Revolução na rua e fogo na Câmara
O jornal setubalense O Elmano, que se publicava aos sábados, na sua edição de 15 de Outubro de 1910, a primeira depois da implantação da República, trazia para primeira página, com letra destacada, a seguinte proclamação: "Viva a República Portuguesa - Está proclamada a República em Portugal! Implantou-a a Armada, o Exército e o Povo, no dia 5 de Outubro de 1910, para redenção deste belo país que a monarquia hora a hora ia mergulhando no charco lamacento da abjecção e da desonra. Foi a vontade suprema do Povo, do Exército e da Armada que salvou do aviltamento a nossa Pátria, erguendo-a tão alto que o nome português é hoje proferido em todo o mundo civilizado com respeito e admiração, fazendo recordar os antigos feitos, a bravura e heroísmo dos valentes e esforçados de Aljubarrota, Ormuz, Malaca e Buçaco, etc. Está proclamada a República! Honra e glória a todos que contribuíram para a sua implantação. Viva a República Portuguesa!"
por causa de uma bandeira
Esta adesão republicana manifestada pelo jornal não podia ser desligada do que em Setúbal se passara uns dias antes, precisamente na passagem de 4 para 5 de Outubro. Em texto de reportagem, a mesma edição do jornal conta que, no dia 4, corria na cidade a informação de que rebentara a Revolução. Pela falta de referências precisas, "crescia a ansiedade nos setubalenses", até que, pelas 19 horas, o republicano Leão Azedo chegava para recomendar prudência e aconselhar o povo a não fazer "manifestações desagradáveis com as quais a causa da República nada ganharia". Porém, grande manifestação andava já nas ruas, com entusiasmo difícil de conter. Pelas 21 horas, os manifestantes estavam na Praça do Bocage, dirigindo-se aos Paços do Concelho, onde havia uma esquadra de polícia, e pediram ao chefe que fosse hasteada no edifício a bandeira republicana. A pretensão foi negada, houve tiros de revólver e a multidão invadiu a esquadra. Pouco depois, conta o repórter, "manifestava-se o incêndio que rapidamente se comunicou a todo o edifício onde funcionava a recebedoria do concelho, administração, repartição de fazenda, terreiro municipal, tesouraria da Câmara, biblioteca pública, repartição de impostos, etc." E, mais adiante, ainda impressionado, o autor conta que "todo o edifício dos Paços do Concelho ficou destruído, não podendo salvar-se um único livro de escrituração municipal e da fazenda. Um puro vandalismo, no qual os republicanos não tiveram a menor intervenção, nem, dada a exaltação de ânimos, podiam evitar".
A multidão dirigiu-se depois para as instalações que pertenciam aos jesuítas, destruindo o que encontraram, e para Brancanes, onde havia o convento dos franciscanos, que foi também incendiado. Após uma noite de chamas e de manifestações, o dia 5 de Outubro faria chegar à cidade a notícia oficial da implantação da República pelas 10 horas. Os foguetes acompanharam então a alegria da população e as filarmónicas que desfilaram pela cidade a entoar "A Portuguesa". Pelas 17 horas, na varanda dos Paços do Concelho, era proclamada a Comissão Administrativa da Câmara, à frente da qual estava Leão Azedo.
edifício de azares
Após o incêndio, os serviços da Câmara passaram a funcionar nas instalações do Liceu, tendo as obras de recuperação dos Paços do Concelho sido demoradas.
Foi entre 1526 e 1533 que o edifício municipal fora construído na então Praça do Sapal, tendo a obra sido entregue ao mestre pedreiro Gil Fernandes, residente em Lisboa. Cerca de dois séculos mais tarde, por 1722, vendo que o edifício necessitava de obras, a população setubalense ofereceu-se para, durante três anos, contribuir para tal reconstrução. Em 1733, foi concluída a varanda. No entanto, o terramoto de 1755 viria a danificar tão fortemente a construção que houve uma disposição régia a criar um imposto sobre a carne para serem angariados fundos para a reconstrução que se impunha. O incêndio de 1910 foi a última vicissitude por que passou o edifício. Mas só em 1927 o arquitecto Raúl Lino foi convidado pela Câmara para elaborar o projecto de reconstrução dos Paços do Concelho, tendo o mesmo sido entregue no ano seguinte. Pelos finais de 1932, as reuniões do executivo camarário eram ainda no Liceu e, em 1933, um decreto do Presidente da República Óscar Carmona estabeleceu que o Governo receberia o Liceu e, em troca, avançaria com a construção do edifício da Câmara. A entrega da obra concluída viria a efectuar-se apenas em Maio de 1939.
O incêndio havido em 1910 deixou a marca de perdas irreparáveis ao nível de documentação e de fontes para a história e cultura locais. Lembra Fran Paxeco na obra Setúbal e as Suas Celebridades (Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia, 1930) que Luciano de Carvalho, responsável da Biblioteca Municipal que estava nos Paços do Concelho, chorou, porque "as chamas lhe tinham consumido o labor oculto de largos anos", centrado nas "pilhas da sua Bocageana, acompanhada por uma completa iconografia e o esboço do catálogo biográfico dos escritores setubalenses". Numa tentativa de compreensão dos acontecimentos, Paulino de Oliveira interveio numa sessão de Câmara, uma semana depois, para apreciar o sucedido, argumentando que o incêndio só se podia dever à "profunda má vontade do povo setubalense à polícia cruel, cuja esquadra se encontrava no mesmo edifício, pelas perseguições extremas que sobre ele exercia", sustentando que os factores determinantes terão sido o facto de a polícia ter recebido a tiro os manifestantes que queriam içar a bandeira republicana e o facto de os dirigentes não terem explicado à multidão as consequências do acto que iam praticar.
Uma das medidas imediatas tomadas pelo executivo foi a da decisão de serem publicados editais "convidando todos os credores do município a apresentarem as suas contas dentro de 30 dias", uma vez que a documentação desaparecera. Sem instalações próprias e num regime novo, a equipa do executivo municipal era constituída por Leão Azedo, Ezequiel Soveral Rodrigues, Manuel Livério, António Arronches Junqueiro, José da Rocha, Joaquim Brandão, Joaquim dos Santos Fernandes, José Augusto Coelho e Eduardo Mendes Belo, um grupo que, no jornal O Elmano, de 15 de Outubro, merecia a seguinte apreciação: "O que podemos já dizer é que todos os seus membros estão no firme propósito de trabalhar para o engrandecimento de Setúbal e para a melhor regularização dos serviços municipais".
João Reis Ribeiro. Histórias da região de Setúbal e Arrábida (vol. 1).
Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2003, pp. 175-178.
[foto: reprodução a partir de O Setubalense de hoje]
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