"Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa". Quem assim escreve é Raul Brandão em Os Pescadores (1923), livro de descrições e narrativas, de reportagens e de memórias, "apontamentos rápidos" num cenário apelativo - "esta paisagem - mar, rio e céu - entranhou-se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento", confessa, redesenhando o universo numa quase trindade.
As recordações infantis não andam arredias quando do mar e dos homens se fala, pois conhecer as pessoas ligadas ao mar, suas forças e fraquezas, não lhe é tarefa difícil - "sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente". A vetusta idade da casa deixa transparecer a figura do avô, personagem a quem dedica o livro e de quem Brandão relata uma morte eufemística: "Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo".
Toda a escrita em Os Pescadores é uma desnudação do mar, dos mais diversos ângulos, incluindo o humano. Importante quanto aos pescadores é a referência ao nome de muitos deles, sinal da proximidade estabelecida, para além de citar muitos nomes de barcos, o instrumento de trabalho que os simboliza. É com carinho que os homens do mar são tratados, por vezes revelando-lhes uma certa inocência, a denotar uma relativa fragilidade. Com eles, estão sempre as mulheres, repletas de predicados abonatórios, destacando-se o trabalho e o papel que desempenham, mas também a tragédia que lhes está cometida ao terem de aguentar em terra todos os desgostos de que o mar é responsável. Ao mesmo tempo que o mar é a fonte da inspiração máxima para escrever a paisagem, é também a ameaça permanente, a morte liquefeita.
Em defesa destes homens e mulheres, é criticado um certo selvagismo existente no universo da pesca: pelo Estado, ao abandonar as populações à sua sorte; pelos proprietários que vegetam na capital, alheios ao sofrimento; pelo lucro fácil dos industriais, ao desprestigiarem a pesca artesanal, gerando desequilíbrio na Natureza - "cultivar o mar é uma coisa - é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é ofício de industriais".
As alusões à pintura e à tela são vastas. "O que eu queria dar só o podem fazer os pintores", escreve. As duas cores mais utilizadas são a azul e a verde, a primeira em quantidade maior, ambas para a qualificação do mar e da terra, vestidas de imensas tonalidades. Mas muitas outras cores surgem no espectro brandoniano, numa paleta inesgotável nas combinações. "Tenho a alma a escorrer tintas estranhas", regista. A aproximação a Setúbal é um exemplo: “onde o mar atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baíazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz.”
Datado de 1923, Os Pescadores mereceu quatro edições durante o primeiro ano. Razões favoráveis são a fácil leitura, a galeria de tipos e de vistas, a proximidade humanista à epopeia destes homens e mulheres e a sensibilidade pictórica na transposição para a literatura.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 581, 2021-03-17, p. 10
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