Em 3 de Maio de 1866, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) tomou a diligência de Madrid para Mérida, onde apanhou comboio para Lisboa, tendo como companheiro, por coincidência, Garcia Peres (que dali a quatro anos passaria a viver em Setúbal). A chegada à margem do Tejo aconteceu três dias depois, instalando-se Andersen na Quinta do Pinheiro (Sete Rios, Lisboa), propriedade de Jorge O’Neill. Em 1868, consequência desta viagem, publicava o relato Uma visita em Portugal em 1866, só editado em português em 1971, em tradução do setubalense Silva Duarte (1918-2011).
A memória que Andersen levou de Portugal foi de um tempo feliz, num “paraíso”, em que não se cansou de classificar o que por cá sentiu como momentos de bem-estar que lhe faziam lembrar a sua Dinamarca - estava, portanto, “em casa”, situação que também lhe foi proporcionada pelo facto de privar com amigos antigos.
Depois de atravessar a fronteira entre os países ibéricos, Andersen anotava: “Que transição, ao entrar em Portugal, vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado.”
Esta viagem de Andersen começara em 31 de Janeiro, em Copenhaga, cidade onde regressaria apenas em 9 de Setembro; em Portugal, o contista dinamarquês esteve entre 6 de Maio e 14 de Agosto, data de embarque para Bordéus. Nos três meses lusitanos, viveu em Lisboa (na Quinta do Pinheiro), em Setúbal (na Quinta dos Bonecos, de Carlos O’Neill) e em Sintra (na Quinta do Duche, de José Carlos O’Neill), com deslocações rápidas a Aveiro e a Coimbra.
Curioso pela cultura e pela identidade portuguesas, conheceu Feliciano de Castilho (em Lisboa) e Manuel Maria Portela (em Setúbal), convivas que lhe falaram de Camões e de Bocage. Perspicaz e com sentido de humor, não olhava o mundo sem lhe pôr a sua marca - dirá, em Lisboa: “O cemitério maior não o vi, tem o nome de Prazeres. Quase nos faz crer ter sido um humorista que baptizou o lugar. O mesmo sucede com o nome do palácio da Rainha: Necessidades.” A Setúbal dedicou um dos mais longos capítulos do livro - conheceu a cidade, andou pela Arrábida e S. Luís, chegou a Palmela, atravessou para Troia, participou na festa de Santo António, viu uma tourada. Deixou-se ofuscar pela Igreja de Jesus, ao comentar: “Pequena igreja das mais belas que até agora vi. Tem algo de aéreo e luminoso.” Na Praça de Bocage, associou-lhe o seu sentir de poeta: “A maior e mais bonita praça é incontestavelmente aquela que tem o nome do poeta português Bocage, nascido em Setúbal e que, como é frequente com os poetas, morreu em pobreza. Vai agora ser-lhe levantado um monumento, para o qual se está a fazer uma subscrição. Setúbal é orgulhosa do seu vate.” Efectivamente, Bocage ali viria a ter a sua estátua anos depois, em 1871...
É ainda sabido que, em Setúbal, Andersen arranjou motivo de inspiração para o seu conto “O sapo”, como documentou em anotações feitas em 1868.
Viajante persistente (30 viagens entre 1831 e 1873, equivalendo a nove anos fora da Dinamarca), Andersen descobriu-se em cada saída, o que lhe permitiu afirmar, ao concluir o relato da viagem a Espanha em 1862: “A vida é o mais maravilhoso dos contos.”
* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 595, 2021-04-07, pg. 10.
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