São vinte e três histórias e mais um “glossário breve” – as narrativas trazem-nos episódios rurais, o glossário é composto por cerca de três dezenas de termos ou expressões surgidos nas histórias para ajuda do leitor que lhes esteja menos habituado. É este o corpo do livro Quartzo – Vidas de um Veterinário, de Manuel Cardoso (Coimbra: Quarteto Editora, 2000).
A começar o livro, há um texto introdutório que justifica a escrita destas histórias. Curtas, elas são “tecidas de uma realidade vivida e simples, o dia-a-dia de um trabalho feito com empenho e dedicação, também com sacrifício e esforço, e bordadas de uma fantasia quão simples quão vivida também”, havendo, “nalgumas, a serenidade de um ritmo de épocas passadas; noutras, a premência de uma pressa que urge a prender o presente”. Característica comum a todas: “a paixão pela terra deste torrão precioso de Trás-os-Montes”.
Sendo o autor médico veterinário de formação e naquela região exercendo a sua actividade, fácil se torna concluir estarmos perante um registo autobiográfico, aqui e ali marcado por indicadores que o vão confirmando – como o nome de algumas personagens das histórias, que são as mesmas do círculo familiar do autor, ou a referência explícita ao próprio nome do autor, cumulativamente personagem e narrador, como acontece no texto “Visitas e Visitantes”.
Pelas histórias vai desfilando um mundo de crendices, de hábitos, de uma sociedade rural, em que os animais são a maior preocupação, seja pelo sustento, seja por serem vistos enquanto garante, em lutas que são pela vida e contra a morte ou contra o azar da doença, questões essenciais quando o que está em causa é a sobrevivência – seja dos homens, seja dos animais. Daí que o narrador considere a sua profissão de veterinário como algo que também dá para fugir à rotina, porque o homem se torna actor – “o pequeno grupo que se forma quando uma consulta é um bocado mais demorada é muitas vezes o colorido que faz desta profissão uma actividade em que a rotina é uma rara ocorrência”, em que “o interlocutor nunca é o doente mas o dono”, sendo que, “quando uma doença se declara, muitas vezes pior não é diagnosticá-la nem dar-lhe solução – é lidar com o dono do animal”.
Paralelamente, vai sendo mostrado que nem tudo é pacífico e que um profissional se faz com os conhecimentos da tradição, por vezes empíricos, mas também com a inovação, haja em vista o que é relatado no conto “O Detector de Metais”, em que tal equipamento se revela útil à detecção de objectos metálicos ingeridos pelos animais, mas cuja utilização causou espanto – “Uma das novidades que eu trouxe para cá quando acabei o curso foi o acto de não medicar animal nenhum sem lhe medir a temperatura e sem o auscultar. Isso causou-me algumas situações mais amargas com alguns colegas porque o costume era o de receitar pela história e sintomas colhidos a olho e levaram a mal que um franganote a principiar os ultrapassasse na mise-en-scène. Contudo, eu não desarmei e até reforcei a panóplia de possibilidades quando apareci a empunhar um detector de metais.”
Quartzo – Vidas de um Veterinário é, pois, a experiência de um joão-semana dos animais, já não montado numa égua, mas cavalgando um “Panda” ou um “UMM”, visto como salvador, como confidente, atendendo pastores, pequenos agricultores, ciganos, convivendo com a caça furtiva e as pequenas vinganças, com os mistérios da vida e da terra, penetrando nos modos de ser e nas intimidades familiares. Tudo isto valorizado por uma descrição da paisagem dos arredores de Macedo de Cavaleiros – geografia destes pequenos contos – decifrada com as cores do tempo e as tonalidades agrestes da serrania, com os cheiros intensos e os ruídos de um cenário que ganha animação graças ao homem que o povoa e nele se refugia.
1 comentário:
Meu excelente João, um abraço!
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