terça-feira, 22 de outubro de 2013

Maria Luísa de Barros: "Há sempre um horizonte"


 
O título do livro de Maria Luísa de Barros faz uma promessa ao leitor – a de que… Há sempre um horizonte (Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2013). Como quem diz: as hipóteses de salvação aparecem-nos sempre pelo caminho. Ou, citando Clarice Lispector, que epigrafa a história: “Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas…” Bom programa de vida, por certo!
A primeira justificação da autora para o aparecimento deste escrito é simples e surge na “introdução”: “Se me perguntam porque escrevo, mais uma vez a minha resposta é simples. Gosto de palavrar.” Então, acredita o leitor, a questão já várias vezes aflorou e a resposta renova-se na sua repetição, reforçando o poder da palavra e da imaginação. Salman Rushdie, num artigo publicado na revista Granta em 1998 (recentemente divulgado no nº 2 da edição portuguesa da mesma revista), registava que “o espaço interior da nossa imaginação é um teatro que nunca pode ser fechado” e, insistindo no poder da palavra, destacava que a literatura detinha a capacidade única de nos deixar “ouvir vozes que falam de tudo de todas as maneiras possíveis”.
O leitor encontra Inês, a personagem central desta história, “sentada num rochedo com os braços em volta dos joelhos, perdida no tempo, olhando o mar”, até ser “despertada do estado de letargia em que se encontrava por um bater de asas de um pássaro”. A moldura é a da Arrábida, que funciona como espaço de refúgio e de contemplação, várias vezes chamado para cenário, onde uma outra personagem, um “desconhecido”, também se albergava na sua solidão.
Está-se em 2012 e o encontro com esta ausência leva a narração, via analepse, até uma década antes, quando, no Brasil, Inês teve uma história, um caso, com Iraci, que a deixou marcada e a perseguiu por esse tempo de dez anos. Nesta visita à serra, que se repete nos dias, acontece a oportunidade para que a personagem se conheça, revelada num dia em que o “desconhecido” se descobre e aproxima – afinal, ambos se deixavam escorrer na paisagem, ora porque a poesia de Sebastião da Gama levara Inês “a compreender melhor a serra e os seus encantos”, ora porque aquele cenário representava para o homem agora revelado uma mescla de “deleite, evasão, reflexão” e “busca da [sua] verdade”. A partir daqui, não pode haver jogo anónimo e as personagens apresentam-se: Inês, tradutora, viúva, e David, arquitecto, divorciado.
A relação vai correndo lenta, numa atitude de dar tempo à personagem feminina para se convencer, para se reconstruir. Contudo, são frequentíssimas as situações em que tudo acontece “de repente”, “rapidamente”, “num ápice”, em situações que vencem o narrador, que tem alguma dificuldade em relatar a passagem do tempo.
Apesar de, desde início, parecer ao leitor que a história de Inês e David terá um bom final, algumas dificuldades se vão interpondo, como aquela em que o irmão gémeo de David é visto por Inês num café, gerando-se uma situação de equívoco, agravado por ele estar com uma mulher, pensando Inês que se tratava de David… ou uma outra em que David, na sequência de um azarado salto de parapente, é hospitalizado e corre perigo de vida.
As adversidades são vencidas e a história acaba num episódio de felicidade. Ambas as personagens sobem ao morro da serra de onde a história tinha partido, cerca de uma centena de páginas antes, olham-se, dão-se as mãos e metaforizam-se: “tu és a minha vela”, diz ele; “e tu a minha embarcação”, conclui ela.
Neste trajecto, em que duas personagens se revelam, muitas cenas acontecem tendo a mesa e o momento da refeição como espaço e tempo privilegiados, muito embora as descrições não sejam aprofundadas. Esse tempo funciona sobretudo como possibilidade de encontro, como pontear que vai marcando a história, fechando segmentos de pequenos avanços, embora numa situação, quando ambos estão na quinta a preparar um churrasco e ele lhe sugere irem “atear o carvão”, o momento possa ser lido na sua dimensão simbólica como janela aberta para uma imagem especular de um outro ateamento, o da paixão.
A escrita desta história não se confronta com heróis, pois que uma e outra personagens se confundem com criaturas comuns num quotidiano entrecruzado de instantes de felicidade, de horas de preocupação, de momentos de banalidade. A acção vai avançando com alguma intromissão por parte do narrador, que, por vezes, se identifica com a personagem feminina, numa história cujos indicadores vão quase sempre apontando na única direcção do desfecho feliz.
Resultado de “palavrar”, dizia-se no início, é este livro. Mas nesse jogo em que as palavras se vestem com emoções e se escondem em actores, teria valido a pena um mais exaustivo trabalho em torno das personagens, conferindo-lhes maior densidade psicológica, dando-lhes mais autonomia, confrontando-as mais com o esforço a ser feito na descoberta e no desenho do horizonte. De igual forma, mesmo porque o título nos remete para a paisagem, a paleta da escrita poderia derramar mais cor sobre os espaços. Afinal, o horizonte ganha-se na justa medida em que a criatura se cruza com o espaço e o domina ou por ele se deixa arrebatar!
O argumento que cimenta esta relação de Inês e de David – o da busca da felicidade, tema que a autora, de resto, tem já tratado noutras obras – alimenta uma narrativa de hoje, o que, com um olhar feminino sobre o mundo e sobre as relações, dá o condimento necessário para uma história bem alicerçada, assim o acto de a contar se deixe densificar pela palavra, ela própria a única possibilidade para que estas personagens vivam e possam mesmo ser reencontradas num outro capítulo, num outro título, numa outra obra. Fica o desafio.
[Na apresentação da obra, em 20 de Outubro, na Casa da Baía, em Setúbal]
 

Sem comentários: