O título do livro de Maria Luísa de Barros faz uma
promessa ao leitor – a de que… Há sempre
um horizonte (Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2013). Como quem diz: as
hipóteses de salvação aparecem-nos sempre pelo caminho. Ou, citando Clarice
Lispector, que epigrafa a história: “Ainda bem que sempre existe outro dia. E
outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas…” Bom programa
de vida, por certo!
A primeira justificação da autora para o aparecimento
deste escrito é simples e surge na “introdução”: “Se me perguntam porque
escrevo, mais uma vez a minha resposta é simples. Gosto de palavrar.” Então,
acredita o leitor, a questão já várias vezes aflorou e a resposta renova-se na
sua repetição, reforçando o poder da palavra e da imaginação. Salman Rushdie,
num artigo publicado na revista Granta
em 1998 (recentemente divulgado no nº 2 da edição portuguesa da mesma revista),
registava que “o espaço interior da nossa imaginação é um teatro que nunca pode
ser fechado” e, insistindo no poder da palavra, destacava que a literatura
detinha a capacidade única de nos deixar “ouvir vozes que falam de tudo de todas
as maneiras possíveis”.
O leitor encontra Inês, a personagem central desta
história, “sentada num rochedo com os braços em volta dos joelhos, perdida no
tempo, olhando o mar”, até ser “despertada do estado de letargia em que se
encontrava por um bater de asas de um pássaro”. A moldura é a da Arrábida, que
funciona como espaço de refúgio e de contemplação, várias vezes chamado para
cenário, onde uma outra personagem, um “desconhecido”, também se albergava na
sua solidão.
Está-se em 2012 e o encontro com esta ausência leva a
narração, via analepse, até uma década antes, quando, no Brasil, Inês teve uma
história, um caso, com Iraci, que a deixou marcada e a perseguiu por esse tempo
de dez anos. Nesta visita à serra, que se repete nos dias, acontece a oportunidade
para que a personagem se conheça, revelada num dia em que o “desconhecido” se
descobre e aproxima – afinal, ambos se deixavam escorrer na paisagem, ora
porque a poesia de Sebastião da Gama levara Inês “a compreender melhor a serra
e os seus encantos”, ora porque aquele cenário representava para o homem agora
revelado uma mescla de “deleite, evasão, reflexão” e “busca da [sua] verdade”.
A partir daqui, não pode haver jogo anónimo e as personagens apresentam-se:
Inês, tradutora, viúva, e David, arquitecto, divorciado.
A relação vai correndo lenta, numa atitude de dar
tempo à personagem feminina para se convencer, para se reconstruir. Contudo,
são frequentíssimas as situações em que tudo acontece “de repente”,
“rapidamente”, “num ápice”, em situações que vencem o narrador, que tem alguma
dificuldade em relatar a passagem do tempo.
Apesar de, desde início, parecer ao leitor que a
história de Inês e David terá um bom final, algumas dificuldades se vão
interpondo, como aquela em que o irmão gémeo de David é visto por Inês num
café, gerando-se uma situação de equívoco, agravado por ele estar com uma
mulher, pensando Inês que se tratava de David… ou uma outra em que David, na
sequência de um azarado salto de parapente, é hospitalizado e corre perigo de
vida.
As adversidades são vencidas e a história acaba num
episódio de felicidade. Ambas as personagens sobem ao morro da serra de onde a
história tinha partido, cerca de uma centena de páginas antes, olham-se, dão-se
as mãos e metaforizam-se: “tu és a minha vela”, diz ele; “e tu a minha
embarcação”, conclui ela.
Neste trajecto, em que duas personagens se revelam,
muitas cenas acontecem tendo a mesa e o momento da refeição como espaço e tempo
privilegiados, muito embora as descrições não sejam aprofundadas. Esse tempo
funciona sobretudo como possibilidade de encontro, como pontear que vai marcando
a história, fechando segmentos de pequenos avanços, embora numa situação,
quando ambos estão na quinta a preparar um churrasco e ele lhe sugere irem
“atear o carvão”, o momento possa ser lido na sua dimensão simbólica como
janela aberta para uma imagem especular de um outro ateamento, o da paixão.
A escrita desta história não se confronta com heróis,
pois que uma e outra personagens se confundem com criaturas comuns num
quotidiano entrecruzado de instantes de felicidade, de horas de preocupação, de
momentos de banalidade. A acção vai avançando com alguma intromissão por parte
do narrador, que, por vezes, se identifica com a personagem feminina, numa
história cujos indicadores vão quase sempre apontando na única direcção do
desfecho feliz.
Resultado de “palavrar”, dizia-se no início, é este
livro. Mas nesse jogo em que as palavras se vestem com emoções e se escondem em
actores, teria valido a pena um mais exaustivo trabalho em torno das
personagens, conferindo-lhes maior densidade psicológica, dando-lhes mais
autonomia, confrontando-as mais com o esforço a ser feito na descoberta e no
desenho do horizonte. De igual forma, mesmo porque o título nos remete para a
paisagem, a paleta da escrita poderia derramar mais cor sobre os espaços.
Afinal, o horizonte ganha-se na justa medida em que a criatura se cruza com o
espaço e o domina ou por ele se deixa arrebatar!
O argumento que cimenta esta relação de Inês e de
David – o da busca da felicidade, tema que a autora, de resto, tem já tratado
noutras obras – alimenta uma narrativa de hoje, o que, com um olhar feminino
sobre o mundo e sobre as relações, dá o condimento necessário para uma história
bem alicerçada, assim o acto de a contar se deixe densificar pela palavra, ela
própria a única possibilidade para que estas personagens vivam e possam mesmo
ser reencontradas num outro capítulo, num outro título, numa outra obra. Fica o
desafio.
[Na apresentação da obra, em 20 de Outubro, na Casa da Baía, em Setúbal]
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