quarta-feira, 26 de maio de 2021

Um livro que convida para Setúbal



É com um cunho pessoal que a apresentação da obra Setúbal - Uma visão contemporânea se inicia, assinada por Maria das Dores Meira: “Todas as manhãs, quando começo mais um dia de trabalho, invade-me uma alegria incontida por ver como esta cidade, este concelho, mudou.” E, a finalizar essa nota: “Quando, todas as noites, saio do meu gabinete para voltar a casa, vou cansada mas com um sentimento de dever cumprido. Amanhã estarei de volta para mais uma jornada por Setúbal.” Assim, o livro, editado pela Câmara Municipal de Setúbal (2021), tem a marca do sentir da pessoa que tem presidido à autarquia sadina desde Julho de 2006, num registo que traz a partilha do sentimento entre o começo e o fim de um dia de trabalho, sugerindo que o prazer advindo deste olhar sobre a cidade e o concelho passa também pelo compromisso.

As dez partes em que a obra se organiza - Modernidade, Inovação, Tradição, Harmonia, Natural, Lazer, Sabores, Património, Cidadania e Pessoas - evidenciam um misto de características autóctones da região e uma apreciação do trabalho desenvolvido, tudo se conjugando num despertar para o bem-estar e o equilíbrio num “sítio onde é bom viver, onde vale a pena marcar presença”, ainda nas palavras de Dores Meira, sensação apoiada pela intensa presença da fotografia, que regista mais de quatrocentos instantes do concelho, a partir de ângulos conhecidos ou  captando novos olhares sobre objectos e paisagens que nos são próximos e comuns (devidas à lente de David Pereira, José Luís Costa e Mário Peneque).

A ligação das imagens a cada capítulo é cimentada por um texto que funciona como roteiro interpretativo, por lá passando os bairros, o urbano, o rio, a história, o trabalho, a empresa, o turismo, a pesca, o património, os sabores, a cultura, a Natureza, as ideias, a gente. Subscritos por Hugo Martins, Marco Silva e Susana Manteigas, numa abordagem muito acessível, os textos preocupam-se com a vastidão das ofertas e das coisas a ver e a sentir no território de Setúbal, por vezes com um apontamento que sugere fruições conjugadas com gostos pessoais - “há quem descubra no rio a tranquilidade para ler um livro e quem encontre a paciência para tentar a sorte com a cana de pesca” - ou o prazer das pequenas curiosidades a descobrir - da Gráfica de Santa Maria conta-se que “uma Heidelberg original continua a ter destaque na empresa, que, apesar de fiel à tradição, soube acompanhar a evolução dos tempos”, assim como, a propósito de livrarias, se fala da Culsete, mostrando-se o seu rosto actual e lembrando-se Manuel Medeiros na criação e promoção deste espaço, ou se passa pelo alfarrabismo da UniVerso, “caos harmonioso” de livros.

Os dois capítulos finais incentivam à prática da cidadania (um “olhar de dentro para fora”) e à chamada de atenção para personalidades que, pelos mais diversos motivos, são referências para Setúbal - se um passa por valores como a protecção do ambiente, a plena integração, a solidariedade, a defesa da valorização pessoal ou o incentivo para a igualdade  de género, o outro refere nomes que “ampliam o território”, num percurso que reúne mais de três dezenas de personalidades naturais de Setúbal ou ligadas à região.

Setúbal - Uma visão contemporânea é um interessante livro-documentário, capaz de apresentar o que somos a quem nos desconhece e de nos levar a descobrir formas plurais que fazem a nossa identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 630, 2021-05-26, p 7.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Serafim Ferreira e o louvor dos editores



A experiência editorial de Serafim Ferreira (1939-2015) pautou-se por vários marcadores - Edições Saturno, Ulisseia, Círculo de Leitores, Portugália, Diabril, Fronteira. Em 1999, assinou o livro Olhar de Editor (reeditado em 2019, na Montag), doze capítulos e epílogo, assumida homenagem aos mentores de dezassete editoras de referência no mundo livreiro português - Luiz de Montalvor (Ática), Delfim Guimarães e Maria Leonor Cunha Leão (Guimarães Editores), Augusto dos Santos Abranches (Livraria Portugália, Coimbra), António Pedro (Confluência), Figueiredo de Magalhães (Ulisseia), Agostinho Fernandes e Augusto da Costa Dias (Portugália), Eduardo Salgueiro (Inquérito), Manuel Rodrigues de Oliveira (Cosmos), Américo Fraga Lamares (Civilização), Mário Figueirinhas (Figueirinhas), Viúva Moré e Ernesto Chardron (Lello & Irmãos), Manuel Rodrigues (Minerva), José Saramago (Estúdios Cor), Rogério de Freitas e Leão Penedo (Artis), Viriato Camilo (Prelo), Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite) e Luiz Pacheco (Contraponto).

Os diversos capítulos assumem a forma de mensagens dirigidas ao amigo Luís Silveira (de quem há pistas ao longo da obra, ele também um devoto dos livros), organizadas como “desabafos entrelaçados em forma de narrativa”, num “propositado memorial”, em tempo de lembrança que a situação de reformado também permitia. Razão de ser para a escolha deste tema e deste grupo, regista-a Serafim Ferreira: “acho injusto como facilmente esquecemos os nomes daqueles que foram responsáveis pela publicação de tantos e tantos livros e de quem se ignora ou se perderam os seus nomes na confusão de títulos e de autores que ainda hoje se lêem”. Linhas adiante, apresenta o seu “propósito de erguer um memorial por alguns editores”, explicando serem escolhidos os “que cumpriram a sua acção no meio de grande desassossego”.

Os textos, muito próximos do género epistolar, com marcas de proximidade (pela coloquialidade sugerida ou por uma sintaxe não alheia à oralidade), cruzam o tom memorialístico e a biografia com algumas experiências testemunhadas pelo emissor e pelo destinatário (como a da discussão, em 1963, sobre a validade estética neo-realista, num debate em que também intervieram Cardoso Pires e Alexandre Pinheiro Torres). A construção deste livro, explica-a o próprio Serafim Ferreira, ao evocar Figueiredo de Magalhães: “perpassam por estas páginas ecos de muitas conversas, histórias e recordações de situações que vivi e não pude esquecer, me fizeram pensar o que penso da literatura, num misto de esperança e desencanto por valores que foram de ontem e ainda são de hoje.”

Desde o início da obra, a figura geométrica da leitura é o triângulo, cujos vértices são o leitor, o autor e o editor. E não será acaso Luiz Pacheco surgir como o último editor abordado (acumulando a perspectiva de escritor e de leitor), que, com “uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns dos bons livros que fez chegar às mãos de muita gente”, autor de “belíssimos textos marcadamente autobiográficos”, onde perpassa “a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo.”

O epílogo, reserva-o Serafim Ferreira para falar da sua derradeira experiência como editor, na Fronteira, reclamando o papel de agitador cultural, num percurso marcado por “intervir sem alienar e publicar sem nunca mercadejar”. Simultaneamente, este final é também a satisfação de ter partilhado histórias de que fez parte - os editores foram as suas personagens e o texto conclui com uma saudação ao amigo: “No fundo, acredita, foi agradável estar na tua e na companhia de tão boa gente.” Saudação que, por certo, abrangia também os seus leitores...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 625, 2021-05-19, p. 9.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Afonso Cruz - Por falar em livros...



“Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” Esta personificação sobre a resiliência dos livros é trazida por Afonso Cruz na sua recente obra O vício dos livros (Companhia das Letras, 2021), três dezenas de textos em que são contadas histórias relacionadas com livros, leitores e descobertas.

Tão interessante sensibilidade dos livros pode ser encontrada num texto intitulado “Porque não há muitos leitores”, exercício de reflexão sobre a vontade que não existe nos não-leitores para descobrirem a mensagem que escorre pelas páginas, com o argumento repetitivo da “falta de tempo”... isto é, para se ser mais claro, reconhecendo que ler dá trabalho e exige condições específicas - a atenção, o silêncio, o recolhimento, numa palavra, a dedicação do leitor, que nunca pode esperar uma compensação imediata.

Por estas incursões passam histórias sempre dominadas pela marca comum da valorização do protagonista que o livro assume ser. Umas são passadas com outros escritores e leitores - Kafka e as cartas de uma boneca para a sua dona-menina até um final feliz, Balzac e a sentida morte da personagem que era a duquesa de Langeais, Dionísio de Siracusa e os seus versos sem arte que nem o autoritarismo conseguiu impor, Eurípides e a força da poesia libertadora de escravos, a máxima que Ramsés II escolheu para a sua biblioteca - “casa para terapia da alma”. Outras ocorreram entre pessoas que sentem a vida pelas histórias que protagonizam - a avó quase centenária que se sentia útil por poder contar as suas memórias ou a discussão nos Montes Urais sobre a maior importância da poesia ou da prosa que levou a que o defensor da poesia matasse o seu oponente. Há momentos que foram vividos pelo próprio autor, relatados numa revisitação autobiográfica enquanto leitor - o adolescente que procurava a distância mais longa entre dois pontos para o tempo render em favor da leitura, a descoberta de uma escritora árabe para quem a leitura originou a sua libertação, a experiência são-tomense em torno do sabor e do afecto revelado pela atenção dada às palavras, a dedicatória deixada pelo avô num livro para o neto só descoberta vinte anos depois da morte do avô. E há a reprodução de muitas reflexões sobre a leitura, geralmente pontos de partida para associação de outras ideias ou para reflexão própria sobre o acto e o gosto de ler - de resto, a obra conclui com mais de três dezenas de referências bibliográficas, maioritariamente relacionadas com o triângulo formado pelo livro, escrita e leitura.

Algumas crónicas deste livro são curtas, quase não ultrapassando o apontamento. Outras surpreendem pelas associações e pelos extremos a que a paixão pelo livro pode levar. Em todas surgem verdades intensas sobre o acto de ler, num enredo capaz de enlaçar o leitor, que nelas acaba por se encontrar. É que “abrir um livro é abrir pessoas e explorar o nosso próprio mundo através da experiência dos outros. O território inexplorado dentro de nós é acessível através dessa imersão em personagens que nunca fomos e jamais seríamos ou talvez venhamos a ser, e em vidas que nunca tivemos e jamais teríamos ou vidas que serão o nosso destino. As personagens dos livros que lemos são o meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser.” Afonso Cruz, leitor e construtor de personagens, dixit...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 620, 2021-05-12, p. 9.


quarta-feira, 5 de maio de 2021

António Manuel Ribeiro: de Almada para o Mundo


“Estamos em guerra - mas a invasão não é visível em colunas militarizadas, é invisível e não escolhe objectivos - vai a eito.” Fulminante, este texto de 13 de Março de 2020, início de confinamento e de pandemia! Oito meses depois, em 13 de Novembro, o título “Tenho saudades do meu país” choca e explica-se: “Que é o mesmo que dizer que tenho saudades de vós, da estrada negra que brilha, da poeira dos recintos, do som insistente da afinação da bateria (que me leva a fugir para longe), tenho saudades desse mosaico que é a festa de um espectáculo com os UHF entre os seus.”

Entre as duas datas, 52 crónicas e uma entrevista, assinadas por António Manuel Ribeiro, incluídas no livro De Almada para o Mundo - Crónicas do Isolamento (Aiemera, 2020), publicação que integrou um “cd” com o mesmo título, registo áudio do MMC (“Momento Musical Caseiro”) de 26 de Setembro. Os textos são provenientes das publicações facebookianas quase na totalidade; a gravação vale pelas onze músicas, mas também por homenagear a iniciativa que os UHF levaram a cabo quase semanalmente, os MMCs, iniciada em 11 de Março (cuja 52ª edição ocorreu há dias, em 1 de Maio), forma de o grupo contactar o mundo ao longo do confinamento, a partir de casa, tempo diferente que os músicos cruzaram “sem lamúrias, diminuídos de movimentos na estrada mas com o pensamento livre para criar o futuro”. 

As crónicas de António Manuel Ribeiro estão povoadas por uma vontade de partilhar vida e de fomentar a esperança, como se propõe em 14 de Março - “Não estou chateado, nem sequer deprimido, estou no meu aquário de escrita e canções. Mudei as minhas rotinas; sigo as directivas do governo. Aqui virei, pelo menos todos os dias, dar-vos o melhor de mim, a minha confiança.” Percebe o leitor que a permanência desta tónica se deve à necessidade de reforçar a forma de se ser humano - “ergam a vossa bonomia, cultivem o equilíbrio, desfrutem da alegria das pequenas coisas, não lutem com o medo, não existe, não o vêem e gasta muito de vós”, apela três dias depois. O convite para as precauções é permanente, lembrando a cada um a respectiva responsabilidade de ser.

Os temas abordados são plurais - o estado da arte, a coerência, aspectos biográficos e figuras da família, o significado das datas, as leituras feitas, a ligação às geografias da sua vida, situações do quotidiano, memórias de espectáculos, a discussão política, o olhar crítico, a cidadania, a liberdade, o papel dos “media”, o tratamento da língua portuguesa, uma panóplia de reflexões sobre a forma de ser e de estar, pautadas pelo desejo de comunicar e levar os outros a comunicarem e a serem um contributo para a solução necessária. O menos positivo do mundo também perpassa pelo quotidiano das crónicas - Bolsonaro e Trump, a morte do cidadão americano pelo joelho do polícia, o conflito do presente com a História do passado mais ou menos distante, o “drink” para que a ministra convidou os jornalistas, a “informação-covid”, a ilusão do “vai ficar tudo bem”...

Ficam também momentos sentenciosos importantes, pela aprendizagem que pressupõem e para que nos convidam, como este, de 29 de Maio: “Nunca me lamento, perante a realidade menos apetecível procuro uma saída. (...) Aprendi só a ser o que sou - um ser humano, não um ter humano. Um SER - do verbo nasce a acção.” Um pensamento que pode ser uma orientação, como vários outros que pelo livro circulam.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 615, 2021-05-05, p 5.


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Diogo Ferreira: histórias de São Sebastião (Setúbal)


A história local é engrandecida pela proximidade, levando a forma muito própria de sentir a identidade. Essa marca tem o livro Breve História da Freguesia de São Sebastião, de Diogo Ferreira, editado pela respectiva Junta de Freguesia, procura do que já foi escrito sobre a freguesia e demanda nos arquivos e levantamento exaustivo do que pode ser marca histórica neste território. A freguesia mostra-se desde quando era arrabalde até à integração na área urbana e desde a origem rural à industrialização, processos lentos de transformação do território.

Causas dessa demora podem ser encontradas nos terrenos da freguesia inicialmente virados para o mundo rural e também na dificuldade de acessos de então. Mas terá havido outras razões importantes, como o pesadelo do terramoto de 1755 em termos de destruição na então paróquia ou os interesses que dominavam a sociedade - no relato de 1758, o pároco de São Sebastião, Manuel Pereira de Carvalho, apresentava a paróquia também dominada pelos fidalgos que ali tinham as suas segundas residências para evitarem grandes gastos na Corte, deles dizendo: “oxalá não houvera nenhum, porque semelhantes fidalgos nas terras fora da Corte se fazem régulos e absolutos intrometendo-se nos governos políticos, militares e, o que é mais, no espiritual, como a experiência assaz o tem demonstrado.” O prior de São Sebastião lá saberia a quem se queria referir, mas elucida quanto às influências e à construção social nesse século XVIII...

O leitor passa pelos bairros tradicionais que têm definido a freguesia desde a viragem do século XIX para o século XX, pelo seu património histórico-arquitectónico, cada uma das peças podendo contar uma ou muitas histórias, reais ou lendárias - afinal, é da freguesia de São Sebastião o mais antigo monumento da cidade de Setúbal, o geomonumento da Pedra Furada, com 2 a 4 milhões de anos, desde sempre ligado a histórias populares... Além desse monumento, sem intervenção humana, Diogo Ferreira menciona mais de meia centena de pontos de interesse histórico da freguesia, desde os seus mais antigos limites, num calendário entre o século XIV (portal da gafaria) e a contemporaneidade (Jardim Multissensorial das Energias, de 2018).

Sendo o elemento humano o mais importante na colectividade, também neste livro vivem espaços e tempos sociais como as festas, as feiras e os mercados (uma dezena de referências), as colectividades das mais diversas finalidades (mais de três dezenas e meia) e as pessoas, em curtas biografias de três dezenas de nomes ligados à freguesia, todos com histórias singulares, nas mais diversas áreas (política, comércio, cultura, desporto, trabalho), numa cronologia iniciada com Tomás António dos Santos e Silva (1751) e concluída com Vítor Baptista (1948). A memória passa ainda pelos dois fregueses de São Sebastião caídos na Primeira Grande Guerra e pelos dez que pereceram na Guerra Colonial. A obra conclui com um quadro cronológico da história da freguesia e com a listagem dos presidentes da Junta de Freguesia e respectivos mandatos, rol que fica cerceado em alguns pontos pois não foram encontrados documentos para diversas épocas.

As histórias ligadas à freguesia de São Sebastião têm andado dispersas, devido às diversas áreas que nela se cruzam com a história de Setúbal - as indústrias conserveira e naval, a actividade piscatória e portuária e os bairros têm sido campos de investigação de merecidos bons tratamentos descritivos e historiográficos. Diogo Ferreira reúne muitos outros pontos de que se pode partir para mais aprofundados estudos a propósito desta freguesia, que caminha para os seus 500 anos e é uma das mais antigas de Setúbal. 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 610, 2021-04-28, p. 5


sexta-feira, 23 de abril de 2021

A guerra pela lente de Garcez

 


Começou por ser aprendiz de relojoeiro, mas o seu destino caiu sobre a arte fotográfica. Em comum entre as duas áreas, havia a precisão do instante - no primeiro caso, porque todos os instantes são medidas de tempo; no segundo, porque os instantes são captados e eternizados. Nascido em Santarém, Arnaldo Garcez (1885-1964) é o nome que associamos à reportagem visual da participação portuguesa no conflito mundial de 1914-1918, essa guerra que foi a primeira “a ser fotografada a partir de dentro”, como lembra António Pedro Vicente no livro Arnaldo Garcez - Um repórter fotográfico na 1ª Grande Guerra (Centro Português de Fotografia, 2000).

As fotografias de Garcez têm sido o suporte visual mais importante para ilustrar o que foi a vida do CEP (Corpo Expedicionário Português), desde o improvisado campo de instrução e de treino em Tancos (1916) até à celebração do Dia da Vitória (1919).

Por elas passa o quotidiano dos soldados em guerra, menos a acção da guerra ao vivo; no entanto, são elucidativas quanto às consequências dessa mesma guerra. Podemos ver momentos de descanso, de preparação técnica, de solidão, de encontro de cada qual consigo, de movimentação, de visitas oficiais; podemos ver cenas de destruição, de arremedo do que foi o terreno organizado e tratado, de aniquilação da paisagem natural ou construída. É sobretudo neste último grupo que podemos ter a percepção do que foi o sofrimento e a dor que esta guerra trouxe. Refere António Pedro Vicente que “a morte não era objecto fotográfico”, mas “a casa destruída, os campos devassados, as crateras abertas pelas bombas, os campos devastados, as árvores reduzidas a um tronco nu e chamuscado dão-nos, tacitamente, a imagem subentendida dos horrores então vividos”.

Esta riqueza documental que domina as fotografias de Garcez torna-as absolutamente incontornáveis se quisermos contar a Grande Guerra que os portugueses viram, sentiram e viveram, individual ou colectivamente. Daí que, logo na altura, muitas delas tenham sido usadas numa publicação como o semanário “Ilustração Portuguesa” para ir dando notícias da frente europeia em que o CEP participou, ou tenham sido aproveitadas para séries de postais com títulos como “Portugueses na Frente de Batalha” ou “Os Portugueses em França”, impressos pela casa parisiense Lévy Fils & Cie., uma das mais prestigiadas nesta área. Ainda hoje, a documentação fotográfica portuguesa da Grande Guerra vive dos momentos que Arnaldo Garcez eternizou, como podemos ver numa obra como Imagens da I Guerra Mundial, de Conde Falcão (1998).

Arnaldo Garcez - Um repórter fotográfico na 1ª Grande Guerra, além do pequeno mas importante estudo de António Pedro Vicente, reúne cerca de quarenta fotografias do fotógrafo escalabitano, mostra diversificada de situações e de áreas temáticas que poderiam ser consideradas - treinos militares, deslocação de tropas, quotidiano nas trincheiras, visitas oficiais às tropas portuguesas, relação com a população local, ruínas após ataques, assistência médico-hospitalar aos feridos, cemitérios de guerra. Mesmo sabendo-se que Garcez, depois de ter cumprido a encomenda da reportagem sobre a preparação militar do CEP em Tancos, partiu para a Flandres, equiparado a alferes, para ser o fotógrafo oficial (e, como tal, condicionado quanto ao que registou, pois integrava os serviços de propaganda), a verdade é que, se não fosse a sua recolha de instantes e a sua curiosidade, não poderíamos ler o “filme” da presença portuguesa. Em linha com outros artistas (amadores, a maioria), Garcez acabou por ser testemunha, como referiu Osvaldo Macedo de Sousa em Artistas-Militares na Grande Guerra (2018), “de um momento de suma importância na história da humanidade”, contribuindo “para criar uma visão lusa desta intervenção bélica”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 607, 2021-04-23, p. 20.


quinta-feira, 15 de abril de 2021

João de Barros: memórias de Bruges em apoio à Bélgica



Na edição de 23 de Novembro de 1914 da Ilustração Portuguesa, Augusto de Castro assina uma crónica emocionada cujo assunto é o poema Ode à Bélgica, de João de Barros (1881-1960), publicado por essa altura: “canta, num ritmo emotivo e poético, as lágrimas e as ruínas da Bélgica violada e massacrada. (...) Chora a dor da Bruges triste, das cidades incendiadas, dos lares enlutados, dos templos destruídos - e a sua visão evoca a Bélgica redimida de amanhã.”

Em causa estava o sofrimento belga, no contexto da Primeira Guerra Mundial, pois, logo no início de Agosto, o país, que se afirmara neutro, foi invadido pelos alemães e, até Outubro de 1914, padeceu de violência sobre a população civil em elevado grau, sendo referência maior o massacre de Dinant, em 23 de Agosto, com 674 civis fuzilados.

Dedicado aos “amigos de Bruxelas”, o poema é organizado em seis partes, composto por dísticos e um monóstico no final da primeira parte, em métrica hendecassilábica. O tom do sofrimento surge logo no início - “Bélgica formosa, Bélgica fecunda, / Bárbaros sem alma vão-te assassinar! // Na loucura torpe, que incendeia e mata, / sobre ti lançaram garras de ambição! // Sobre ti lançaram, corpo e tenro moço, / mãos de violência, de extermínio e roubo!” -, sendo toda a primeira parte povoada com imagens da destruição por causa da guerra. Perante tal devastação, o poeta lembra na parte seguinte os aspectos bons que o ligam à Bélgica - pessoas, paisagem, paz - até chegar à memória das cidades, ao mencionar “a melancolia dessa Bruges morta, / da cidade morta dos canais que sonham”, imagem em que ressoa o título de Georges Rodenbach (1855-1898), Bruges, a morta, de 1892, personificação daquele espaço, ou um conhecido poema de Mallarmé (1842-1898) dirigido aos amigos belgas, textos que quase conferem o estatuto de romantismo e de arquétipo àquela cidade.

A terceira e a quarta partes constituem uma tela de saudade e de evocação sobre Bruges, onde o poeta ouviu “um Passado inteiro palpitar, erguer-se”: figuras das rendeiras de bilros, “cantos esquecidos”, imagens do passado de artistas e de príncipes, sonoridades dos sinos e dos canais, luminosidade e névoa, uma “paleta” para se “combinarem os mais raros tons”, um espaço para amar. Este êxtase é contrariado quando o poema se aproxima do final, perante uma cidade esmagada e melancólica sob o peso invasor - “Pois o teu encanto, pois a tua graça, / Bruges sem defesa, já tos violaram! // Bruges dolorosa, Bárbaros sem alma / pisam tuas ruas, turvam teus canais!”

O poema conclui com a esperança na recuperação dos valores que a Bélgica representava, assentando sobre um tom exortativo e heróico - “Tu, caminha e luta; tu, combate e canta / Alma de coragem, Força de triunfo!” - e anunciando um ressurgimento “que há-de ser em breve, Bélgica formosa, / Bélgica fecunda, teu Futuro altivo!”

Em 7 de Março de 1915, em Lisboa, no Politeama, Ode à Bélgica era apresentada como poema sinfónico, em composição do grandolense Teófilo Saguer, estruturado em três números - “Bélgica invadida”, “Rendeiras de Bruges” e “Bélgica heróica” -, que “recebeu muitos aplausos, o que também não nos admira, pois o assunto está na ordem do dia”, assinalava o crítico da revista A Arte Musical, de 15 de Março.

Com esta obra, João de Barros enfileirava no rol dos artistas e pensadores republicanos cuja arte favorecia a propaganda contra a Alemanha no conflito da Grande Guerra.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 600, 2021-04-14, p. 5


sábado, 10 de abril de 2021

Sebastião da Gama: a música (das palavras) e a memória



Hoje, Sebastião da Gama faz 97 anos. Digo “faz” intencionalmente. É que temos de saber viver com quem nos pode sempre acompanhar, seja pelas suas ideias, pelos seus sentires, pelas suas visões da vida e do mundo. E Sebastião da Gama, apesar de ter partido com 27 anos em 1952, teve uma leitura do universo que se mantém inovadora e cheia de lições.

Na sua poesia, foi sensível à música, aparecesse ela como “canto”, “hino”, “som” ou “música” mesmo. São vários os poemas que publicou em que a arte musical se manifesta – recorde-se, por ordem de publicação, um poema de cada um dos três livros que o poeta editou:“Vida” (Hoje, cá dentro, houve festa... / E, se houve festa e veludos, / e música azul, e tudo / quanto digo, / foi somente porque a Graça / desceu hoje a visitar-me.”), em Serra-Mãe (1945); “As Fontes” ("De todas as aldeias / vieram, cantando, as moças / encher as bilhas. // E eu fui também cantando ao som das águas… / Cantava as minhas mãos, cantava as fontes.”), em Cabo da boa esperança (1947);“Manhã no Sado” (Ali, à beira-rio, / de olhos só para o rio, de ouvidos surdos / ao que não é a música das águas, / um sossego alegórico persiste.”), em Campo aberto (1951).

No próprio Diário, ao refletir sobre a poesia e sobre a palavra, várias vezes o professor Sebastião da Gama se referiu à música.Vale a pena determo-nos sobre estes dois curtos excertos: “ser Poeta, tinha eu pensado dizer-lhes, é estar encantado ou desencantado e contá-lo com palavras que pareçam música” (9 de Março de 1949) e “A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” (16 de Março de 1949).

Mas Sebastião da Gama tinha também a preocupação pedagógica de passar esta mensagem musical para o leitor, por mais simples que ele fosse, explicando-lhe a relação da arte musical com a palavra e com o som. E foi assim que, numa crónica publicada no Jornal do Barreiro, em 24 de Agosto de 1950, intitulada “Sobre a Poesia”, se preocupou em simplificar esse casamento entre a poesia e o canto: “No povo inculto e na criança é que a verdade acerca da Poesia está guardada; é que o conceito de Poesia se mantém ingénuo. Pois não começou a Poesia por ser o puro canto?” Esta abordagem de Sebastião da Gama torna-se radical, subscrevendo o que um amigo seu dissera – os poemas deviam ser gravados em discos em vez de ser em papel… porque os versos são “para serem ouvidos, não para serem lidos”. Esta atitude “revolucionária” não é isenta de riscos, como Sebastião da Gama o nota – é que, logo a seguir, distingue os versos ditos pelo poeta dos versos ditos por outrem, porque, acima de tudo, só os poetas saberiam dizer os seus poemas “em intimidade”, isto é, “em plena comunhão com a palavra, com a perfeita compreensão dos mínimos pormenores”.

A música, vinda pela palavra, serviu-lhe para cantar a Serra, a Vida, o Amor, a Paz. Sempre numa dimensão muito próxima do real - a paisagem e os momentos constituíram frequentemente pretextos para os seus poemas -, mas com a capacidade de se deixar inebriar pela espiritualidade, numa relação com tudo que nos comove e nos convida à partilha. Sabia Sebastião da Gama que a poesia brotava da Natureza e das Pessoas e de tudo o que faz as suas circunstâncias - a questão era descobri-la, ouvi-la e dela fazer eco.

Muitas razões poderíamos invocar para justificar a importância deste poeta. Determinantes são o contributo que deu à cultura portuguesa da sua geração, a escola que formou, o legado que deixou. É um privilégio que ele ainda se mantenha entre nós através da sua palavra e do seu relato.

Em Azeitão, hoje, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em sua honra e de Joana Luísa, a mulher que sempre lutou pela divulgação da obra do poeta e que anteviu a importância do legado do marido, inaugurou a Casa-Memória Joana Luísa e Sebastião da Gama. Uma forma de reconhecer que os merecemos!

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Andersen: um tempo feliz em Portugal em 1866



Em 3 de Maio de 1866, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) tomou a diligência de Madrid para Mérida, onde apanhou comboio para Lisboa, tendo como companheiro, por coincidência, Garcia Peres (que dali a quatro anos passaria a viver em Setúbal). A chegada à margem do Tejo aconteceu três dias depois, instalando-se Andersen na Quinta do Pinheiro (Sete Rios, Lisboa), propriedade de Jorge O’Neill. Em 1868, consequência desta viagem, publicava o relato Uma visita em Portugal em 1866, só editado em português em 1971, em tradução do setubalense Silva Duarte (1918-2011).

A memória que Andersen levou de Portugal foi de um tempo feliz, num “paraíso”, em que não se cansou de classificar o que por cá sentiu como momentos de bem-estar que lhe faziam lembrar a sua Dinamarca - estava, portanto, “em casa”, situação que também lhe foi proporcionada pelo facto de privar com amigos antigos.

Depois de atravessar a fronteira entre os países ibéricos, Andersen anotava: “Que transição, ao entrar em Portugal, vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado.”

Esta viagem de Andersen começara em 31 de Janeiro, em Copenhaga, cidade onde regressaria apenas em 9 de Setembro; em Portugal, o contista dinamarquês esteve entre 6 de Maio e 14 de Agosto, data de embarque para Bordéus. Nos três meses lusitanos, viveu em Lisboa (na Quinta do Pinheiro), em Setúbal (na Quinta dos Bonecos, de Carlos O’Neill) e em Sintra (na Quinta do Duche, de José Carlos O’Neill), com deslocações rápidas a Aveiro e a Coimbra.

Curioso pela cultura e pela identidade portuguesas, conheceu Feliciano de Castilho (em Lisboa) e Manuel Maria Portela (em Setúbal), convivas que lhe falaram de Camões e de Bocage. Perspicaz e com sentido de humor, não olhava o mundo sem lhe pôr a sua marca - dirá, em Lisboa: “O cemitério maior não o vi, tem o nome de Prazeres. Quase nos faz crer ter sido um humorista que baptizou o lugar. O mesmo sucede com o nome do palácio da Rainha: Necessidades.” A Setúbal dedicou um dos mais longos capítulos do livro - conheceu a cidade, andou pela Arrábida e S. Luís, chegou a Palmela, atravessou para Troia, participou na festa de Santo António, viu uma tourada. Deixou-se ofuscar pela Igreja de Jesus, ao comentar: “Pequena igreja das mais belas que até agora vi. Tem algo de aéreo e luminoso.” Na Praça de Bocage, associou-lhe o seu sentir de poeta: “A maior e mais bonita praça é incontestavelmente aquela que tem o nome do poeta português Bocage, nascido em Setúbal e que, como é frequente com os poetas, morreu em pobreza. Vai agora ser-lhe levantado um monumento, para o qual se está a fazer uma subscrição. Setúbal é orgulhosa do seu vate.” Efectivamente, Bocage ali viria a ter a sua estátua anos depois, em 1871...

É ainda sabido que, em Setúbal, Andersen arranjou motivo de inspiração para o seu conto “O sapo”, como documentou em anotações feitas em 1868.

Viajante persistente (30 viagens entre 1831 e 1873, equivalendo a nove anos fora da Dinamarca), Andersen descobriu-se em cada saída, o que lhe permitiu afirmar, ao concluir o relato da viagem a Espanha em 1862: “A vida é o mais maravilhoso dos contos.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 595, 2021-04-07, pg. 10.