Em 3 de Janeiro, o salão nobre da Câmara Municipal de Setúbal encheu-se para a conferência de José Tolentino Mendonça sobre o arrábido Frei Agostinho da Cruz, corriam as celebrações do IV Centenário da Morte e do 480º Aniversário do Nascimento do frade que veio das margens do Lima para as do Sado para uma vida de contemplação, oração e poesia na Arrábida.
Oportuna e intensa foi a intervenção do cardeal madeirense, arquivista-bibliotecário da Santa Sé e poeta. Para lembrar a mensagem, a Câmara Municipal de Setúbal promoveu a edição da conferência sob o título A actualidade de Frei Agostinho da Cruz, contendo, em adenda, as intervenções de saudação de Maria das Dores Meira (Presidente da Câmara) e de Ruy Ventura (comissário diocesano das comemorações) e a de encerramento, por D. José Ornelas, prelado sadino.
A oportunidade da leitura de Tolentino Mendonça resulta da pertinência que os poemas do frade arrábido mostram para o nosso presente. Quase no início do texto, o desafio é lançado: a intenção “não é a de revisitar simplesmente um nome insigne do passado, mas de arriscar um diálogo que faça ressoar, mesmo que muito sumariamente, a importante actualidade de Frei Agostinho da Cruz”, assim se sublinhando a grandeza da figura sobre quem se fala e a perspectiva do diálogo cultural, tornando essa mesma figura um elemento importante para se pensar o hoje.
O ponto de aproximação é o da ideia de “crise”, presente no tempo de Agostinho por um certo desmoronamento “da visão humanista do Renascimento”, num mundo “desgovernado, caótico e trágico”, e presente hoje através de marcas como a “diminuição da confiança nas instituições”, a “falência da ideia vigente de desenvolvimento e de progresso como motores do equilíbrio social” e a “revisão e reinterpretação” dos “pressupostos identitários”. Assim, criadas estão as condições para uma reflexão sobre o destino do Homem, sendo a opção de vida do homenageado entendida como “um laboratório de pensamento acerca do significado último da nossa humanidade”.
Enaltecida é a qualidade que o espaço, a Arrábida, tem para Frei Agostinho - pela intensidade do vivido, ela é vista como “a expressão mais forte e radical do franciscanismo na sua luta pelo culto das origens”, isto é, ali “estavam, na verdade, a acontecer coisas”, testava-se “um silêncio que alterava a palavra” e uma “solidão que iluminava de forma nova a experiência humana”. Por aqui passando, Tolentino Mendonça é crítico relativamente ao “antropocentrismo cego” que caracteriza o nosso tempo e enaltece a conjugação que Frei Agostinho fez entre “um movimento interno de depuração” e “uma ampliação da capacidade contemplativa”, na demanda da “voz silenciosa da natureza como exaltação privilegiada da música de Deus”. O frade arrábido é, assim, apresentado como o iniciador de um percurso de conversão, surgindo o homem vocacionado para ser “cantor do real”, num “horizonte que é a festa” da vida, nos seus caminhos de descoberta do saber e de construção de uma “arte da existência”, talvez a essencial mensagem.
Revela-se de esperança a análise que Tolentino Mendonça faz passar, com referências cruzadas de textos bíblicos e de nomes como Afonso Medina, Anders Retzius, António da Piedade, Daniel Faria, Erich Fromm, Françoise Dolto, José Mattoso, Maria de Lourdes Belchior, Martino Martini, Nietzche, Papa Francisco, Pedro de Alcântara, Rodrigo de Deus, Sebastião da Gama, Silva Dias, Sophia ou Walter Benjamin, todos contribuindo para a construção de um homem que se quer mais profundamente humano e em harmonia com o universo, desafio que, mais do que nunca, temos à nossa frente.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 451, 2020-08-26, pg. 10.
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