na forma de apresentar, de visitar e de escrever a poesia ("Em segredo, como quem vai ao armário de si próprio, / rodo a fechadura (range) e abro.").
O jogo de palavras será constante em Tamen, ajudado por alguns mestres, como Bocage, que puxou para um poema no livro Analogia e Dedos (Oceanos, 2006), conjunto que quase configura uma mitologia do poeta: “Já não sou. Já não serei / se fui. Agora à cova / além dos ossos e caroços / muito mais descerá. / O verso, o riso, o vinho, / a mão ladina sobre a carne morna, / tantas coisas sentidas, ressentidas, / intenções, bolandas, entreactos, / entradas por saídas, choros finos: / muito mais descerá. // Não sou, é certo, e não serei, / mas no descer de tudo / já nem fui.”
Quando passou a viver em Palmela, Pedro Tamen por lá encontrou uma Rua de Nenhures, nome estranho sugerindo um não-lugar, que deu título para livro (Publicações Dom Quixote, 2013), com 64 curtos poemas centrados num “tu”, por onde passam referências associadas à luz, ao mar e ao fogo, na procura do momento desejado - “Cheguei do fundo das ravinas, / (...) / e o coração, / salvei-o, essencial e concentrado, / para que, chegado ao lar do milho, / to pudesse entregar nas mãos iluminadas / ao sol incandescente dos teus olhos.” Desde este poema, quase no início, até ao último (“Sentas-te no muro, lá no alto, / nem me vês tropeçar nas pedras desta rua.”), o amor intensifica-se pela voz (“Cotovia perto / cantas. / (...) / cotovia perto, / meu amor, meu amor.”) ou pelo tacto (“Deixo os dedos enrugados navegar / no mar de leite”), ajudado pelos jogos de palavras - “Troco-me por ti. / Na brasa da fogueira mal ardida / renovo o fogo que perdi, / acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.” O “tu”, procurado e incorporado, surge transformador - “sinto (...) / que a lanterna de bolso que tu és / me devolve a paisagem de largueza / que a ti devo, deverei ou deveria, / a inconstante chuva de alegria.”
“Tentar encontrar coisas que se pressentem”, o desafio que Pedro Tamen legou.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 678, 2021-08-04, p. 9.
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