quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O Bocage que Romeu Correia legou

 


Na sua obra, Romeu Correia (1917-1996) não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que se tem prestado a ser personagem de vários textos dramáticos, assinados por Herlander Machado (1966), Luzia Maria Martins (1967), José Sinde Filipe (1974), Fernando Cardoso (1999) ou Fernando Gomes (2005).

A obra de Romeu Correia (que mereceu segunda edição em 1978), aparecida quando passava o segundo centenário do nascimento de Bocage, só estreou em palco cinco anos depois, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. O leitor ainda hoje pode ver um vigor moderno pela interpretação da obra e do percurso bocagiano, pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.

Bocage foi apresentado como “crónica dramática e grotesca” para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. A abrir a obra, ficou a observação: “Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”

A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta (que, em cena, zela pela sua memória, insurgindo-se contra o anedotário), e conclui com a morte do mesmo Bocage, numa encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”

Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.

A intenção desta peça passa por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior.

 * J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 466, 2020-09-16, p. 3


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Naquele tempo: contar as dores da pandemia na cidade

 


O livro fala-nos através de fotografias e de legendas, que começam, quase todas, pela expressão “naquele tempo”, à semelhança do início do evangelho nas cerimónias religiosas, dando a ideia de recuo na cronologia, de súbita transição para um passado, de rememoração de algo. No entanto, Cidade suspensa - Lisboa em estado de emergência, de Miguel Valle de Figueiredo (fotografia) e Bruno Vieira Amaral (texto), é bem actual, pois recolhe fotografias da cidade feitas entre Março e Abril, época de recolhimento obrigatório devido à pandemia.

Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (2020), pelas suas fotografias, vemos a cidade que não vimos (estava-se em situação de emergência), a cidade distante do seu fundamental elemento, as pessoas, num olhar de falso vazio, pois a verdade é que a cidade albergava essas mesmas pessoas. Pelo texto, seguimos pistas de leitura e de exploração que nos acordam, recordam, relembram, colocando já o tempo num passado, assim reagindo a esse estado de suspensão que o título chama.

Foi Italo Calvino quem escreveu, nessa obra magnífica que é As cidades invisíveis (1972), que “todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem.” E é esta ideia que Bruno Vieira Amaral assinala, ao dizer que “uma cidade vazia é um deserto com prédios”. Isto é: a cidade adquire sentido com as pessoas que fazem com que ela mexa, viva. Se estiver vazia, a cidade torna-se desconhecida, fantasmagórica, assustadora, desumana.

Ainda à maneira do evangelho, o livro começa: “No princípio, eram os Números. Casos confirmados, casos suspeitos, óbitos, recuperados”, colunas de uma estatística que nos habituámos a ouvir desde Março, mês que deveria ser o de anúncio da Primavera e da alegria rejuvenescedora... E vemos a transformação nas fotografias, evidenciando uma outra existência: parques infantis fechados; estações de transportes vazias; esplanadas encerradas; vias rápidas e avenidas silenciadas pela ausência de tráfego; ruas, praças e bairros sem gente; estátuas sem quem as admire; aviões estacionados... Um tempo sem pressa e sem destino. Simultaneamente, nos poucos rostos que aparecem, é a inovação da máscara (ocultadora de expressões, de iras, de sorrisos), associada a pessoas sós ou a grupos muito restritos, apercebendo-se o leitor de que as varandas, em contrapartida, passam a ser espaços de respiração dos albergados na cidade, pontos de leitura da vida e do mundo.

O livro termina com uma ideia de persistência de uma normalidade condicionada pelas circunstâncias: assiste o leitor a momentos de solidariedade e de partilha e à celebração pascal na Sé de Lisboa ou às orações do Ramadão na Mesquita de Lisboa sem que haja fiéis, enchendo-se esses espaços com a presença do cardeal-patriarca ou do imã, num gesto de aproximação e de permanência em tempos de confinamento. E, depois, a fechar, uma fotografia que também nos ficará na memória: a manifestação do Primeiro de Maio, em disposição matemática, como se estivéssemos a ser preparados para um lento e progressivo fim da suspensão.

As imagens marcam-nos por tudo isto e por aquilo que pudemos viver, ainda que sem termos visto as entranhas da cidade porque dela nos ausentámos. E há ainda frases que batem como badaladas: “a grande história da pandemia é a de tudo o que não aconteceu” ou “naquele tempo, cada rua era um tratado de silêncio”.

Cidade suspensa é um livro intenso, que servirá para mostrar e contar a experiência de um tempo que a História haverá de registar.

 * JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 461, 2020-09-09, p 10.


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Viriato Soromenho-Marques: Entre a normalidade e a salvação do planeta



Vale a pena ler a entrevista que Sílvia Júlio fez a Viriato Soromenho-Marques, publicada na edição do jornal Tempo Livre (nº 25, 2020-09, pp. 12-13), editado pelo INATEL (e disponível no seu "site", em acesso livre). Intitulada "Nós somos hóspedes do tempo", a entrevista incide sobre o actual momento, dominado pela pandemia, e o encontro de uma "normalidade" que seja consentânea com o planeta.

Entrevista de linguagem acessível, directa, quase como se estivéssemos a assistir a uma conferência ou aula sobre ética, com recurso a vários pensadores e tirando da História o que podem ser exemplos para o nosso 'saber estar', a conversa aborda a principal questão da nossa actualidade e da nossa preocupação de forma a envolver cada leitor na responsabilidade máxima. Uma leitura que se impõe.

 

Fica o registo de três momentos:

Normalidade - “Não estamos permanentemente preparados para o trágico, ou seja, para a possibilidade de acontecerem coisas terríveis - como acontecem. Temos de amaciar essa aspereza trágica da realidade, construindo a tal ‘normalidade’ (...) uma ficção, uma construção que fazemos para tornar a nossa vida mais suportável e menos angustiada. No fundo, é dar um padrão de certeza que, de facto, a vida não tem.”

Viver - “Os seres humanos não são donos do mundo, não são donos do tempo, não são donos do futuro. Nós somos hóspedes do tempo. A melhor forma de vivermos no tempo é percebermos as nossas limitações, porque nem os reis conseguem desfiar o destino. (...) Temos de aprender a viver aceitando a nossa falta de controle sobre a nossa própria vida. (...) O melhor sentido da vida que podemos retirar daqui é viver com autenticidade, intensidade e verdade o tempo que nos é dado viver.”

Técnica - “A nossa civilização já não acredita na ética, acredita na técnica. Como não queremos mudar o nosso comportamento, queremos mudar a forma como controlamos a realidade. E como é que fazemos isso? Com a tecnologia. E o mercado é a máquina de fazer tecnologia. Inventámos o mercado com as características modernas.”

Planeta (salvar o) - “Neste momento, o principal problema é salvar o palco da História: o planeta. Este é único - não conhecemos outro, nem no sistema solar, nem na galáxia. Tivemos uma sorte da qual não estamos a ser dignos. (...) Um dos grandes males que nos aconteceu foi a arrogância do controle, a arrogância do saber, a arrogância de que nós resolvemos tudo. Não podemos substituir a arrogância de um optimismo idiota por arrogância de um pessimismo sem esperança. Temos de ter um optimismo crítico, um optimismo activo, um optimismo transformador, um optimismo voluntarista. Temos de acreditar no futuro através de actos que acompanhem e realizem as palavras.”

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Grumberg: Um conto para que a vida continue

  

No princípio: “Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.” No final, uma centena de páginas adiante: “É esta a única coisa que merece existir, tanto nas histórias como na vida real. O amor, o amor dirigido às crianças, às nossas e às dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo o que não existe, a vida continue.” Entre estes segmentos decorre o conto A mais preciosa mercadoria, do francês Jean-Claude Grumberg (n. 1939), recentemente editado (Publicações Dom Quixote, 2020), história emocionante em torno de um bebé com destino marcado para Auschwitz, mas que lá não chegou, assim tendo sorte diferente da de seu irmão gémeo e dos seus pais.

Por esta narrativa passam todos os seres que já conhecemos de outras histórias sobre o Holocausto, identificados sobretudo pelo seu aspecto e função, com escassa referência ao nome - mesmo os lenhadores do casal, salvadores da criança, não têm um nome, apesar de apresentarem um perfil de heróis, cruzando-se o leitor com figuras facilmente identificáveis como os “caçadores dos sem-coração”, os “sem-coração”, o “toupeira”, os “guardas das fardas cor de verdete”, os “caras de caveira”, os “soldados de estrela vermelha”, em claras alusões aos perseguidores e perseguidos, ao denunciante e às polícias, aos libertadores. O papel dos nomes e das marcas que revelam o estatuto das personagens é particularmente forte no caso da criança que depois se torna mulher: Rose, nome dado pelos pais, passará a ser “o pequeno embrulho” (quando é recebida pela lenhadora), “preciosa mercadoria” (quando o casal do bosque descobre tratar-se de uma menina) e Maria Tchekolova (quando, adulta, integra o grupo de pioneiros de elite).

De todos os horrores que constituíram os campos de concentração se lê neste livro, ainda que sem minúcia, pois eles são muito mais sugeridos do que relatados, num gesto de economia descritiva e de incentivo à imaginação e reflexão do leitor, havendo um símbolo que atravessa a história: um comboio, cisterna enigmática e tenebrosa, que passa uma vez por dia por uma linha expressamente construída para um destino que ninguém conhece, a não ser os próprios passageiros que o alcançam. É ele o centro de um curto capítulo, próximo do final, forte no que carrega de chamada de atenção e de aviso às consciências: “Os dias sucederam aos dias, os comboios aos comboios. Nos vagões selados agonizava a humanidade. E a humanidade fazia de conta que não sabia.  Passavam e voltavam a passar comboios provenientes de todas as capitais do continente ocupado (...). Passaram e voltaram a passar, noite e dia, dia e noite, perante a indiferença generalizada.” Simultâneamente, assiste o leitor ao processo de transformação do herói, pai de Rose, retrato de sobrevivente - “ex-barbeiro de crânios, ex-estudante de Medicina, ex-pai de família, ex-ser vivo transformado em sombra”.

O narrador, um contador de histórias, interfere com o leitor em variados momentos, levando-o a pensar que este relato tem um sentido, um objectivo, uma intenção, revelada no final do percurso. Acção intensa, com momentos surpreendentes, muito pela dor, às vezes pela alegria, este A mais preciosa mercadoria tem uma ligação afectiva e sofrida com o autor: o avô, cego, e o pai de Grumberg partiram de Drancy (onde funcionou um campo de detenção de judeus, que daqui partiam para a deportação, e de onde também saiu a família de Rose nesta história), de comboio, em Novembro de 1942 e em Março de 1943, respectivamente, para não sobreviverem.

* JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 456, 2020-09-02, p. 10.


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Tolentino Mendonça: Ler Frei Agostinho da Cruz hoje



Em 3 de Janeiro, o salão nobre da Câmara Municipal de Setúbal encheu-se para a conferência de José Tolentino Mendonça sobre o arrábido Frei Agostinho da Cruz, corriam as celebrações do IV Centenário da Morte e do 480º Aniversário do Nascimento do frade que veio das margens do Lima para as do Sado para uma vida de contemplação, oração e poesia na Arrábida.

Oportuna e intensa foi a intervenção do cardeal madeirense, arquivista-bibliotecário da Santa Sé e poeta. Para lembrar a mensagem, a Câmara Municipal de Setúbal promoveu a edição da conferência sob o título A actualidade de Frei Agostinho da Cruz, contendo, em adenda, as intervenções de saudação de Maria das Dores Meira (Presidente da Câmara) e de Ruy Ventura (comissário diocesano das comemorações) e a de encerramento, por D. José Ornelas, prelado sadino.

A oportunidade da leitura de Tolentino Mendonça resulta da pertinência que os poemas do frade arrábido mostram para o nosso presente. Quase no início do texto, o desafio é lançado: a intenção “não é a de revisitar simplesmente um nome insigne do passado, mas de arriscar um diálogo que faça ressoar, mesmo que muito sumariamente, a importante actualidade de Frei Agostinho da Cruz”, assim se sublinhando a grandeza da figura sobre quem se fala e a perspectiva do diálogo cultural, tornando essa mesma figura um elemento importante para se pensar o hoje.

O ponto de aproximação é o da ideia de “crise”, presente no tempo de Agostinho por um certo desmoronamento “da visão humanista do Renascimento”, num mundo “desgovernado, caótico e trágico”, e presente hoje através de marcas como a “diminuição da confiança nas instituições”, a “falência da ideia vigente de desenvolvimento e de progresso como motores do equilíbrio social” e a “revisão e reinterpretação” dos “pressupostos identitários”. Assim, criadas estão as condições para uma reflexão sobre o destino do Homem, sendo a opção de vida do homenageado entendida como “um laboratório de pensamento acerca do significado último da nossa humanidade”.

Enaltecida é a qualidade que o espaço, a Arrábida, tem para Frei Agostinho - pela intensidade do vivido, ela é vista como “a expressão mais forte e radical do franciscanismo na sua luta pelo culto das origens”, isto é, ali “estavam, na verdade, a acontecer coisas”, testava-se “um silêncio que alterava a palavra” e uma “solidão que iluminava de forma nova a experiência humana”. Por aqui passando, Tolentino Mendonça é crítico relativamente ao “antropocentrismo cego” que caracteriza o nosso tempo e enaltece a conjugação que Frei Agostinho fez entre “um movimento interno de depuração” e “uma ampliação da capacidade contemplativa”, na demanda da “voz silenciosa da natureza como exaltação privilegiada da música de Deus”. O frade arrábido é, assim, apresentado como o iniciador de um percurso de conversão, surgindo o homem vocacionado para ser “cantor do real”, num “horizonte que é a festa” da vida, nos seus caminhos de descoberta do saber e de construção de uma “arte da existência”, talvez a essencial mensagem.

Revela-se de esperança a análise que Tolentino Mendonça faz passar, com referências cruzadas de textos bíblicos e de nomes como Afonso Medina, Anders Retzius, António da Piedade, Daniel Faria, Erich Fromm, Françoise Dolto, José Mattoso, Maria de Lourdes Belchior, Martino Martini, Nietzche, Papa Francisco, Pedro de Alcântara, Rodrigo de Deus, Sebastião da Gama, Silva Dias, Sophia ou Walter Benjamin, todos contribuindo para a construção de um homem que se quer mais profundamente humano e em harmonia com o universo, desafio que, mais do que nunca, temos à nossa frente.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 451, 2020-08-26, pg. 10.


quinta-feira, 30 de julho de 2020

De Setúbal se vê o mundo e o tempo que o faz



Se é verdade que os jornais narram o mundo por episódios que acrescem à medida da periodicidade, também constituem um documento datado (muitas vezes, fonte única) para que a História possa ser feita em qualquer momento, género de visitação ao passado, ali agindo os protagonistas dos tempos, desde o cidadão comum à mais destacada personalidade.

Se dúvidas existissem, bastaria olharmos o livro Setúbal no Centro do Mundo que acaba de sair, editado pelo jornal O Setubalense a partir de ideia do seu director, trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa e devido a uma equipa de vinte colaboradores. O título faz justiça ao papel do jornal e localiza-nos (aos leitores e aos autores): Setúbal como miradouro onde o mundo e o passado podem ser revisitados, perspectiva útil para a imprensa dita regional, que deve noticiar o local sem esquecer o nacional ou o universal pelas implicações destes dois universos nas nossas vidas.

O pretexto do livro, trabalhado por uma equipa com ligações a múltiplas áreas do saber (declaração de interesse: sou um dos membros do grupo), foi o 165º aniversário do título jornalístico O Setubalense, puxado para o mundo da imprensa pelo sadino Almeida Carvalho em 1855, data em que O Setubalense se colou à identidade desta região, muito embora com algumas interrupções.

Estruturado em seis partes, Setúbal no Centro do Mundo sustenta-se em diversos vectores que favorecem o pendor narrativo, por um lado, e o encontro com momentos, acções ou personagens essenciais ao espaço setubalense, por outro. Do ponto de vista dos acontecimentos, estão eles organizados em dois grupos - os que têm a marca local, gerados a partir de Setúbal, e os que assentam em mais vastas latitudes, sejam nacionais ou internacionais. Desde 1855, foram escolhidos 55 factos ocorridos na margem do Sado, em áreas tão diversas quanto o associativismo e as colectividades, o lazer, a educação, o desporto, a política, o mundo do trabalho, a mobilidade, os investimentos em obras e melhoramentos, a industrialização, a afirmação de valores, a cultura, a economia, a religião ou a preocupação ambiental. No plano nacional ou internacional, o destaque caiu sobre 23 eventos, selecionados a partir da segunda fase de publicação do jornal (1916), todos de suma importância para o nosso estado de cidadãos pelas réplicas geradas - a título de exemplo, refiram-se a Revolução Russa, a guerra civil em Espanha, as duas guerras mundiais, a guerra colonial, a europeização do Benfica, as implicações do domínio soviético em diversos países, as visitas papais a Portugal, a entrada na União Europeia, o caso de Timor, o nobelizado Saramago ou o 11 de Setembro, todos eles contados a partir daquilo que O Setubalense escreveu na altura sobre os mesmos, via relato informativo ou texto de opinião.

Não se fazendo a história sem personagens, outra parte da obra é construída sobre perfis de 52 nomes ligados a Setúbal durante este século e meio ou sobre os quais houve eventos neste mesmo tempo. Por aqui passam nomes indiscutivelmente conhecidos e divulgados, associados a outros sobre os quais haverá menos conhecimento - Agostinho da Cruz, Américo Ribeiro, António José Baptista, António Maria Eusébio, Bocage, Francisco Paula Borba ou Jacinto João, entre outros, levam-nos à redescoberta, assim como Agripino Maia, António Joaquim de Melo, Armando de Medeiros, Mendes Dordio, José Augusto Coelho, José Bernardo ou Maria Emília Barradas, entre muitos outros, chamam à descoberta. De personagens se fala também num outro capítulo com notícias avulsas, coleccionadas a partir de 1855, tendo como protagonista o cidadão comum e as suas vivências do quotidiano, imagens do que a cidade foi também nas histórias que muitas vezes se não contam.

Finalmente, o jornal e a sua história, porque o leitor deve conhecer esta figura que lhe traz as notícias e as caras todos os dias, surgem num capítulo que contextualiza o tempo em que o jornal se criou e em que são lembradas as várias fases por que passou (por vezes interrompidas por acontecimentos políticos, razões económicas, situações de contexto) e num outro em que são visitadas algumas páginas que tiveram continuidade (das várias possíveis), normalmente ligadas à cultura ou ao pensamento.

Ao ter este livro uma mensagem de saudação do Presidente da República (e sabemos como Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi ligado aos jornais), ele acaba por ser também uma homenagem à própria história da imprensa sadina e a todos aqueles que sistematicamente a fazem para garantir a opinião como um dos elementos-base da democracia. Este é, aliás, um dos aspectos pensado por Viriato Soromenho-Marques no texto introdutório, ao referir a necessidade de o homem “olhar criticamente o quotidiano de uma cidade”, depois de evocar uma interessante e feliz citação hegeliana - “a leitura dos jornais é a oração matinal do homem atento à realidade.”

Setúbal no Centro do Mundo é, pois, um livro para não esquecer - pelo que consegue coligir do muito que nos faz o que somos, pelas histórias que nos (re)conta, pelo contributo para a história local absolutamente interligada com o universal, com a vantagem de todos os contributos serem apresentados em textos curtos e autónomos. Podemos questionar-nos sobre os acontecimentos escolhidos ou as personagens selecionadas... Podemos, claro. Mas esta obra é apenas um olhar plural sobre a vida de uma região, necessariamente com escolhas, sempre discutíveis porque, na nossa livre opinião, conseguimos sempre encontrar um, dois (ou mais) eventos ou uma, duas (ou mais) personagens que deveriam constar. Mas há uma razão de fundo: uma escolha pressupõe os caminhos do essencial, sendo que o mundo se faz com o essencial e com tudo aquilo que o rodeia. Como se costuma dizer: um livro a não perder e a ser visitado sempre que apeteça olhar como chegámos até aqui.
J.R.R. O Setubalense: nº 447, 2020-07-30, pg. 2

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O chapéu que defende o descarregador



Foi no início da década de 1980 que uma francesa de Reims e um setubalense dos “Quatro Caminhos” se conheceram em Setúbal. Pretexto: o ofício dele. Passados anos (ela, a caminho do doutoramento; ele, “iletrado”), casaram-se e viveram entre Setúbal e Paris.

Noëlle Perez-Christiaens (1925-2019) e José Miguel da Fonseca (1932-2015) são os autores de Setúbal - ‘Quatro Caminhos’ et le ‘descarregador’ - Petit guide pour découvrir des choses cachées, livro editado pelo Institut Supérieur d’Aplomb (Paris, 1987). Noëlle, etnóloga, correra diversos países por mor da sua investigação - comunidades em que “as pessoas transportam à cabeça, porque, em geral, não sofrem nem das costas nem do pescoço” e, junto do Sado, em Setúbal, encontrou a colónia dos “descarregadores” de peixe, “homens belos como deuses, com uma forma de andar altiva e rápida”, “como árvores tranquilas apesar da brisa marinha”, “humildes”, “simples”. Impressionada, convenceu-os a serem radiografados nas suas posições naturais de trabalho (o primeiro voluntário foi Miguel), usando o característico chapéu de descarregador (utensílio candidato por Setúbal às 7 Maravilhas da Cultura Popular, na modalidade de artefactos), análise que jamais fora feita: “era a primeira vez que radiologistas viam colunas vertebrais em bom estado e as suas formas espantaram-nos”: os descarregadores conservavam o tórax com as características observáveis no “recém-nascido ou nas crianças ainda pequenas, sem as deformações pelas posturas que vão assumindo na escola”.

A investigação levou Noëlle Perez-Christiaens a conhecer as condições de vida desta comunidade (caracterização da cidade, vida na lota, alimentação, tipologia das casas, distracções), guiada por Miguel, havendo referências a outros companheiros de ofício como Ernesto, “Encarnadinho”, Eduardo, “No”, “Piguita”, Silvinho e “Limpinho”, entre outros. Entrar nestas formas de vida justifica o subtítulo escolhido, “pequeno guia para descobrir coisas escondidas”, chamando a atenção dos visitantes, onde quer que eles estejam, para sentirem os valores que o óbvio esconde.

O essencial desta obra visa explicar o contributo do transporte à cabeça para a manutenção da saúde da coluna: “não só o pescoço mobiliza a cabeça para suportar a carga, mas também todos os músculos dorsais, as costas, se ajustam em contra-peso, num movimento ágil e eficaz”, em que a coluna se estira e o tronco se alonga. Nesta acção entra o famoso chapéu do descarregador, utensílio “sagrado”, pois, “sem ele, a vida seria muito mais complicada”, tornando-se “amigo indispensável, que simplifica tudo” naquela profissão. Pela descrição de Noëlle, sobre a cabeça é usado um “lenço”, por cima do qual assenta a “barretina” e, depois, o chapéu (na altura, feito de tecidos grossos bem envolvidos em camada de óleo, hoje construído com outros materiais), circular, com larga aba de forma tubular, resistente à água, aqui se percebendo a sua função primeira: proteger o descarregador da água que escorre das canastras ou das caixas cheias de peixe, que, a partir do barco, transporta à cabeça. Podendo pesar cerca de dois quilos quando seco, o chapéu atinge seis quilos quando molhado, ajudando a suportar cestas que rondam os trinta quilos. Uma segunda função relaciona-se com o proveito próprio do descarregador - o peixe que caia da caixa e se mantenha na aba passa a pertencer-lhe; por outro lado, é também dentro dessas abas que o descarregador prepara o peixe para ser cozinhado. 

Noëlle Perez-Christiaens destacou o que se pode aprender com os descarregadores em termos de posturas corporais e, ao chamar Miguel para co-autor, homenageou este grupo e deu uma prova de gratidão e de amor a quem lhe desvendou este universo.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 446, 2020-07-29, pg. 5.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Lenda da Arrábida recontada



Em 1989, o padre Manuel Frango de Sousa (1929-2000) assinava o opúsculo policopiado A Lenda de Santa Maria da Arrábida, revelando as fontes de tal narrativa.

O essencial da lenda (candidata às “7 Maravilhas da Cultura Popular” na modalidade “Lendas e Mitos”) conta-se rápido: por 1215, o mercador Hildebrant navegava de Inglaterra para Lisboa e, próximo do destino, uma tempestade atirava o seu barco para a zona da Arrábida; perante desastre iminente, o inglês correu ao camarote para suplicar protecção a uma imagem de Nossa Senhora que o acompanhava, reparando que a figura desaparecera; desamparada, a tripulação rápido se reanimaria ao avistar grande clarão sobre a serra, tentando seguir nessa direcção; na manhã seguinte, os que conseguiram chegar a terra procuraram na serra o sítio de onde brotara o clarão, aí encontrando a imagem desaparecida; Hildebrant decidiu ficar naquele lugar, construindo uma capela, a Ermida da Memória, e iniciando, com alguns companheiros, vida eremita.

Na sua investigação, Frango de Sousa transcreve vários documentos relacionados com esta lenda, começando por reproduzir, a partir de obra de Frei António da Purificação (1638), testemunho de Hildebrant quanto à fundação da ermida e à obra ali iniciada, datado de Março de 1220, acrescentando Frei António ser Hildebrant um religioso eremita, capelão de Bartolomeu, viajante fidalgo a bordo. Quase um século depois, em 1721, Frei António da Piedade dirá que a embarcação de Hildebrant teria vindo parar a Alportuche, não se desviando, no resto da narrativa, daquilo que a lenda contava. Até aqui, as versões apresentadas não eram alheias a oposições entre ordens religiosas (agostinhos e franciscanos) que tentavam a primazia na ocupação religiosa da Arrábida.

Por 1896, Joaquim Rasteiro (1834-1898) relacionou a vinda de Hildebrant com a fuga de comerciantes de Inglaterra na sequência de acontecimentos políticos no século XIII; na restante narrativa, Rasteiro pincelou a paisagem e os sentimentos algo ao gosto romântico, mantendo a linha dos acontecimentos. O último relato recolhido por Manuel Frango de Sousa reproduz o poema de Arronches Junqueiro (1868-1940) publicado na obra Arrábida, organizada por José Maria da Rosa Albino (1874-1941) em 1939 - com 23 estrofes, o texto anuncia a excepcionalidade da história ao dizer: “Vou contar a santa lenda / desta serra. Ouvi, ouvi! / É tão bela esta legenda, / que outra igual eu nunca vi.” Depois, é a luta do homem contra os elementos, buscando a salvação, e o encontro do sítio onde raiou a “luz branca”, poiso da imagem e futuro local de culto.

Uma das razões para o estudo do padre Manuel Frango de Sousa foi a publicação, em 1988, pelo azeitonense Carlos Alberto Ferreira Júnior (1906-1997), de Lenda da Arrábida, longa narrativa em prosa, que não se afasta do essencial da história, povoando-a de marcas locais e de personagens com profundo sentido religioso e tentando explicar o culto popular sentido em Azeitão relativamente a Nossa Senhora da Arrábida.

Em 2014, nova versão literária da história foi dada a conhecer - Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, de Sebastião da Gama (1924-1952), poema de Janeiro de 1942, inédito até ao momento em que a Associação Cultural Sebastião da Gama o divulgou. Contando a aventura de Hildebrant, o texto é sobretudo um poema de fé, em cujo final o homem surge inundado de uma paz interior, possível porque nunca lhe faltou a confiança num Deus próximo.

A lenda da Arrábida, contada a partir da historiografia religiosa, entrou no imaginário popular e na literatura, assim se cumprindo a dinâmica que anima todas as lendas.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 441, 2020-07-22, pg. 14. 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quando Luiz Pacheco escreveu a Raposo Nunes



Na bibliografia de Luiz Pacheco (1925-2008) constam vários títulos que reúnem parte da sua epistolografia, área em que foi pródigo, talvez por constituir esse género um espaço de liberdade e de autenticidade (à mistura com alguma teatralidade e com alguma preocupação em deixar obra), valores que o nortearam. Entre 1990 (19 de Dezembro) e 2003 (9 de Abril), em Setúbal, o livreiro e alfarrabista João Carlos Raposo Nunes recebeu 22 missivas do seu amigo Pacheco, conjunto que, em 2005, foi publicado sob o título de Cartas ao Léu, agora republicado (Lisboa: Maldoror, 2020).

Organizador das edições foi António Cândido Franco, que assume este reaparecimento como uma oportunidade para “revisitar” aquilo que considera “o retrato de uma geração fim de século que se reuniu à volta de Raposo Nunes entre 1989 e 2000”. Com efeito, o destinatário destas cartas, responsável pela livraria setubalense Uni-Verso, fomentou, nesse tempo, um grupo que tinha como características mais evidentes o amor ao pensamento e à poesia, muitos dos seus elementos participantes na página “Arca do Verbo”, que Raposo Nunes animou no periódico O Setubalense ao longo de quase uma década (362 números, entre 1988 e 1997), por onde passaram cerca de 350 autores, incluindo Luiz Pacheco (em cinco números).

Este conjunto de dezassete postais e cinco cartas tem a primeira mensagem datada de 1990, estando as outras registadas entre 1999 e 2003. O hiato de nove anos na escrita explica-se por ter sido esse o tempo em que Pacheco viveu entre Setúbal e Palmela, propício a muitos encontros entre os dois amigos; em 1999, ao mudar-se para o Montijo (e, depois, para Lisboa), Pacheco recorreu às cartas para o convívio com o amigo de Setúbal.

Não são longas as comunicações; mas são povoadas por muita gente e por uma forma de pensar que põe a descoberto o espírito do emissor. O fascínio de Pacheco pelo estabelecimento do amigo é vivamente demonstrado logo no postal de 1990: “Isso não é uma livraria; isso não é um alfarrabista; isso não é para vender selos da Indonésia. (...) Isso é o Olimpo.” A partir de 1999, o destinatário é referido como “Raposão”, “Senhor Raposão”, “Poeta editor, livreiro”, “Dr.”, “Sr. Raposão-Mor”, “Dr. Raposão”, “Poeta”, “Poeta e Amigão” e “Mister Raposão”, formas de tratamento que demonstram a proximidade, o afecto, a criatividade e a vivacidade discursiva do subscritor.

Os assuntos abordados são diversos - a vida editorial, pedido de livros, o dinheiro (ou a falta dele), os amigos, a opinião sobre algumas obras, desabafos sobre a vivência nas residências por onde passou -, sempre numa escrita de impulso, rápida, eficaz na brevidade, povoada por um sentido de humor à maneira pachequiana - alternando entre o irónico e o terno, o humano e o satisfeito com a vida.

Esta nova edição de Cartas ao Léu apresenta os textos que constavam na anterior (a correspondência amplamente anotada, alguns ensaios sobre a epistolografia e a crítica de Pacheco e um roteiro cronológico de contextualização, assinados pelo organizador; dois textos de Luiz Pacheco saídos no suplemento “Arca do Verbo”;  e apreciações sobre a obra Raposo Nunes assinadas por António Cabrita, Avelino de Sousa e Agostinho da Silva), acrescidos de dois curtos textos que actualizam a obra em termos de bibliografia aparecida nos 15 anos que medeiam as duas edições e justificam a reedição e de fotografias.

Obra a (re)ler. Sobretudo porque revivemos o tempo feliz (apesar de tudo) que Luiz Pacheco passou, à sua maneira, em Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 436, 2020-07-15, pg. 10.

sábado, 11 de julho de 2020

Maria Albina Bartolomeu: História(s) de família em Azeitão



O livro abre com uma fotografia do casal José dos Santos e Maria José, em jeito de quem inicia a visita a um álbum de família de que eles serão os inauguradores (se é que há fundadores de família...). Parte importante da narrativa vai viver deste par, bisavós de Maria Albina Bartolomeu, que assina Um dia que mudou vidas (Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2019), recriação da história de várias gerações a partir de relatos transmitidos pela avó, Susana Martins, e pelo pai, Albino Martins.

O propósito é anunciado em nota prévia - “deixar um testemunho dos nossos antepassados aos meus descendentes” - e reforçado no final, ao fechar a narração (e a escrita): “que esta narrativa sirva para os mais novos nunca esquecerem as suas origens”. Assumido o carácter testemunhal, o leitor entra na história da família, muitas vezes ouvindo a voz da narradora, quer enquanto mediadora entre o passado e o presente, contextualizando muitas vezes os tempos e as suas circunstâncias (por vezes, comentando as diferenças resultantes dos hábitos e das modas), quer como responsável pelo enunciado, visível logo no início do primeiro capítulo - “Começo hoje este texto, dia 5 de Outubro de 2017. Primeiro a ideia surgiu de forma espontânea, mas, ao iniciar o mesmo, lembrei-me de que este dia tinha também muito significado na vida de alguns dos intervenientes nesta pequena biografia de uma família.”

José dos Santos (1858-1930), cognominado “Caramelo”, natural da Anadia, chegou a Azeitão em 1866, depois de um percurso em busca da subsistência e marcado pelos medos e pelas inseguranças, sendo acolhido pelo casal Manuel e Josefa num regime de adopção aceite por ambas as partes. Do casamento de José dos Santos com Maria José nasceram vários filhos, acompanhando o leitor o percurso de Susana (1897-1977), que enviuvou de Francisco (1923) depois de seis anos de casamento, relação de que houve três descendentes, sendo privilegiado o percurso de Albino Xavier (1918-2005), casado com Maria Bárbara (f. 2013), também com três filhos, sendo uma das irmãs Maria Albina (n. 1951), a autora, casada em 1975 com Manuel. Quatro gerações passam nesta história, ainda que haja referências aos pais da primeira geração e aos filhos e netos da última.

As personagens vivem entre Azeitão e Setúbal (com alusões a outros locais da região), espaços em que se cruzam com figuras localmente conhecidas (Alexandre Cardoso, o médico Teixeira, Artur Cardoso, Isabel Chagas, Manuel Pato, Peres Claro, Mestre Oliveira, entre outras). Embora a narrativa não explore as descrições, ao longo das décadas abrangidas, há lugar para contextualizar tempos como a Segunda Grande Guerra, a Guerra Colonial, o do receio causado pela polícia política ou o 25 de Abril. A propósito de alguns episódios, surgem também comentários ao presente (“hoje em dia, teme-se que as nossas crianças fiquem afectadas negativamente pelo facto de ajudarem os pais nas tarefas domésticas”, por exemplo), manifestando-se assim o propósito de testemunhar a diferença e a mudança dos valores.

A história (num texto que mereceria uma revisão cuidada) resume cerca de 150 anos do percurso de uma família (1866-2017, entre a chegada de José a Azeitão e o início da escrita), em que intervieram pessoas que foram heróis das suas vidas, numa narrativa que mostra de que são feitas as identidades e que aqueles com que nos cruzamos no mundo são, todos eles, bom assunto para um relato, pois qualquer vida dá um bom filme...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 431, 2020-07-08, p. 10.