Quase
uma centena de páginas depois de começar a narrativa que integra a obra Fado – A torcer o destino, de José
Brissos-Lino (Lisboa: Novos Autores, 2013), há uma frase-chave sobre a
personagem Maria João – “não era da terra e ninguém sabia exactamente de onde
viera”.
Está
o leitor em companhia da personagem que vai sustentar toda a história, Maria de
Fátima por nascimento, que assume o seu trajecto mudando o nome para Maria João
(e, depois, para Mary Jane), numa atitude de escolha do nome mais adequado
(questão identitária), um pouco a misturar atributos de géneros, a tornar-se um
ser outro a partir do momento em que descobre que a vida pode ser outra coisa.
Com efeito, a frase que seleccionei mais não é do que um indício do que pode
vir a ser a trama desta história – a descoberta da história da própria
personagem, num percurso de reconstrução da identidade, num recuo até às
origens, sempre dando crédito à sua força de viver o presente.
Essa
frase marca a viragem no curso da narrativa, que passa a viver em torno dessa
personagem de enigmática origem e de não menor enigmática forma de ser e de ver
o mundo. Mas, por outro lado, é também o percurso de descoberta que Maria João
vai fazer o responsável pela coerência da narrativa, a explicação para outra
não menos enigmática figura que surpreende o leitor desde o início, o Algarvio,
pescador em Setúbal, que se sentia mais seguro sobre a água do que sobre a
terra.
A
história de Maria João é um itinerário através de enigmas, não só do seu
(quanto à sua origem), mas também dos de outros – como o de Arcanjo ou o da
própria organização denominada “Fadistas”, em que acaba por colaborar.
A
narrativa passa por locais como Setúbal, Santiago do Cacém e Lisboa (em
Portugal) e Nova Iorque (nos Estados Unidos), todos eles albergando os seus
segredos e outros tantos conjuntos de histórias ou episódios que vão marcando o
todo que Fado é, haja em vista
segmentos como os dos encontros com o jovem poeta Sebastião da Gama, com o
eremita da Arrábida (figura entre o humano e o profético) ou com o moleiro
Arcanjo (figura que só por si valeria uma longa história, mestre que despoleta
o percurso de demanda em Maria João); haja em vista ainda trechos com pequenos
quadros que vivem pela sua autonomia também, como os da procissão da Senhora do
Monte, da matança do porco, do Monte dos Malucos, do Cabeça de Abóbora ou dos
tratadores enjaulados no Jardim Zoológico.
Quanto
às personagens, os seus nomes carregam frequentemente uma dimensão simbólica
com resquícios mais ou menos bíblicos, pelo menos proféticos e sábios, sendo
que algumas das figuras surgem retratadas numa dimensão que ultrapassa o
humano, assumindo-se como marcos ou referências, com um saber indiscutível
aliado a uma simplicidade desconcertante. O narrador não
passa incólume pelo meio destas figuras, deixando que o seu ponto de vista
surja frequentemente grudado ao pensamento das próprias personagens, numa quase
relação de identificação, sobretudo com Maria João.
O
tempo desta história ocorre entre Fevereiro de 1941 e Setembro de 1945,
percurso fortemente marcado por indicadores históricos conhecidos: o ciclone de
1941 marca o início da obra e da história, descrição bem construída quanto aos
efeitos locais e também quanto ao retrato calamitoso que deixou como herança,
podendo mesmo ser visto como metáfora de outros ciclones que assolavam o mundo,
à data – o do regime político em Portugal, que aprisionava, com referências
múltiplas à polícia política e à perseguição, e o da Segunda Grande Guerra,
também ela um intenso marcador do tempo nesta história, que se conclui, de
resto, com a assinatura da rendição japonesa, em Setembro de 1945, quando o
grupo “Fadistas” é desmantelado e Maria João, agora Mary Jane, vive fase de sucesso
e de estabilidade nos Estados Unidos, o “eldorado” para todos os que da Europa
tinham fugido na primeira metade da década de 1940.
Por
este romance circulam personagens históricas como Peggy Guggenheim, Max Ernst,
Saint-Exupéry, Salazar, Aristides Sousa Mendes ou Sebastião da Gama; passam
referências à Grande Guerra, ao regime político, à Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado, aos espiões que povoavam Lisboa e a zona do Estoril, às
falsificações documentais, aos recursos usados para a expressão crítica e oposicionista
– como é paradigmático o caso do nome Lazaras dado ao burro por Arcanjo, anagrama
de Salazar. A região de Setúbal revê-se também neste trajecto, com referências
à vida dos pescadores, ao Sado, à Arrábida, à fábrica de óleo de baleia, ao
desenho da cidade ou ao acidente com uma aeronave em Tróia.
Algumas
das personagens vão fazendo aprendizagens ao longo da história, sendo o caso
mais evidente o da própria Maria João, que começa um percurso de regras numa
organização, paradoxalmente a actuar à margem da lei, passo que concilia a
personagem consigo própria, ela que se definia à custa de uma metáfora, que
contrariava toda a norma: “O pensamento é um cavalo selvagem a correr nos
campos, não o posso amarrar.”
Maria
João, que descobre a sua data de nascimento e a origem da morte da mãe numa
lápide de cemitério, é a personagem que pauta o avanço da narrativa e que
também a faz pausar com o recurso ao “flashback” da sua memória ou da tentativa
de reconstituição do seu percurso de vida. Esta personagem lida com tanto
à-vontade com o universo agitado onde existe “o ronco irritante dos automóveis
em coro nas ruas a engasgarem-se nas subidas mais íngremes” como com o “interior
despovoado, sem vivalma”, da “cidade dos mortos”, duas imagens que são também
os extremos da sua história – o vazio que se fizera quanto aos primeiros tempos
da sua vida e a plenitude que encontrou ao descobrir a sua história, afinal, o
poder da inscrição.
Fado – A torcer o destino tem, assim, o título plenamente justificado,
estabelecendo a circularidade entre o “fado” e o “destino”, ao mesmo tempo que
proporciona ao leitor o contacto com momentos que também fizeram a identidade e
o retrato do século XX, deixando que da sua personagem principal irradie o
ritmo que formata e condiciona a própria história, uma história que cada leitor
faz de cada vez que procura afinidades no universo que são as vidas das
personagens.
Marcadores
Adversidade – “Quando vem a adversidade sabe sempre bem encher o
peito e fazer-lhe frente. Mostrar-lhe que um dia ela há-de passar, por ser
episódica ou mesmo cíclica, e nós ainda continuaremos por cá, porque a vida é
nossa e não dela. É a nossa vingança secreta.” (pg. 106)
Aparência – “Nesta vida temos de ser sempre camaleões, estar
sempre a mudar de aparência. Num dia senhor, noutro dia operário. Num dia dama,
noutro dia criada. Não nos podemos arriscar a ser reconhecidos pela roupa…”
(pg. 176)
Casa – “A nossa casa é onde está o nosso coração.” (pg. 52)
Conflitos – “Os conflitos entre os homens, apesar de estúpidos
na sua natureza o mais que se possa imaginar, são sempre episódios pontuais na
eterna linha do tempo.” (pg. 250)
Coragem – “Ser corajosa não é ter medo. (…) Ser corajosa é
enfrentar a situação, mesmo quando temos medo.” (pg. 64)
Dor – “A melhor maneira de lidar com a dor de uma pessoa é (…) exorcizá-la
pela via do disparate e da loucura. Resulta no momento, pelo menos.” (pg. 164)
Estar consigo – “Quem está sempre rodeado de muita gente não tem
tempo, nem condições, de ficar consigo mesmo. Está centrado nos outros, na
forma como comunica, na opinião das pessoas, nos seus sentimentos e ideias. (…)
Qualquer pessoa precisa de ter momentos a sós consigo mesmo, reflectir nas suas
próprias ideias, sentimentos e sensações. Se não o fizer, corre o risco de
viver sempre em função do eco que recebe dos outros sobre si mesmo.” (pp.
45-46)
Guerra – “A guerra é uma fábrica de órfãos e de viúvas. E de loucos.” (pg.
29)
Morte – “Tudo o que fala em morte incomoda as pessoas.” (pg. 157)
Tempo – “Um minuto é um minuto e um segundo é um segundo. Tudo conta. Se querem ser bons profissionais têm de ser pontuais. Se marcamos qualquer coisa às cinco, é mesmo às cinco, não é às cinco e dois minutos. Se (…) falharem um minuto, falham em qualquer coisa.” (pg. 186)
Tempo – “Um minuto é um minuto e um segundo é um segundo. Tudo conta. Se querem ser bons profissionais têm de ser pontuais. Se marcamos qualquer coisa às cinco, é mesmo às cinco, não é às cinco e dois minutos. Se (…) falharem um minuto, falham em qualquer coisa.” (pg. 186)
[Na apresentação da obra, em 4 de Outubro, no Salão Nobre da CMS]
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