No princípio: “Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.” No final, uma centena de páginas adiante: “É esta a única coisa que merece existir, tanto nas histórias como na vida real. O amor, o amor dirigido às crianças, às nossas e às dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo o que não existe, a vida continue.” Entre estes segmentos decorre o conto A mais preciosa mercadoria, do francês Jean-Claude Grumberg (n. 1939), recentemente editado (Publicações Dom Quixote, 2020), história emocionante em torno de um bebé com destino marcado para Auschwitz, mas que lá não chegou, assim tendo sorte diferente da de seu irmão gémeo e dos seus pais.
Por esta narrativa passam todos os seres que já conhecemos de outras histórias sobre o Holocausto, identificados sobretudo pelo seu aspecto e função, com escassa referência ao nome - mesmo os lenhadores do casal, salvadores da criança, não têm um nome, apesar de apresentarem um perfil de heróis, cruzando-se o leitor com figuras facilmente identificáveis como os “caçadores dos sem-coração”, os “sem-coração”, o “toupeira”, os “guardas das fardas cor de verdete”, os “caras de caveira”, os “soldados de estrela vermelha”, em claras alusões aos perseguidores e perseguidos, ao denunciante e às polícias, aos libertadores. O papel dos nomes e das marcas que revelam o estatuto das personagens é particularmente forte no caso da criança que depois se torna mulher: Rose, nome dado pelos pais, passará a ser “o pequeno embrulho” (quando é recebida pela lenhadora), “preciosa mercadoria” (quando o casal do bosque descobre tratar-se de uma menina) e Maria Tchekolova (quando, adulta, integra o grupo de pioneiros de elite).
De todos os horrores que constituíram os campos de concentração se lê neste livro, ainda que sem minúcia, pois eles são muito mais sugeridos do que relatados, num gesto de economia descritiva e de incentivo à imaginação e reflexão do leitor, havendo um símbolo que atravessa a história: um comboio, cisterna enigmática e tenebrosa, que passa uma vez por dia por uma linha expressamente construída para um destino que ninguém conhece, a não ser os próprios passageiros que o alcançam. É ele o centro de um curto capítulo, próximo do final, forte no que carrega de chamada de atenção e de aviso às consciências: “Os dias sucederam aos dias, os comboios aos comboios. Nos vagões selados agonizava a humanidade. E a humanidade fazia de conta que não sabia. Passavam e voltavam a passar comboios provenientes de todas as capitais do continente ocupado (...). Passaram e voltaram a passar, noite e dia, dia e noite, perante a indiferença generalizada.” Simultâneamente, assiste o leitor ao processo de transformação do herói, pai de Rose, retrato de sobrevivente - “ex-barbeiro de crânios, ex-estudante de Medicina, ex-pai de família, ex-ser vivo transformado em sombra”.
O narrador, um contador de histórias, interfere com o leitor em variados momentos, levando-o a pensar que este relato tem um sentido, um objectivo, uma intenção, revelada no final do percurso. Acção intensa, com momentos surpreendentes, muito pela dor, às vezes pela alegria, este A mais preciosa mercadoria tem uma ligação afectiva e sofrida com o autor: o avô, cego, e o pai de Grumberg partiram de Drancy (onde funcionou um campo de detenção de judeus, que daqui partiam para a deportação, e de onde também saiu a família de Rose nesta história), de comboio, em Novembro de 1942 e em Março de 1943, respectivamente, para não sobreviverem.
* JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 456, 2020-09-02, p. 10.
Sem comentários:
Enviar um comentário