sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Naquele tempo: contar as dores da pandemia na cidade

 


O livro fala-nos através de fotografias e de legendas, que começam, quase todas, pela expressão “naquele tempo”, à semelhança do início do evangelho nas cerimónias religiosas, dando a ideia de recuo na cronologia, de súbita transição para um passado, de rememoração de algo. No entanto, Cidade suspensa - Lisboa em estado de emergência, de Miguel Valle de Figueiredo (fotografia) e Bruno Vieira Amaral (texto), é bem actual, pois recolhe fotografias da cidade feitas entre Março e Abril, época de recolhimento obrigatório devido à pandemia.

Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (2020), pelas suas fotografias, vemos a cidade que não vimos (estava-se em situação de emergência), a cidade distante do seu fundamental elemento, as pessoas, num olhar de falso vazio, pois a verdade é que a cidade albergava essas mesmas pessoas. Pelo texto, seguimos pistas de leitura e de exploração que nos acordam, recordam, relembram, colocando já o tempo num passado, assim reagindo a esse estado de suspensão que o título chama.

Foi Italo Calvino quem escreveu, nessa obra magnífica que é As cidades invisíveis (1972), que “todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem.” E é esta ideia que Bruno Vieira Amaral assinala, ao dizer que “uma cidade vazia é um deserto com prédios”. Isto é: a cidade adquire sentido com as pessoas que fazem com que ela mexa, viva. Se estiver vazia, a cidade torna-se desconhecida, fantasmagórica, assustadora, desumana.

Ainda à maneira do evangelho, o livro começa: “No princípio, eram os Números. Casos confirmados, casos suspeitos, óbitos, recuperados”, colunas de uma estatística que nos habituámos a ouvir desde Março, mês que deveria ser o de anúncio da Primavera e da alegria rejuvenescedora... E vemos a transformação nas fotografias, evidenciando uma outra existência: parques infantis fechados; estações de transportes vazias; esplanadas encerradas; vias rápidas e avenidas silenciadas pela ausência de tráfego; ruas, praças e bairros sem gente; estátuas sem quem as admire; aviões estacionados... Um tempo sem pressa e sem destino. Simultaneamente, nos poucos rostos que aparecem, é a inovação da máscara (ocultadora de expressões, de iras, de sorrisos), associada a pessoas sós ou a grupos muito restritos, apercebendo-se o leitor de que as varandas, em contrapartida, passam a ser espaços de respiração dos albergados na cidade, pontos de leitura da vida e do mundo.

O livro termina com uma ideia de persistência de uma normalidade condicionada pelas circunstâncias: assiste o leitor a momentos de solidariedade e de partilha e à celebração pascal na Sé de Lisboa ou às orações do Ramadão na Mesquita de Lisboa sem que haja fiéis, enchendo-se esses espaços com a presença do cardeal-patriarca ou do imã, num gesto de aproximação e de permanência em tempos de confinamento. E, depois, a fechar, uma fotografia que também nos ficará na memória: a manifestação do Primeiro de Maio, em disposição matemática, como se estivéssemos a ser preparados para um lento e progressivo fim da suspensão.

As imagens marcam-nos por tudo isto e por aquilo que pudemos viver, ainda que sem termos visto as entranhas da cidade porque dela nos ausentámos. E há ainda frases que batem como badaladas: “a grande história da pandemia é a de tudo o que não aconteceu” ou “naquele tempo, cada rua era um tratado de silêncio”.

Cidade suspensa é um livro intenso, que servirá para mostrar e contar a experiência de um tempo que a História haverá de registar.

 * JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 461, 2020-09-09, p 10.


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