“Este livro é o resultado de uma
série de conversas que tive com escritores sobre os seus modos de olhar o
mundo, de o imaginar, sobre os seus modos de criar e sobre as condições em que
criam. Não é, por isso, um estudo sobre o funcionamento do mercado editorial,
nem um esboço sobre o panorama da situação actual portuguesa no que à
publicação de livros diz respeito.” Assim começa a “Nota Prévia” de Inês
Fonseca Santos ao seu livro Vale a Pena?
- Conversas com Escritores (Col. “Retratos da Fundação”. Lisboa: Fundação
Francisco Manuel dos Santos, 2017), em que a palavra “pena” surge em itálico, a
chamar a atenção para o jogo de ideias que a palavra permite, entre o trabalho
e o instrumento de escrita.
Parceiros de conversas foram Luís
Quintais (n. 1968), António Mega Ferreira (n. 1949), Álvaro Magalhães (n. 1951), Mário de Carvalho (n. 1944), António
Cabrita (n. 1959), Afonso Cruz (n. 1971), Helder Macedo (n. 1935), Paulo José Miranda (n. 1965), Catarina Sobral (n. 1985), Miguel Real (n. 1953) e Patrícia
Portela (n. 1974), com entradas de Manuel António Pina, Eduardo Lourenço e de Alexandra Lucas Coelho e referências a muitos nomes do universo da escrita (Virginia
Woolf, Paul Valéry, Jorge Luis Borges, Arturo Pérez-Reverte, Fernando Pessoa,
Quino, Italo Calvino, José Cardoso Pires, Saramago, entre outros).
Poderá o leitor esperar resposta
à pergunta que configura o título deste resultado de conversas, em género de
reportagem desenvolvida? No final, é a própria autora que responde: “Não se
espere, neste último capítulo, uma resposta. Para compor este livro, escolhi
conversar com escritores que respondem às perguntas com outras perguntas. Por
isso, se peço que me digam o motivo que os levou a escrever ou o motivo por que
continuam a escrever, uns falam-me de revoluções e leituras, outros de rimas
adolescentes e acasos... Recolho, portanto, a circunstância, não tanto o
motivo, que todos sabemos insondável.”
Em 1985, o Libération publicou, em número excepcional (Março), a revista
“Pourquoi écrivez-vous?” (retomando a ideia que a revista Littérature já tinha feito em 1919), reunindo as respostas
recebidas de 400 escritores de 80 países, aí se contando os portugueses Augusto
Abelaira, António Alçada Baptista, Almeida Faria, Agustina Bessa-Luís, José
Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, Fernando
Namora e José Saramago. Se a pergunta era simples, a resposta não o era tanto assim
- e, por isso, os organizadores, Daniel Rondeau e Jean-François Fogel,
concluíam a sua nota de abertura desta maneira: “La question n’est pas simple.
La plupart des écrivains ont voulu faire plus qu’y répondre: la dominer. C’est
pourquoi cette enquête est plus qu’un atlas littéraire ou un autre état des
lieux. C’est un exceptionnel auto-portrait de la littérature d’aujourd’hui. Les
écrivains s’écrivent. Tout va bien.” Na publicação francesa, não houve mediação
nem filtros e os escritores tiveram via aberta (apenas cerca de uma vintena de
depoimentos não tiveram publicação integral por se aproximarem mais do ensaio
sobre literatura); no trabalho de Inês Fonseca Santos, a selecção dos segmentos
e a montagem do “puzzle” ficou a cargo da autora. Contudo, a pergunta - como
foi feita em francês ou como foi apresentada em português - nunca encontrará
uma resposta óbvia, muito embora as justificações dadas possam permitir a
construção de retratos; assim, o Libération
concluiu que “les écrivains s’écrivent” e Inês Fonseca Santos remete-nos para o
“insondável” do motivo - respostas mais próximas do que parece...
A matéria recolhida deu para cinco
capítulos (e conclusão), todos eles abordando questões tão pertinentes quanto o
papel e o reconhecimento do intelectual, as condições para se ser escritor, a
leitura e a formação do escritor, a necessidade de uma “vida dupla” do escritor
(a profissão de que viver e a criação), o mercado livreiro e os prémios
literários e o papel dos leitores. No seu conjunto, uma visão multifacetada
sobre a condição e a situação do escritor em Portugal. Ou de
alguns escritores.
Há, pelo menos, duas certezas nesta teia que Inês Fonseca
Santos construiu, ambas dadas por textos literários citados: a primeira, logo
no início do livro, com o poema “A mão”, de Wislawa Szymborska (1923-2012,
Nobel da Literatura em 1996), a propósito da criação e dos efeitos da escrita («Vinte e sete ossos, / trinta e cinco
músculos, / cerca de duas mil células nervosas / em cada uma das pontas dos
cinco dedos. / É quanto basta / para escrever Mein Kampf / ou A Casinha do Ursinho Puff.»); a
segunda, ainda relacionada com a criação e também com a obra, poema devido a
Manuel António Pina (1943-2012), que encerra o livro - «Senhor, permite que algo permaneça,
/ alguma palavra ou alguma lembrança, / que alguma coisa possa ter sido / de
outra maneira, / não digo a morte, nem a vida, / mas alguma coisa mais
insubstancial. / Se não para que me deste os substantivos e os verbos, / o medo
e a esperança, / a urze e o salgueiro, / os meus heróis e os meus livros?» Bela
forma de concluir um livro que, a partir de perguntas, deixa perguntas para que
cada qual construa as suas respostas ou apenas porque a resposta é uma outra
pergunta...
Sublinhados
Reconhecimento - “Qualquer chefe cozinheiro ou qualquer modista ou
coisa parecida é mais importante do que um professor, e os professores são um
dos aspectos da representação social do saber; o professor tem saber, mas é
desvalorizado. E não são só os professores a serem desvalorizados; são
desvalorizados os escritores, os cientistas, os pintores, os artistas das mais
diversas áreas... Isto porquê? Porque o predomínio é o do negócio, o da
traficância, que joga com o recurso aos impulsos mais básicos, mais primários,
mais simples.” (Mário de Carvalho)
Surpreender o leitor - “As boas narrativas são aquelas em que o
final desvia uns milímetros a expectativa do leitor. Não desvia completamente
para não defraudar o leitor, mas desvia o suficiente para o surpreender, para o
intrigar, para o espantar.” (Catarina Sobral)
Leitura e escrita - “A leitura é a grande escola da escrita. O que
não quer dizer que não tenha havido notáveis escritores que tenham lido pouco.
(...) É no acumular da leitura que vamos encontrando, e não é racionalmente, a
nossa voz, feita de uma pluralidade de vozes. (...) A escrita é sempre tudo
aquilo que lemos mais a diferença.” (António Mega Ferreira)
Ser escritor - “O escritor é, por essência, o herdeiro do
intelectual dos séculos XVIII e XIX. Não é um profeta, mas, não raro, intui os
caminhos negativos atravessados pela sociedade, denunciando-os, contribuindo
para os corrigir. Não é um justiceiro, mas revolta-se contra desigualdades
gritantes e apresenta alternativas sociais mais justas. Não é um sonhador, mas
sofre de profundas doses de lirismo que humanizam as leis sociais.” (Miguel
Real)
Literatura - “Precisamos da literatura, ou não continuaremos a ser
humanos. Em tudo, encontramos linguagem. Talvez o apocalipse anunciado seja só
uma provocação e uma orientação para se discutir o seu novo lugar na
contemporaneidade, se é que ainda lhe resta algum lugar; e, ao mesmo tempo,
apontar-lhe uma saída, a de uma outra forma de existir, nem que seja apenas
resistindo.” (Álvaro Magalhães)
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