No início da década de 1940, Agostinho da Silva era editor e autor da colecção designada “À Volta do Mundo”, que tinha por segunda indicação “Textos para a Juventude”, deixando antever que o propósito de tal série, em cadernos de cerca de três dezenas de páginas, era alimentar a curiosidade e o saber juvenil, trazendo à mistura a ciência, as descobertas, a história, etc.
De 1943 é uma História dos Comboios, que surpreende o leitor logo no início, falando-lhe da exploração mineira – “Sabes talvez que, já desde tempos muito antigos, a Inglaterra extraía carvão de pedra das suas minas e o utilizava no consumo interno ou o exportava para o exterior; havia muita gente empregada na exploração e é do que há de mais horrível na história do trabalho humano a vida de pobres crianças de 4 e 5 anos que estavam 14 horas na mina conduzindo os cavalos que puxavam as vagonetas do carvão ou abrindo e fechando as portas que isolavam as secções da galeria.” A forma de tratamento por “tu”, como se de uma palestra ou conversa se tratasse, e a invocação de um momento histórico em que as personagens são crianças de uma sociedade em que se conjugam a miséria e a dureza no trabalho, para impressionar o seu leitor e o chamar para a dificuldade do mundo real, são ingredientes que prendem o leitor (ou o ouvinte), que despertam a proximidade, a curiosidade e a emoção. Da vida dos mineiros falará Agostinho da Silva nos parágrafos seguintes, chamando a atenção para a dificuldade de transporte dos materiais no subsolo, razão para o invento do transporte sobre carris.
O leitor descobre depois que foram inventados os carris, que assentaram sobre madeira, primeiro, e sobre pedra, depois, e que, só duas décadas após o invento dos carris, se chegou a uma forma que protegesse contra os descarrilamentos. Paralelamente, vamos seguindo a evolução da máquina a vapor desde Watt, passando por Robinson, Cugnot, Evans, Trewithick e Vivian, que foram adaptando o engenho mecânico ao antepassado do automóvel ou do comboio, até se chegar a Stephenson, construtor de uma locomotiva que “rebocava trinta toneladas, a uma velocidade de quase sete quilómetros” por hora, por meados da década de 1810.
Agostinho da Silva vai mostrando que os inventos e a técnica vão evoluindo e que as máquinas não surgiram de repente com a perfeição com que as conhecemos – a título de exemplo, a locomotiva “Foguete” (“The Rocket”), de Stephenson, pesando 4500 quilos e rebocando um comboio de 13 toneladas a 30 quilómetros à hora só surgiu por 1829. A lentidão dos progressos, sendo estes fruto do trabalho e do investimento, é marca que o jovem leitor vai assimilando, também não ficando de fora um olhar sobre as mentalidades e sobre o espanto e temores que tais máquinas causaram nas pessoas, fosse pela desconfiança perante a novidade, fosse pela adaptação necessária a novas formas de viver, fosse mesmo por razões económicas. Para lá da necessidade de cultivar o saber, destes escritos de Agostinho da Silva não está ausente a preocupação cívica e a formação humanista, pois, mesmo numa história do comboio, há uma veiculação de valores como a paz ou o relacionamento entre os povos – “Os primeiros construtores de caminhos de ferro tinham uma fé imensa nas possibilidades deste meio de locomoção e só assim lhes foi possível vencer as dificuldades técnicas e as que lhe opôs o ambiente; achavam que a causa era de uma importância essencial para a humanidade e por ela se bateram com uma inteligência e uma tenacidade admiráveis; um dos pontos que mais os entusiasmava era o pensarem que os comboios, pelas relações fáceis que estabeleceriam entre os homens de vários países, poderiam ser um meio de assegurar a paz universal que sempre desejaram os espíritos generosos”. E, depois de uma tal defesa, Agostinho da Silva não esquece o seu tom crítico relativamente ao andamento do mundo, rematando: “enganavam-se, claro, porque os motivos da guerra não vêm propriamente da falta de relações entre os homens: como te hei-de explicar um dia, são sobretudo causas económicas que provocam as lutas armadas”. E o leitor de hoje não esquecerá que se estava, nesta altura, a desenrolar a segunda guerra mundial…
O livro termina com datas e algumas curiosidades sobre o início dos caminhos de ferro em diversas nações, concluindo o historial com nota sobre a situação em Portugal, desde que, em 1844, foi projectada uma linha da margem do Tejo até à fronteira, passando pela inauguração do troço entre Lisboa e Carregado em 1856, chegando a 1943 com 3500 quilómetros de linha férrea. Escrita acessível, informada, despertadora da curiosidade, defendendo valores humanistas, alicerçada na história e no poder da inteligência e da criatividade humanas, esta História dos Comboios é marca de um tempo e de uma certa forma de educar (para) a sociedade, sob a intensidade de um poder de comunicação espantoso entre o autor (ou o narrador?) e os seus leitores (ou os ouvintes?), num ambiente quase familiar em que a vontade de divulgar despertava a vontade de saber…
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