quarta-feira, 25 de maio de 2022

Manuel J. Palmeirim e a poesia que Sesimbra tem



Em 1963, iniciava-se a colecção literária “Poesia Sesimbrense”, patrocinada pelo jornal O Sesimbrense, com a publicação de 7 Poemas de Sesimbra, de Manuel J. Palmeirim, colaborador habitual daquele periódico, em cuja nota introdutória a obra é apresentada como homenagem a dois poetas da terra, Gilberto Cerqueira Pinhal (Gil do Mar) e José de Andrade Júnior (Zé Preto), ambos falecidos na casa dos vinte, em 1951 e em 1948, respectivamente, revelando-se ainda que três dos poemas tinham já sido publicados n’ O Sesimbrense, subscritos pelo pseudónimo de Tristão Sesimbra.

Abre o livro uma citação de Os Pescadores, de Raul Brandão, excerto do registo dedicado a Sesimbra, de 1923, forma de homenagear quem talvez mais emotiva e realisticamente escreveu sobre os pescadores na literatura portuguesa, quadro que se cruza com o poema “Pesca”, canto da emoção e da alegria do pescador.

“Sesimbra” é o primeiro poema, louvando o sítio, congregando a pesca, os chamadores, a lota, o poente, o risco das tempestades, o lamento da dor, o baloiçar perigoso das ondas. O sofrimento e a dureza são contrariados no final por força do retrato lírico - “Tu ficas mais alta / cada novo dia: / se escondes a dor, / descobres poesia.” Em jeito de refrão, que compromete o poeta, todas as estâncias se concluem com os versos “Sesimbra é assim, / comigo e sem mim”, ainda que intercalados por um outro verso, retomado do início da estrofe. A paisagem surge também em “Castelo Velhinho”, glorificação da história da fortaleza, numa viagem pelo tempo, ora personificando a pedra como testemunha dos feitos, ora fantasiando visões de momentos do passado, com um refrão que tonifica o tempo (“Corre, corre o tempo, sem parar. / Traz contos e lendas para nos contar.”) e um final algo crítico e disfórico - “Mudaram-se os tempos. As guerras de agora / São inda piores, mais maquiavélicas. / Heróis não existem. Deitaram-nos fora / Os inventos novos, novas armas bélicas.”

O espaço é valorizado em “Na estrada marginal”, recanto de “imensa ternura” numa “noite cálida”. Local de descobertas e contemplações, de afectos e seduções, ali, “pares de namorados arrulham”, a noite torna-se cúmplice na sua “escuridão lasciva”, o marulhar das águas é “um ruído de beijos” e o poeta sente-se “em fogo”, descontrolado por intensa vivência. Também de espaço se trata em “Bairro dos pescadores”, povoado por “cubos alinhados / no alto do morro”, casario de onde brota o cansaço, a saudade, a dureza da vida, o desespero, tons que desaguam em desgosto e indignação - “O mar não dá peixe, / a casa é sem pão, / o ralho é comida. / Ai, quem não te deixe / outra profissão!... / Que raio de vida!”

A memória do amigo Gil do Mar, falecido “da mesma morte de Cesário Verde e de António Nobre”, corre no soneto “Desalento”, momento de rejeição até ao desfalecimento e à recusa - “Prendem os pés infindos lamaçais. / E é tudo um chavascal imenso e escuro / Neste mundo ruim, selvagem, duro!” Contrariando este pesar, o livro finaliza com “A lenda do Senhor Jesus das Chagas”, evocação do aparecimento do salvador no meio de procela, num “quatro de Maio igual a tantos mais”, data associada ao sofrimento e à dor e à “titânica luta” quotidiana levada a cabo pelos pescadores. Imagem de serenidade, “assim veio a Sesimbra o bom Senhor das Chagas, / que ainda hoje acalma, ao pescador, as vagas”.

Pelos versos de Palmeirim passam a glória e o desespero, a história e a humana fragilidade, num tom lírico a que não são alheias temáticas tradicionais na literatura portuguesa.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 855, 2022-05-25, p. 9.


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