sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Brissos-Lino: a propósito de "Fado - A torcer o destino"



Quase uma centena de páginas depois de começar a narrativa que integra a obra Fado – A torcer o destino, de José Brissos-Lino (Lisboa: Novos Autores, 2013), há uma frase-chave sobre a personagem Maria João – “não era da terra e ninguém sabia exactamente de onde viera”.
Está o leitor em companhia da personagem que vai sustentar toda a história, Maria de Fátima por nascimento, que assume o seu trajecto mudando o nome para Maria João (e, depois, para Mary Jane), numa atitude de escolha do nome mais adequado (questão identitária), um pouco a misturar atributos de géneros, a tornar-se um ser outro a partir do momento em que descobre que a vida pode ser outra coisa. Com efeito, a frase que seleccionei mais não é do que um indício do que pode vir a ser a trama desta história – a descoberta da história da própria personagem, num percurso de reconstrução da identidade, num recuo até às origens, sempre dando crédito à sua força de viver o presente.
Essa frase marca a viragem no curso da narrativa, que passa a viver em torno dessa personagem de enigmática origem e de não menor enigmática forma de ser e de ver o mundo. Mas, por outro lado, é também o percurso de descoberta que Maria João vai fazer o responsável pela coerência da narrativa, a explicação para outra não menos enigmática figura que surpreende o leitor desde o início, o Algarvio, pescador em Setúbal, que se sentia mais seguro sobre a água do que sobre a terra.
A história de Maria João é um itinerário através de enigmas, não só do seu (quanto à sua origem), mas também dos de outros – como o de Arcanjo ou o da própria organização denominada “Fadistas”, em que acaba por colaborar.
A narrativa passa por locais como Setúbal, Santiago do Cacém e Lisboa (em Portugal) e Nova Iorque (nos Estados Unidos), todos eles albergando os seus segredos e outros tantos conjuntos de histórias ou episódios que vão marcando o todo que Fado é, haja em vista segmentos como os dos encontros com o jovem poeta Sebastião da Gama, com o eremita da Arrábida (figura entre o humano e o profético) ou com o moleiro Arcanjo (figura que só por si valeria uma longa história, mestre que despoleta o percurso de demanda em Maria João); haja em vista ainda trechos com pequenos quadros que vivem pela sua autonomia também, como os da procissão da Senhora do Monte, da matança do porco, do Monte dos Malucos, do Cabeça de Abóbora ou dos tratadores enjaulados no Jardim Zoológico.
Quanto às personagens, os seus nomes carregam frequentemente uma dimensão simbólica com resquícios mais ou menos bíblicos, pelo menos proféticos e sábios, sendo que algumas das figuras surgem retratadas numa dimensão que ultrapassa o humano, assumindo-se como marcos ou referências, com um saber indiscutível aliado a uma simplicidade desconcertante. O narrador não passa incólume pelo meio destas figuras, deixando que o seu ponto de vista surja frequentemente grudado ao pensamento das próprias personagens, numa quase relação de identificação, sobretudo com Maria João.
O tempo desta história ocorre entre Fevereiro de 1941 e Setembro de 1945, percurso fortemente marcado por indicadores históricos conhecidos: o ciclone de 1941 marca o início da obra e da história, descrição bem construída quanto aos efeitos locais e também quanto ao retrato calamitoso que deixou como herança, podendo mesmo ser visto como metáfora de outros ciclones que assolavam o mundo, à data – o do regime político em Portugal, que aprisionava, com referências múltiplas à polícia política e à perseguição, e o da Segunda Grande Guerra, também ela um intenso marcador do tempo nesta história, que se conclui, de resto, com a assinatura da rendição japonesa, em Setembro de 1945, quando o grupo “Fadistas” é desmantelado e Maria João, agora Mary Jane, vive fase de sucesso e de estabilidade nos Estados Unidos, o “eldorado” para todos os que da Europa tinham fugido na primeira metade da década de 1940.
Por este romance circulam personagens históricas como Peggy Guggenheim, Max Ernst, Saint-Exupéry, Salazar, Aristides Sousa Mendes ou Sebastião da Gama; passam referências à Grande Guerra, ao regime político, à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, aos espiões que povoavam Lisboa e a zona do Estoril, às falsificações documentais, aos recursos usados para a expressão crítica e oposicionista – como é paradigmático o caso do nome Lazaras dado ao burro por Arcanjo, anagrama de Salazar. A região de Setúbal revê-se também neste trajecto, com referências à vida dos pescadores, ao Sado, à Arrábida, à fábrica de óleo de baleia, ao desenho da cidade ou ao acidente com uma aeronave em Tróia.
Algumas das personagens vão fazendo aprendizagens ao longo da história, sendo o caso mais evidente o da própria Maria João, que começa um percurso de regras numa organização, paradoxalmente a actuar à margem da lei, passo que concilia a personagem consigo própria, ela que se definia à custa de uma metáfora, que contrariava toda a norma: “O pensamento é um cavalo selvagem a correr nos campos, não o posso amarrar.”
Maria João, que descobre a sua data de nascimento e a origem da morte da mãe numa lápide de cemitério, é a personagem que pauta o avanço da narrativa e que também a faz pausar com o recurso ao “flashback” da sua memória ou da tentativa de reconstituição do seu percurso de vida. Esta personagem lida com tanto à-vontade com o universo agitado onde existe “o ronco irritante dos automóveis em coro nas ruas a engasgarem-se nas subidas mais íngremes” como com o “interior despovoado, sem vivalma”, da “cidade dos mortos”, duas imagens que são também os extremos da sua história – o vazio que se fizera quanto aos primeiros tempos da sua vida e a plenitude que encontrou ao descobrir a sua história, afinal, o poder da inscrição.
Fado – A torcer o destino tem, assim, o título plenamente justificado, estabelecendo a circularidade entre o “fado” e o “destino”, ao mesmo tempo que proporciona ao leitor o contacto com momentos que também fizeram a identidade e o retrato do século XX, deixando que da sua personagem principal irradie o ritmo que formata e condiciona a própria história, uma história que cada leitor faz de cada vez que procura afinidades no universo que são as vidas das personagens.


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Adversidade – “Quando vem a adversidade sabe sempre bem encher o peito e fazer-lhe frente. Mostrar-lhe que um dia ela há-de passar, por ser episódica ou mesmo cíclica, e nós ainda continuaremos por cá, porque a vida é nossa e não dela. É a nossa vingança secreta.” (pg. 106)
Aparência – “Nesta vida temos de ser sempre camaleões, estar sempre a mudar de aparência. Num dia senhor, noutro dia operário. Num dia dama, noutro dia criada. Não nos podemos arriscar a ser reconhecidos pela roupa…” (pg. 176)
Casa – “A nossa casa é onde está o nosso coração.” (pg. 52)
Conflitos – “Os conflitos entre os homens, apesar de estúpidos na sua natureza o mais que se possa imaginar, são sempre episódios pontuais na eterna linha do tempo.” (pg. 250)
Coragem – “Ser corajosa não é ter medo. (…) Ser corajosa é enfrentar a situação, mesmo quando temos medo.” (pg. 64)
Dor – “A melhor maneira de lidar com a dor de uma pessoa é (…) exorcizá-la pela via do disparate e da loucura. Resulta no momento, pelo menos.” (pg. 164)
Estar consigo – “Quem está sempre rodeado de muita gente não tem tempo, nem condições, de ficar consigo mesmo. Está centrado nos outros, na forma como comunica, na opinião das pessoas, nos seus sentimentos e ideias. (…) Qualquer pessoa precisa de ter momentos a sós consigo mesmo, reflectir nas suas próprias ideias, sentimentos e sensações. Se não o fizer, corre o risco de viver sempre em função do eco que recebe dos outros sobre si mesmo.” (pp. 45-46)
Guerra – “A guerra é uma fábrica de órfãos e de viúvas. E de loucos.” (pg. 29)
Morte – “Tudo o que fala em morte incomoda as pessoas.” (pg. 157)
Tempo – “Um minuto é um minuto e um segundo é um segundo. Tudo conta. Se querem ser bons profissionais têm de ser pontuais. Se marcamos qualquer coisa às cinco, é mesmo às cinco, não é às cinco e dois minutos. Se (…) falharem um minuto, falham em qualquer coisa.” (pg. 186)
[Na apresentação da obra, em 4 de Outubro, no Salão Nobre da CMS]

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