Em 4 de Maio de 1919, na Junta Patriótica do Norte, Aarão
de Lacerda proferiu a conferência intitulada “O instante sangrento”, em
homenagem aos Aliados. A comunicação passaria a livro, editado em Outubro (Para a filosofia da guerra. Porto: edição
de Autor, 1919).
De maneira rápida, dado o propósito do texto, o autor
relata o que levou o mundo à Grande Guerra, num percurso pessoal de que não
está ausente a sua tomada de partido. Se olha para a cultura alemã com
interesse e emoção, o mesmo não dirá da progressão psicológica do povo
germânico ao longo dos tempos, como se pode ver na referência feita ao que
aconteceu em 1870 e que esteve na origem de conflito entre a França e a
Alemanha por causa da Alsácia-Lorena: “Vem 1870 e o alemão tornou-se agressivo
e intolerante, envolvendo-se crescentemente numa ambição de mando, de hegemonia,
que a dinastia Hohenzollern personalizou inconfundivelmente”.
A história é contada a partir de um retrato psicológico
dos contendores, tal como adiante refere: “Vamos compreendendo as causas
primárias da guerra consubstanciadas em fortes antinomias psicológicas que
extremavam a Alemanha da França e da Inglaterra, o país por excelência do
governo representativo.” Nesse percurso, há lugar recorrente para imagens
fortes: “A Alemanha tentacular começa a empreender a luta política,
ambicionando a conquista dos mercados mundiais em luta aberta com a Inglaterra
que ela chamava estado vampiro. Assustava-a
o imperialismo britânico, que resolveu combater incessantemente por meio de uma
organização artificial que decerto a faria baquear, tão forçada era.”
O uso de referências a poetas e pintores que pela sua
arte traçaram quadros de momentos da guerra leva o próprio autor a explorar
determinadas imagens, como a do “Mefistófeles transfigurado em Bismarck” que
escolhe para pintar Guilherme II, assim traçando um quadro de glória e de
poder: “Toda aquela gente da Germânia se sentia próxima dos deuses quando via
desfilar ante seus olhos maravilhados as longas revistas militares ao som de
acordes marciais e despertivos. O kaiser aureolava-se de um prestígio estranho:
era ele o Messias, o futuro senhor do mundo.” E, logo a seguir, a destruição do
mito, em antítese, também pelo recurso a imagens intensas: “Por fim, o último
acto da guerra veio mostrar que esse chefe invencível dos exércitos germânicos
não passava do arremedo ridículo de um Lohengrin ou Parsifal de papelão.”
A evolução do que foi o início da Primeira Grande
Guerra apresenta-se rápida, tal como veloz foi o tempo em que o conflito se
agudizou, porque “o atentado contra o príncipe herdeiro da Áustria não passou
de um simples pretexto para lançar a Europa no embate temeroso” que já vinha
sendo temido e anunciado.
Aarão de Lacerda conclui a sua conferência com a
invocação do papel corajoso demonstrado pelo povo belga, logo a partir da
invasão germânica: “a resposta foi a resistência heróica em defesa da justiça,
levando a efeito uma epopeia lendária digna do maior conto épico”, gesto
prontamente ajudado por aliados. Mas o olhar do autor sobre a Bélgica enche-se
de tristeza e de revolta pelas mortes e pela destruição de obras de arte que os
invasores cometeram – construções, pinturas, bibliotecas, num clima de barbárie
em que as “lacrimas rerum caíam das
ruínas, dos monumentos esfacelados que rangiam em derrocadas sinistras”.
O final da palestra é um apelo à paz e uma incursão na
memória – “Recordemos com unção os nossos que se bateram e morreram na batalha
de La Lys e em África! A sua lembrança sempre vívida dita-nos um grande dever a
cumprir: esquecer os ódios que nos separam e salvar com o nosso trabalho, com a
nossa fé, a Pátria ameaçada de tantos perigos.” É que já se apagara “a labareda
do inferno”, mas ficara “a saudade dos queridos soldados que lá se consumiram”!
Nesta
leitura emocionada do que foi o percurso da Grande Guerra, de que Aarão de
Lacerda (1890-1947) foi contemporâneo, ressalta o carácter desumano do conflito
bélico, fortemente construído sobre imagens de ambição excessiva por parte da
política e sobre imagens de catástrofe e de sofrimento no que aos povos
respeita.
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