Florindo
Cardoso trabalhou no periódico O
Setubalense durante 14 anos (desde Outubro de 1999 até ao final do
periódico, em 2013). Com experiência jornalística acumulada noutros órgãos de
comunicação social regional, conhece o meio, aí incluindo as suas
potencialidades e também as suas fragilidades.
O
desaparecimento (ou final ou suspensão, chame-se-lhe o que se quiser) do jornal
O Setubalense foi percepcionado pelos
leitores logo que de trissemanário (com edições às segundas, quartas e sextas)
passou a bissemanário (suprimindo a saída a meio da semana), em 4 de Março de
2013, data em que, na primeira página, constava o seguinte destaque: “Medida temporária – Passamos a sair só duas vezes por semana – O nosso jornal
está numa fase de reordenamento da sua estrutura, acção fundamental para que
possa resistir aos tempos e continuar a servir a cidade, pelo que foi entendido
que a partir de agora, ainda que temporariamente, passe a ser publicado somente
duas vezes na semana, sendo suspensas as edições de quarta-feira. No mais breve
espaço possível queremos retomar a periodicidade normal. Esperamos a
compreensão dos nossos leitores, anunciantes e amigos.”
Pouco
tempo depois, quase subitamente, na sua edição de 10 de Maio de 2013, a última,
a notícia de primeira página do jornal era o seu final. Surpreendidos (ou não),
os leitores confrontaram-se com o desaparecimento daquele que constituía uma
referência social e cultural para Setúbal, muitas vezes apresentado como o
jornal regional mais antigo do país, com 158 anos (a fazer no início de Julho),
pressuposto assente numa informação de que só tem sido apresentada uma parte da
verdade: com efeito, a primeira vez que o título O Setubalense surgiu foi em Julho de 1855, pela mão e pela ideia de
João Carlos de Almeida Carvalho, um “coleccionador” de coisas e de histórias de
Setúbal, para ser interrompido dois anos depois, em 1857, com 131 números
publicados, apenas ressurgindo, na sua segunda fase, por 1916. Ora, o que tem
158 anos é o título, porque o jornal, como meio de comunicação, como objecto, é
bem mais jovem… pelo menos cerca de 60 anos mais jovem, se quisermos ser
benevolentes (uma vez que podem ainda ser consideradas as interrupções de 1927
– cerca de seis meses – ou a verificada posteriormente a 1974, durante a
publicação do Nova Vida, apenas tendo
reaparecido o título O Setubalense
por 1980).
A história, embora sucinta,
do periódico é o que ocupa o capítulo inicial de Os últimos dias do jornal ‘O Setubalense’, de Florindo Cardoso,
acabado de publicar (Setúbal: ed. de Autor, 2013), história completada com uma
cronologia que fecha o livro. O título desta obra sugere uma peça de
reportagem. Contudo, a razão desta obra não vai por esse caminho, antes pelo
trajecto pessoal do seu autor, com entradas em vários momentos do tempo de 14
anos que foi a relação profissional de Florindo Cardoso com o jornal e com uma
leitura sobre quais possam ter sido as razões que levaram ao fim do jornal.
Assim, este livro é também um relato autobiográfico, quer pela narrativa que é
contada na primeira pessoa relativa à experiência no jornal, quer pelo facto de
não lhe ser alheia a perspectiva da opinião, visível numa leitura pessoal, por
vezes, impressiva, dos acontecimentos e das razões que os originaram, não lhe
sendo alheia, aqui e ali, uma avaliação judicativa.
O que
pode levar um jornalista a fazer a reportagem ou a memória do final do jornal
em que trabalhou? Logo no início, Florindo Cardos não o esconde: “Este livro conta
de forma simples a minha experiência de trabalhar n‘O Setubalense, os problemas, as pressões, o relacionamento com os
agentes políticos, sociais e económicos.” Temos, pois, a experiência
autobiográfica; depois, vem a justificação, também ela marcada pelo mesmo
cariz, ainda que dominado pela identidade: “Considero importante falar sobre
esta etapa final do Jornal para que se feche um ciclo na minha vida.” Finalmente,
uma explicação: “Não se trata de um acto de vingança nem de um ajuste de
contas, apenas a minha versão dos acontecimentos, podendo assim os setubalenses
saber a verdade sobre o encerramento do seu Jornal.” Esta explicação não será
alheia a alguns comentários que ao longo da narrativa vão sendo feitos, sejam
eles quanto ao funcionamento do jornal, quanto ao ambiente de relações
interpessoais, quanto às incompatibilidades que o leitor vai sentindo
existirem. No entanto, este relato, com cunho fortemente pessoal, contém também
uma dedicatória: “Deixo uma homenagem aos colegas de O Setubalense que nestes dois últimos anos sofreram mas não
desistiram.”
Sabemos agora que o
pagamento pontual dos salários começou a falhar em Julho de 2011, facto que o
jornal não noticiou (talvez por combinação interna), muito embora salários em
atraso seja sempre um tema que, pelo envolvimento social e laboral, costuma
constituir notícia (e disso O Setubalense
só fez excepção no seu próprio caso).
A
crise do jornal O Setubalense terá
começado após o falecimento de João Carlos Fidalgo, membro da Plurijornal e
director da publicação entre 1995 e Junho de 2011, que Florindo Cardoso
considera ter sido “a alma” deste projecto, um elogio que tem muito de bom para
a memória mas que é demolidor quanto à sucessão. A partir daí, a “falta de
experiência da nova gerência e a ausência de contactos desta com o exterior
foram os principais entraves para a salvação do jornal”, razões obviamente
aliadas à crise por que o país e a região estão a passar. Mas, além destas
razões, Florindo Cardoso aponta ainda a responsabilidade ao facto de um
eventual aumento da circulação do jornal não ter sido tentado à custa “do
alargamento dos pontos de venda na região” e consequente tratamento informativo
sobre essas regiões, à falta de uma “gestão profissional que reunisse com as
entidades da região com vista à obtenção de campanhas publicitárias”, à
facilidade de acesso à informação através da net (com possibilidade de leitura
gratuita do jornal na respectiva página) e às relações da política com a
imprensa.
Relativamente a este último
aspecto, o capítulo “A relação do jornal com os políticos” diz sobre os
dirigentes políticos locais que temos tido e o espelho de oportunidades que a
imprensa tem ou não tem sido. Com efeito, Florindo Cardoso passa em revista a sua
relação profissional com os três últimos presidentes da Câmara de Setúbal –
Mata Cáceres, Carlos Sousa e Maria das Dores Meira –, sendo evidente que em
todos eles é visível o interesse quanto ao papel que a imprensa pode
desempenhar na visibilidade e imagem dos respectivos mandatos: aqui saltam
aspectos não de todo claros, uma vez que, sendo verdade que todos eles têm uma
diferente e diversa relação com a imprensa, também é verdade que ressaltam
aspectos de simpatia ou de antipatia do jornalista relativamente às figuras com
que se relaciona. O retrato resultante da experiência de Florindo Cardoso vai
ao ponto de atribuir responsabilidades ao actual executivo autárquico quanto ao
fim do jornal, o que deveria ser mais coerentemente explicado, uma vez que todos
conhecemos essa vertente relacional dos políticos com a imprensa, sempre
oscilante entre o amor e o ódio, apenas explicável pelas circunstâncias do
momento.
A vertente profissional de
Florindo Cardoso consta ainda na escolha que faz das suas experiências no
jornal, ora elegendo como muito marcante o acontecimento que foi a explosão num
prédio da zona de Montalvão em 2007 (assunto que dominou as notícias locais por
bom número de meses), ora seleccionando algumas das entrevistas que fez para a
rubrica das personalidades locais (dando visibilidade às conversas com Herman
José, Simone Fragoso, Rui David e Celina Piedade). Em boa verdade, quer a
reprodução das entrevistas, quer a lembrança da explosão deveriam constituir um
grupo separado da narrativa do fim do jornal, uma vez que, colocadas estas
referências no interior da história, há uma situação de estranheza
relativamente à lógica das escolhas e da ordenação do texto. Em defesa da
perspectiva autobiográfica, a experiência de escrita e de jornalista que Florindo
Cardoso pretendeu evidenciar deveria constituir uma segunda parte do livro,
independente daquilo que é o relato que justifica o título.
O
livro contém ainda, a abrir, três textos de outros tantos directores de órgãos
de comunicação social da região de Setúbal – Francisco Alves Rito (do Diário da Região), que questiona a
identidade da região de Setúbal enquanto não haja uma “libertação”
relativamente a Lisboa; Pedro Brinca (do Setúbal
na Rede), que enaltece o papel da imprensa regional; e Raul Tavares (do Sem Mais Jornal), que reflecte sobre a
necessidade de haver uma informação regional sustentável e sobre um futuro nada
auspicioso para este mesmo sector. É por estes textos que passa a reflexão
sobre o papel da imprensa regional hoje, importantes ainda para se perceber
razões de conjunto que podem ter contribuído para o desaparecimento do jornal O Setubalense, apenas um caso, mas que
pode ser paradigmático. O conjunto dos três testemunhos é importante, sobretudo
se relacionado com o final do livro – em jeito de conclusão, apaixonada e
emocionada, Florindo Cardoso confessa o desgosto pelo fim do jornal, não
contendo a marca do dissabor nem renunciando à tentação da denúncia: “Fomos
usados. Marionetas de um teatro controladas por alguém exterior que nos queria
mal ou não gostava de nós. Intencional ou não, eis a dúvida. Nunca entendi os
objectivos de certas pessoas em relação ao futuro da empresa.”
Os
últimos dias do jornal ‘O Setubalense’, de Florindo Cardoso, é um
contributo pessoal para a história. De cunho acentuadamente próprio, deixa a
marca da distância crítica para o leitor. Quando for feita a história da
imprensa regional em Setúbal, designadamente do título O Setubalense, este testemunho será importante, sem dúvida. Mas
terá de ser confrontado com outras leituras, com outras interpretações, com
outros testemunhos, não pelo que possa exigir o chamado “contraditório”, mas
porque o “puzzle” da actualidade exige a entrada de muitos intervenientes.
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