quinta-feira, 20 de maio de 2021

Serafim Ferreira e o louvor dos editores



A experiência editorial de Serafim Ferreira (1939-2015) pautou-se por vários marcadores - Edições Saturno, Ulisseia, Círculo de Leitores, Portugália, Diabril, Fronteira. Em 1999, assinou o livro Olhar de Editor (reeditado em 2019, na Montag), doze capítulos e epílogo, assumida homenagem aos mentores de dezassete editoras de referência no mundo livreiro português - Luiz de Montalvor (Ática), Delfim Guimarães e Maria Leonor Cunha Leão (Guimarães Editores), Augusto dos Santos Abranches (Livraria Portugália, Coimbra), António Pedro (Confluência), Figueiredo de Magalhães (Ulisseia), Agostinho Fernandes e Augusto da Costa Dias (Portugália), Eduardo Salgueiro (Inquérito), Manuel Rodrigues de Oliveira (Cosmos), Américo Fraga Lamares (Civilização), Mário Figueirinhas (Figueirinhas), Viúva Moré e Ernesto Chardron (Lello & Irmãos), Manuel Rodrigues (Minerva), José Saramago (Estúdios Cor), Rogério de Freitas e Leão Penedo (Artis), Viriato Camilo (Prelo), Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite) e Luiz Pacheco (Contraponto).

Os diversos capítulos assumem a forma de mensagens dirigidas ao amigo Luís Silveira (de quem há pistas ao longo da obra, ele também um devoto dos livros), organizadas como “desabafos entrelaçados em forma de narrativa”, num “propositado memorial”, em tempo de lembrança que a situação de reformado também permitia. Razão de ser para a escolha deste tema e deste grupo, regista-a Serafim Ferreira: “acho injusto como facilmente esquecemos os nomes daqueles que foram responsáveis pela publicação de tantos e tantos livros e de quem se ignora ou se perderam os seus nomes na confusão de títulos e de autores que ainda hoje se lêem”. Linhas adiante, apresenta o seu “propósito de erguer um memorial por alguns editores”, explicando serem escolhidos os “que cumpriram a sua acção no meio de grande desassossego”.

Os textos, muito próximos do género epistolar, com marcas de proximidade (pela coloquialidade sugerida ou por uma sintaxe não alheia à oralidade), cruzam o tom memorialístico e a biografia com algumas experiências testemunhadas pelo emissor e pelo destinatário (como a da discussão, em 1963, sobre a validade estética neo-realista, num debate em que também intervieram Cardoso Pires e Alexandre Pinheiro Torres). A construção deste livro, explica-a o próprio Serafim Ferreira, ao evocar Figueiredo de Magalhães: “perpassam por estas páginas ecos de muitas conversas, histórias e recordações de situações que vivi e não pude esquecer, me fizeram pensar o que penso da literatura, num misto de esperança e desencanto por valores que foram de ontem e ainda são de hoje.”

Desde o início da obra, a figura geométrica da leitura é o triângulo, cujos vértices são o leitor, o autor e o editor. E não será acaso Luiz Pacheco surgir como o último editor abordado (acumulando a perspectiva de escritor e de leitor), que, com “uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns dos bons livros que fez chegar às mãos de muita gente”, autor de “belíssimos textos marcadamente autobiográficos”, onde perpassa “a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo.”

O epílogo, reserva-o Serafim Ferreira para falar da sua derradeira experiência como editor, na Fronteira, reclamando o papel de agitador cultural, num percurso marcado por “intervir sem alienar e publicar sem nunca mercadejar”. Simultaneamente, este final é também a satisfação de ter partilhado histórias de que fez parte - os editores foram as suas personagens e o texto conclui com uma saudação ao amigo: “No fundo, acredita, foi agradável estar na tua e na companhia de tão boa gente.” Saudação que, por certo, abrangia também os seus leitores...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 625, 2021-05-19, p. 9.


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