quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quando Luiz Pacheco escreveu a Raposo Nunes



Na bibliografia de Luiz Pacheco (1925-2008) constam vários títulos que reúnem parte da sua epistolografia, área em que foi pródigo, talvez por constituir esse género um espaço de liberdade e de autenticidade (à mistura com alguma teatralidade e com alguma preocupação em deixar obra), valores que o nortearam. Entre 1990 (19 de Dezembro) e 2003 (9 de Abril), em Setúbal, o livreiro e alfarrabista João Carlos Raposo Nunes recebeu 22 missivas do seu amigo Pacheco, conjunto que, em 2005, foi publicado sob o título de Cartas ao Léu, agora republicado (Lisboa: Maldoror, 2020).

Organizador das edições foi António Cândido Franco, que assume este reaparecimento como uma oportunidade para “revisitar” aquilo que considera “o retrato de uma geração fim de século que se reuniu à volta de Raposo Nunes entre 1989 e 2000”. Com efeito, o destinatário destas cartas, responsável pela livraria setubalense Uni-Verso, fomentou, nesse tempo, um grupo que tinha como características mais evidentes o amor ao pensamento e à poesia, muitos dos seus elementos participantes na página “Arca do Verbo”, que Raposo Nunes animou no periódico O Setubalense ao longo de quase uma década (362 números, entre 1988 e 1997), por onde passaram cerca de 350 autores, incluindo Luiz Pacheco (em cinco números).

Este conjunto de dezassete postais e cinco cartas tem a primeira mensagem datada de 1990, estando as outras registadas entre 1999 e 2003. O hiato de nove anos na escrita explica-se por ter sido esse o tempo em que Pacheco viveu entre Setúbal e Palmela, propício a muitos encontros entre os dois amigos; em 1999, ao mudar-se para o Montijo (e, depois, para Lisboa), Pacheco recorreu às cartas para o convívio com o amigo de Setúbal.

Não são longas as comunicações; mas são povoadas por muita gente e por uma forma de pensar que põe a descoberto o espírito do emissor. O fascínio de Pacheco pelo estabelecimento do amigo é vivamente demonstrado logo no postal de 1990: “Isso não é uma livraria; isso não é um alfarrabista; isso não é para vender selos da Indonésia. (...) Isso é o Olimpo.” A partir de 1999, o destinatário é referido como “Raposão”, “Senhor Raposão”, “Poeta editor, livreiro”, “Dr.”, “Sr. Raposão-Mor”, “Dr. Raposão”, “Poeta”, “Poeta e Amigão” e “Mister Raposão”, formas de tratamento que demonstram a proximidade, o afecto, a criatividade e a vivacidade discursiva do subscritor.

Os assuntos abordados são diversos - a vida editorial, pedido de livros, o dinheiro (ou a falta dele), os amigos, a opinião sobre algumas obras, desabafos sobre a vivência nas residências por onde passou -, sempre numa escrita de impulso, rápida, eficaz na brevidade, povoada por um sentido de humor à maneira pachequiana - alternando entre o irónico e o terno, o humano e o satisfeito com a vida.

Esta nova edição de Cartas ao Léu apresenta os textos que constavam na anterior (a correspondência amplamente anotada, alguns ensaios sobre a epistolografia e a crítica de Pacheco e um roteiro cronológico de contextualização, assinados pelo organizador; dois textos de Luiz Pacheco saídos no suplemento “Arca do Verbo”;  e apreciações sobre a obra Raposo Nunes assinadas por António Cabrita, Avelino de Sousa e Agostinho da Silva), acrescidos de dois curtos textos que actualizam a obra em termos de bibliografia aparecida nos 15 anos que medeiam as duas edições e justificam a reedição e de fotografias.

Obra a (re)ler. Sobretudo porque revivemos o tempo feliz (apesar de tudo) que Luiz Pacheco passou, à sua maneira, em Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 436, 2020-07-15, pg. 10.

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