domingo, 12 de janeiro de 2014

Aarão de Lacerda e a Grande Guerra



Em 4 de Maio de 1919, na Junta Patriótica do Norte, Aarão de Lacerda proferiu a conferência intitulada “O instante sangrento”, em homenagem aos Aliados. A comunicação passaria a livro, editado em Outubro (Para a filosofia da guerra. Porto: edição de Autor, 1919).
De maneira rápida, dado o propósito do texto, o autor relata o que levou o mundo à Grande Guerra, num percurso pessoal de que não está ausente a sua tomada de partido. Se olha para a cultura alemã com interesse e emoção, o mesmo não dirá da progressão psicológica do povo germânico ao longo dos tempos, como se pode ver na referência feita ao que aconteceu em 1870 e que esteve na origem de conflito entre a França e a Alemanha por causa da Alsácia-Lorena: “Vem 1870 e o alemão tornou-se agressivo e intolerante, envolvendo-se crescentemente numa ambição de mando, de hegemonia, que a dinastia Hohenzollern personalizou inconfundivelmente”.
A história é contada a partir de um retrato psicológico dos contendores, tal como adiante refere: “Vamos compreendendo as causas primárias da guerra consubstanciadas em fortes antinomias psicológicas que extremavam a Alemanha da França e da Inglaterra, o país por excelência do governo representativo.” Nesse percurso, há lugar recorrente para imagens fortes: “A Alemanha tentacular começa a empreender a luta política, ambicionando a conquista dos mercados mundiais em luta aberta com a Inglaterra que ela chamava estado vampiro. Assustava-a o imperialismo britânico, que resolveu combater incessantemente por meio de uma organização artificial que decerto a faria baquear, tão forçada era.”
O uso de referências a poetas e pintores que pela sua arte traçaram quadros de momentos da guerra leva o próprio autor a explorar determinadas imagens, como a do “Mefistófeles transfigurado em Bismarck” que escolhe para pintar Guilherme II, assim traçando um quadro de glória e de poder: “Toda aquela gente da Germânia se sentia próxima dos deuses quando via desfilar ante seus olhos maravilhados as longas revistas militares ao som de acordes marciais e despertivos. O kaiser aureolava-se de um prestígio estranho: era ele o Messias, o futuro senhor do mundo.” E, logo a seguir, a destruição do mito, em antítese, também pelo recurso a imagens intensas: “Por fim, o último acto da guerra veio mostrar que esse chefe invencível dos exércitos germânicos não passava do arremedo ridículo de um Lohengrin ou Parsifal de papelão.”
A evolução do que foi o início da Primeira Grande Guerra apresenta-se rápida, tal como veloz foi o tempo em que o conflito se agudizou, porque “o atentado contra o príncipe herdeiro da Áustria não passou de um simples pretexto para lançar a Europa no embate temeroso” que já vinha sendo temido e anunciado.
Aarão de Lacerda conclui a sua conferência com a invocação do papel corajoso demonstrado pelo povo belga, logo a partir da invasão germânica: “a resposta foi a resistência heróica em defesa da justiça, levando a efeito uma epopeia lendária digna do maior conto épico”, gesto prontamente ajudado por aliados. Mas o olhar do autor sobre a Bélgica enche-se de tristeza e de revolta pelas mortes e pela destruição de obras de arte que os invasores cometeram – construções, pinturas, bibliotecas, num clima de barbárie em que as “lacrimas rerum caíam das ruínas, dos monumentos esfacelados que rangiam em derrocadas sinistras”.
O final da palestra é um apelo à paz e uma incursão na memória – “Recordemos com unção os nossos que se bateram e morreram na batalha de La Lys e em África! A sua lembrança sempre vívida dita-nos um grande dever a cumprir: esquecer os ódios que nos separam e salvar com o nosso trabalho, com a nossa fé, a Pátria ameaçada de tantos perigos.” É que já se apagara “a labareda do inferno”, mas ficara “a saudade dos queridos soldados que lá se consumiram”!
Nesta leitura emocionada do que foi o percurso da Grande Guerra, de que Aarão de Lacerda (1890-1947) foi contemporâneo, ressalta o carácter desumano do conflito bélico, fortemente construído sobre imagens de ambição excessiva por parte da política e sobre imagens de catástrofe e de sofrimento no que aos povos respeita.

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