quarta-feira, 26 de junho de 2019

Manuel dos Santos Rodrigues - Ofício poético em louvor da vida



“Não me considero um poeta.” É a primeira frase que salta neste Altar de Pena Escrita, de Manuel dos Santos Rodrigues (Ed. Autor, 2018), que carrega ainda o subtítulo de “Tríptico Poético”. Poucas palavras andadas, uma explicação: “Isto não quer dizer que não tenha momentos, raros talvez, mas genuínos, de sensibilidade poética”. E, logo a seguir: “nesses momentos, com um pouco de habilidade versífera, pode surgir um poema”.
Um poema é um estado, uma técnica, uma voz própria, resulta de um momento, congrega tudo isso? Um poema é o sublime de uma língua que se escreve? Um poema justifica-se? O “prólogo” que Manuel Rodrigues apresenta tenta fundamentar os momentos poéticos que constituem este livro, desde logo assinalando a capacidade metafórica e a alegoria que podem existir nas pequenas coisas - “Um dia, alguém passa e repara naquele pequeno pormenor. Visto ao longe, é massa indistinta na paisagem, mas eis que, tocado pela vista, brilha com um relevo particular, dotado de especial encanto.” A poesia exige então esse movimento que se estabelece entre o “parar” e o “reparar”, daí surgindo a revelação, uma descoberta - “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, escreveu Sebastião da Gama, assim como quem diz que a poesia cauciona a graça, impõe a maravilha.
O jeito deste “prólogo” é semelhante ao “imprimatur” aposto pela autoridade para que o livro possa ser publicado, com a diferença de que, aqui, é o próprio autor que o atribui - “Este será o meu único livro de poesia. Valerá a pena? (...) Ainda assim, publique-se.” Quase parece que o autor tem de se pôr de acordo com o poeta que se esconde para que o livro aconteça!
E o autor volta a intervir logo a seguir, agora sob a forma de “Manifesto”, um conjunto de dez quadras em defesa da forma de escrita, em contestação do Acordo Ortográfico, por onde circulam a ironia e a recusa, mesmo o maldizer, em jeito de bengalada mais camiliana que queirosiana, numa brincadeira poética que não pode ser lida sem o acompanhamento da nota que, no início adverte que o autor não segue o Acordo “por o considerar inconsistente do ponto de vista científico e incoerente do ponto de vista técnico”.
Só a partir daqui entra o leitor no caminho do Altar de Pena Escrita, obra que se apresenta organizada em três partes: “Memória”, “Insano Amor” e “O Canto e a Pena”. É obrigatório de imediato associar esta trilogia a três momentos de um percurso - desde “Memória”, o primeiro conjunto de poemas, que nos remete para o tempo mais distante, para os fragmentos que desse tempo ficaram gravados, até “O Canto e a Pena”, a última parte, que nos chama a atenção para o título da obra, a juntar a necessidade da expressão (o “canto” ou a escrita que coroa a vida) e o sofrimento e dificuldade que compõem a vida (a “pena”). A escolha dos títulos para estas partes acaba por ser uma decisão poética que lhes associa os epítetos de clássicos como Plutarco, Anacreonte e Estesícoro e ainda criações mitológicas como Eros (na segunda parte) e Apolo e Hades (na terceira), assim se conferindo um tom alegórico a esta obra.
De facto, o leitor está perante uma obra em que se misturam o autor e o poeta, nisso se estabelecendo um certo pacto autobiográfico, umas vezes mais assumido, outras vezes mais sugerido. Poderemos dizer que este Altar de Pena Escrita é uma autobiografia que se aloja numa alegoria, grande sucessão de imagens que se colam a momentos, a lugares, a gestos. Um exemplo: qual a função das seis histórias que iniciam a primeira parte do livro, sob o título “Fábulas”? As histórias são conhecidas e circulam em todo o lado - a raposa e as uvas, o corvo e a raposa, a rã e a vaca, a cegonha e a raposa, o lobo e o cordeiro, o burrinho e o lobo -, tenham elas chegado a partir de Esopo, de La Fontaine ou da tradução que Bocage de algumas fez. Se as fábulas remetem para os ensinamentos através das narrativas, também nos lembram a simplicidade dos primeiros textos orais e sugerem ainda o tempo da infância. Ora, o percurso inicia-se numa infância, que pode ter uma dupla interpretação: a infância do traçado autobiográfico e a infância da escrita.
Este grupo é ainda constituído por poemas que denotam a aprendizagem veiculada pela via religiosa e por outros em que a prova autobiográfica surge evidente, desde logo pela evocação de Marmelos, a aldeia do concelho de Mirandela em que o autor nasceu, designada por “aldeia pequenina” (em que o adjetivo tem a dupla leitura da dimensão do lugar, por um lado, e a associação à infância - logo a seguir, há um poema, “História de vida”, cujo primeiro verso recorre ao mesmo qualificativo, “quando eu era pequenino”). Outras marcas topográficas povoam esta primeira parte, todas fazendo parte do trajecto geográfico que seguiram os passos do autor, como Moçambique, Lourenço Marques, Ourique ou a terra africana. A estas referências espaciais, estão associadas vivências felizes, despertando alegria e nostalgia, que não é apenas dos sítios, mas também de um tempo, o da infância despreocupada e satisfeita, imaginativa e revivida, como se pode verificar no poema “No meu tempo de cow-boy”: “No meu cavalo de pau / Ia fazendo tau! tau! / Co’a pistola de madeira. / Desta forma, a tauitar, / Via as horas a passar / Sem nunca sentir canseira.” (com a particularidade daquele neologismo inventado para relembrar o poder da voz associado ao gesto de brincar).
A primeira parte conclui-se com o poema “Ocaso”, melódica forma de pôr fim a esse tempo infantil, ainda que passando em revista todos os estádios da vida - o sol vai-se embora com saudades da criança  que “não se cansa de saltar e de correr”, do jovem “a nascer para a poesia”, do par que debica “segredos de amor, do velho que risca com a bengala “como querendo traçar / os passos da sua vida”. Um poema que fecha uma das partes parece congregar um tríptico dos ciclos da vida, assim como se anunciar a continuidade...
A segunda parte, “Insano Amor”, corre sob o signo de Eros e, logo no primeiro poema, não podemos esquecer a imagem de Fernando Pessoa, ainda que sob a capa de Ricardo Reis: “Vem, senta-te junto a mim, / tranquilamente, na margem verde do regato, / e escuta este rumorejar interior...” Reis diria: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso (...) / Amemo-nos tranquilamente.”
Alguns poemas fazem ecoar estruturas da lírica amorosa galego-portuguesa, seja pela semelhança temática do questionamento da ausência - “Onde estás, por que não vens?” -, seja pelo recurso ao refrão, que vai deixando um ressoar de sentido no poeta - “Ai, Deus, onde irás tu!”. Outros textos acompanham Camões na sua forma de sentir o amor como algo impossível de definir - “Há uma incógnita pendente / Um não sei quê mal assente / Entre ti e mim.” - ou como algo que faz assumir uma nova identidade - “Concedessem os deuses a quem ama / transformar-se o amador na coisa amada / Unindo os corações numa só chama” - ou pelas ressonâncias de imagens como a do “cativo” de amor. O erotismo afirma-se também por via da invocação dos mestres (Bocage e Camões, de novo, para aqui chamados), demonstrando que a arte da sedução visa também aquilo que será a mais humana reacção - “Não quero honras, não, só quero engenho / Pra levar-te comigo para a cama. (...) / Dou-te versos, em troca peço beijos, / Só por amor construo os meus poemas.”
Este grupo de poemas consagrados à temática do amor e da paixão faz reviver mitos clássicos que lhe estão associados, como o do rapto de Europa, de Hero e Leandro, de Narciso. Por ele transitam também princípios como o “carpe diem” - “simples mortal que sou, sem vã magia, / contente de ir vivendo o dia a dia” -, como o da escrita enquanto momento de celebração - “Flor que eu celebro, em poesia ou prosa, / Acirrado p’la força do desejo.” Ainda nesta parte, é valorizada a dimensão artística da escrita - “Não me apetece / ler ou escrever / ou sequer conversar”, como se estas três acções fossem as mais importantes que dominavam o poeta -, bem como a dimensão autobiográfica (num texto “feito a pedido de um amigo, que, tendo de se ausentar, lhe confiou a sua amada”, o nome do autor aparece registado) - “Pra ti espero um dia regressar, / Mas deixo-te, entretanto, em meu lugar / O bom Manuel, um grande e fiel amigo.”
O texto que encerra esta parte contém um tom algo disfórico ao intitular-se “Poema de fim de Verão”, dominado por verbos que remetem todas as acções para um passado concluído, fechado, mesmo no que aos deuses respeita: “Afrodite sorriu, Dioniso falou, / Eros feriu, esse insano e cruel deus. / O ciclo fechou-se. Resta dizer adeus...”
O terceiro grupo de poemas, “O canto e a pena”, deixa-se dominar pelo par mitológico de Apolo e Hades, a aproximação à luz e à glória, por um lado, e a certeza do sofrimento e da morte, por outro. O poema que abre este ciclo, “Invocação”, sugere aquela parte da escrita épica em que é pedida ajuda às musas para que a arte não falte. Sendo disso mesmo que se trata, o terceto que o encerra afirma-se pelo pragmatismo e por alguma ironia - “Pudera eu ser Camões no grande engenho, / No engenho sim, mas não no triste fado, / Pois penas que me cheguem já eu tenho.” -, embora no poema seguinte, o poeta reconheça a sua modéstia - “Perdoa, pois, ó divina Poesia, / Que a minha oração seja um mero bocejo”.
Nesta secção, o percurso parece ser muito mais autónomo, mais distante do convencional, seja pela mistura do cantar ao desafio com a poesia de José Afonso e de Sophia, seja pela pressão do academismo, que é violentamente recusado - “Poético. Vulgarmente poético. Pouco me importa, / odeio a poesia. Há alturas em que a odeio. Melhor, não / odeio a poesia, odeio as figuras de estilo, a conotação, a / literariedade, a metáfora, essa peste que se mete em / tudo que se presume literário.” A vida do poeta é atrofiada pela cidade e deixa enredar-se nas imagens clássicas do labirinto, da efabulação, dos temas horacianos (retomando Ricardo Reis).
É o momento da aprendizagem dolorosa das incapacidades que governam as vidas, como a invencibilidade do tempo ou o desgaste da memória - “E dói, dói, dói - caramba, se dói! / esta incapacidade de aprisionar a memória, / que o tempo, esse, nem vale a pena tentar pará-lo.”
À medida que o livro se aproxima do final, também a geografia das origens vai ocupando um cada vez maior espaço, numa posição antípoda das referências do início. Aqui, é a procura de lugares míticos, antigos, repletos de simbologia, começando por um “marco miliário”, medidor de distâncias quilométricas ou temporais, cruzando a ponte romana, bebendo na fonte também romana, olhando Vilarinho das Furnas, contemplando ruínas, cumeando uma mitologia própria que se diviniza no Larouco.
Aqui chegados, o derradeiro poema toma o título do livro, justificando-o - é sobre esse “altar” que a obra é posta, seja ela a obra poética, seja o percurso que se conclui. A poesia mistura-se com a braveza, a dureza e a eternidade da pedra - “Em pedra escrevi teu nome, Poesia, / Na pedra dura em que minha alma habita. / Na pedra o escrevi com pena esguia / Na pedra pura do altar de pena escrita.”
Este poema surge como a celebração final, cerimónia de conclusão, prova de que esta escrita outra coisa não foi senão a prova de uma vida - seja ela uma biografia, seja ela uma viagem de aprendizagem da poesia. Não faltam os elementos simbólicos como o sangue e o fogo, elementos fortes para gravar, exprimir, destruir, renovar; não falta o “sacerdote” perante a ara em que ritualiza e oferece a vida em sacrifício poético. E fica a oração final: “Eu te invoco, Poesia, eu te conjuro / Sobre esta pedra dura derrama teu olhar / Aceita minha vida, meu sangue puro / Que deponho na pena escrita deste altar.”
Uma vida que se conta (ou que se alegoriza), um poema que se conclui, um livro que termina. “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, dizia Sebastião da Gama. Esta poesia certificou a certeza desta vida.

Sem comentários: