quinta-feira, 12 de junho de 2025

Conceição Rendeiro: Sobre o rio das palavras



Impossível olhar para este título, Flúmen, e não associar de imediato o poema de Camões conhecido pelo seu primeiro verso, “Sôbolos rios que vão”, cenário e imagem escolhidos pelo poeta para falar do rio que de seus “olhos foi manado” porque, entre outras coisas, “ali, lembranças contentes / na alma se representaram”. E conseguimos, com um pouco de imaginação, acompanhar a narrativa de Jorge de Sena escrita em 1964, “Super flumina Babylonis”, que nos apresenta essa suposta noite em que Camões poderia ter escrito esse poema, numa luta pela memória e pelo reaver do passado, com todas as suas marcas de alegria e de tristeza, fazendo correr as palavras no flúmen, porque “bem são rios estas águas / com que banho este papel”. Flúmen, de Conceição Rendeiro (ed. Autora, 2025), conhecida médica pediatra em Setúbal, é, pois, um rio, o caudal dos sentimentos que a poesia permite expressar, o espelho que o poeta ajuda a construir e em que se revê.

Os poetas trazidos para epígrafe deste livro ajudam nesta interpretação, haja em vista o poema “Impressão digital”, de António Gedeão, afirmação do olhar individual sobre o mundo e o que o forma, ou um outro, “Inicial”, de Sophia de Mello Breyner, em que o mar, local maior de todas as águas, retribui o tempo inicial depois que agitou, entre ondas e torvelinhos, aquilo que se foi.

Surge este livro organizado em oito partes, indiciando um percurso, a avaliar logo pelo título da primeira, “Prenúncio”, que reúne dois poemas associados a circunstâncias históricas e pessoais, datados de 1969, ano de epopeia estudantil, poemas da busca da paz e da afirmação pela palavra, causa maior da geração, e outro, não datado, mas mais recente, de confessada adesão à leitura de Saramago, num revelar que tal simpatia advém da clareza e da coerência das palavras, apelativas que são para a construção alicerçada da solidariedade.

Nos grupos “Breves” e “Ritmos”, os poemas são dominados pela força dos instantes (resultantes de um “sentir de comoção / que por momentos / nos sacode o peito / e os olhos ilumina”), valorizando o prazer de imaginar um abraço ou de sentir o deslumbramento provocado por um trecho musical, indicando propósito de vida e chamando a atenção para o jogo entre a brevidade que a vida é e a exigência imposta a esta “condição de passagem”, qual seja a do cuidado a haver com o legado, algo entre os valores recebidos e transmitidos. Por vezes, ressalta a poesia que emerge do quotidiano, provenha ela de situações presenciadas (como o cruzar com o homem das castanhas ou o passar pela rua adornada de jacarandás) ou de momentos em que se é absorvido pelo silêncio e pela paragem, contrariando o “viver / em constante sobressalto” como opção.

Em Flúmen, não estamos perante o desabafo de quem se encerra na sua teia, pois também por aqui passa a expressão de preocupações colectivas, como vemos no grupo “Sobressaltos”, em que vive mais um conjunto de textos que toma para tema situações como o confinamento, a guerra, as migrações, os desastres, mazelas de que o poema se apropria para reconhecer a perturbação causada pelo atraso da “alegria / o sentimento / da vida / habitual”. Acrescente-se ainda a este núcleo da vivência do colectivo o poema que fecha o livro, “Cubo mágico”, pelo tom crítico, em que o brinquedo serve para retratar o “mundo desconcentrado” (a que Camões poderia chamar desconcertado...). Também o segmento “Arte de cuidar” agrupa poemas que oscilam entre o olhar crítico e a mensagem a passar, por vezes motivados por situações da contemporaneidade, como as questões de género e as diferenças, ou por referências resultantes do percurso autobiográfico da autora, como surge patente nos olhares sobre as crianças ou, particularmente, no que se intitula “Mensagem de pediatra”, uma quase cartilha orientada pelo terceto inicial que anuncia: “Crescer é aprender / ganhar autonomia / fazer-se gente”.

Os dois últimos conjuntos de poemas, “Vida” e “In memoriam”, são aqueles em que perpassa mais a expressão lírica do eu, ainda que por razões diferentes. No primeiro, essa expressão assenta na admiração pelo outro, na partilha (de que é exemplo o texto “O meu 25 de Abril para ti”, forma emotiva de permitir a comunhão das vivências e a preservação da memória), na glorificação do amor e de tempos de êxtase, de emoção, visando a celebração dos mesmos. Já nos poemas reunidos sob o título “In memoriam”, assiste o leitor à valorização da lembrança que recompõe os últimos tempos da presença do outro, marcados pela dor da perda, anunciada e concretizada — o poema “Na hora do adeus”, à semelhança do que acontecia nas cantigas de amigo medievais, usa a estratégia do desabafo com a Natureza, “brisas trazei / afagos do meu amor”, apelo que acentua a dor, pois nas cantigas de amigo a jovem apaixonada queria saber notícias do amado temporariamente distante e, neste caso, a distância é definitiva.

Flúmen surge, pois, como o caudal que permite que as “lembranças contentes” na alma se representem, que lembra que “o tempo vale / pela qualidade testemunho / intensidade das nossas vivências / empenho e dedicação aos outros / exultação de alegria e prazer / dor pessoal e do próximo / cumplicidade de momentos únicos”. Os poemas são, por isso, uma forma de povoar a memória e também de valorizar o tempo, de usar a palavra para assinalar a intensidade da vida. 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1548, 2025-06-11, pg. 10.

 

domingo, 8 de junho de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (2)

 


As observações de Sebastião da Gama sobre o livro Dádiva, de Luís Amaro, saído em 1949, tinham em consideração a amizade que, desde há quatro anos, os vinha aproximando: ambos se conheceram em 1945 na Portugália Editora, num terceiro andar da Avenida da Liberdade, e chegaram a ter quarto alugado na mesma residência, na capital, ainda que em tempos diferentes — na Rua das Taipas, em casa que pertenceu à fadista Adelina Fernandes, onde Sebastião teve quarto enquanto estudou em Lisboa, que, depois, passou para Luís Amaro. Pelo catálogo Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros passam várias menções à relação entre o homenageado e o poeta da Arrábida: a propósito da relação editorial entre os dois (a partir do momento em que se conheceram, ano em que foi publicado Serra-Mãe, com a chancela da Portugália, mas com os custos da edição suportados pelos pais de Sebastião da Gama), do incentivo do poeta-professor junto do amigo para a publicação de Dádiva e de um encontro de trabalho de Amaro com Joana Luísa da Gama (1923-2014), em Massamá (em 1999), a propósito da obra inédita do poeta, que estava em preparação (momento de que é reproduzida fotografia).

Se 1949 foi o ano de publicação da obra poética de Luís Amaro que os amigos tanto desejavam ver, também foi o ano de reabilitação na saúde deste aljustrelense, que passou por grave crise relacionada com tuberculose pulmonar.

O catálogo, fortemente ilustrado, vai dando os traços biográficos essenciais do homenageado, assinalando a década de 1950 como a do aparecimento da revista Árvore, subintitulada “Folhas de Poesia”, resultado de iniciativa de Luís Amaro, António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e José Terra, um projecto que teve apenas quatro números (1951 a 1953) e fim ditado pela censura do Estado Novo. A finalizar essa década (1959), é mencionado o casamento de Amaro com Amélia Magalhães, colega de trabalho, relação que durou até ao falecimento dela, em 2013.

O trabalho de Luís Amaro como tradutor e revisor manteve-se na Portugália até Março de 1970, altura em que passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian (até 1989), na revista Colóquio - Letras, projecto que, sob as direcções de Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Morais Varela, sempre teve o cunho esmerado do bibliógrafo, tal como foi reconhecido, no número de Março de 1989, sob a pena de Morais Varela, ao assinalar-lhe a sua “excepcional capacidade de trabalho” e retratando-o como “tão minucioso e apaixonado nas tarefas mais humildes como na investigação mais especializada”.

O tempo da aposentação ocupou-o Luís Amaro nas tarefas de que sempre gostou — a pesquisa contínua, a organização de bibliografias, a disponibilidade para ajudar investigadores com eles partilhando o seu saber (tendo continuado como consultor editorial da Colóquio - Letras), a correspondência intensa com amigos. Tão grande abertura e atenção aos outros levou a que, em vários momentos, tenha havido reconhecimento público do valor e do serviço prestado por Luís Amaro à cultura portuguesa — se houve espaço para algumas acções de cariz social e cultural, houve também oportunidade para esse reconhecimento ser feito através daquilo que sempre orientou o trabalho deste investigador, o livro: em 2005, o poeta aljustrelense via ser publicada a obra Para Lá da Névoa - Homenagem a Luís Amaro (Caixotim Edições), conjunto de dezassete depoimentos, entre os quais se contam os de Eugénio Lisboa, Fernando J. B. Martinho e Fernando Venâncio, para só mencionar nomes recentemente desaparecidos, e, três anos depois, a Câmara Municipal de Aljustrel atribuía o nome de Luís Amaro à Biblioteca Municipal, decisão honrosa para quem dedicou a vida ao livro e aos autores. Um livro constituiria ainda um outro momento de homenagem, mas póstuma, quando, em 2020, saiu Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), duas dúzias de testemunhos, organizado por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel.

Por este catálogo passam ainda citações de homenagem de catorze autores, todas constituindo prova do importantíssimo contributo que este bibliógrafo aljustrelense deu à cultura portuguesa, de que destaco duas: se Fernando Venâncio reconheceu que Amaro “fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros” (ele, um homem que apenas passou por uma Universidade, a Portugália, como mencionou numa carta que me endereçou), Sofia Santos considerou “uma tarefa tantálica elencar todas as contribuições que Luís Amaro dedicou à literatura portuguesa e aos seus autores”.

Indiscutivelmente, a sua “dádiva”, resumindo a sua obra, encontra eco em dois títulos: no que foi dado à exposição e a este catálogo, organizados pela Associação Do Fundo à Superfície, e no que foi atribuído à tertúlia realizada em Aljustrel em 13 de Junho de 2024: “Luís Amaro: um homem que era a memória viva da literatura portuguesa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1544, 2025-06-04, pg. 10.


sábado, 31 de maio de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (1)

 


“Meu Alentejano bisonho (Isto é por fora: por fora é que é o Alentejano bisonho, o bicho do mato; por dentro é um homem cheio de humanidade, de compreensão, de ternura. Por isso é que começou a nossa amizade, que já tem escrito algumas páginas bonitas).” Assim começa, em 20 de Julho de 1946, uma carta saída da Arrábida, assinada por Sebastião da Gama (1924-1952), dirigida a Luís Amaro (1923-2018), uma das mais antigas na densa relação epistolográfica entre o poeta azeitonense e o seu amigo de Aljustrel, à data a trabalhar em Lisboa, na casa Portugália Editora. A apresentação que é feita de Luís Amaro no início desta carta vai ao encontro do que Ernesto Rodrigues testemunhou e é reproduzido no catálogo resultante da exposição que celebrou o centenário do poeta e bibliógrafo alentejano: “Nome fundamental, no ‘silêncio perfeito’ que o poeta deseja, generoso, elegante”. 

A mostra, intitulada Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros, acontecida entre Junho e Setembro de 2024 na biblioteca que o tem como patrono na sua terra-natal, teve continuidade em Maio através da publicação do respectivo catálogo, edição a cargo da Associação Do Fundo à Superfície (Associação de Defesa do Património Mineiro Cultural e Ambiental do Concelho de Aljustrel). O texto de abertura desta obra deve-se a Guilherme d’Oliveira Martins, que assim o apresenta: “Luís Amaro representa a memória viva da cultura e das letras portuguesas. (...) Foi poeta, bibliófilo, estudioso e investigador, tornando-se raro mestre em matéria bibliográfica, a quem qualquer editor competente podia recorrer com segurança quando houvesse dúvidas ou hesitações. (...) Sempre discreto, os maiores especialistas reconheceram-lhe essa excepcional qualidade, só possível a um grande conhecedor e a um trabalhador incansável.”

Oriundo de uma família humilde, Luís Amaro cedo começa o seu itinerário na causa dos livros — acabada a instrução primária, são um ajudante-farmacêutico, a biblioteca da Associação dos Operários Mineiros e Adeodato Barreto (advogado e poeta, em cujo cartório Luís Amaro começa a trabalhar aos 12 anos) os responsáveis pelo culto pelas letras e por um trajecto que sempre o aproximará dos livros e da leitura, passando por um estágio no “Diário do Alentejo” quando tinha 13 anos, por um emprego na Biblioteca Municipal de Beja, por colaboração jornalística em diversos periódicos (Ala EsquerdaO ArraiolenseBrados do AlentejoRevista Transtagana, entre outros), até chegar a um emprego em Lisboa, na Livraria Portugália (onde foi caixeiro-livreiro). Daí, transitaria para a Portugália Editora como revisor de provas, sob cujo olhar criterioso passaram as obras de alguns dos mais conceituados escritores portugueses do século XX — Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Jaime Cortesão, José Saramago, José Régio (uma leitura do volume da correspondência trocada entre Régio e Amaro, editado em 2024 pela editora Colibri, trabalho devido a Ernesto Rodrigues, demonstra bem o cuidado e a qualidade de revisor-editor que Luís Amaro praticou), Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Soeiro Pereira Gomes, entre muitos mais.

Com o cuidar da obra dos outros e com o espírito reservado que o caracterizava, só em 1949 publicou a sua obra, depois de muitos incentivos de amigos, entre os quais Sebastião da Gama. Dádiva foi o título atribuído, escolha que Sebastião da Gama assim comentou no seu Diário (registo de 18 de Fevereiro de 1949): “Ao escrever isto — ‘ser professor é dar-se’ —, lembro-me do Amaro. Pobre querido Amigo, tão nobre, tão modesto, tão púdico da sua intimidade. Um António Nobre que chegou tarde, uma flor que o vento magoou... Há três anos que lhe peço o livro: ele, tímido, recusa sempre mostrá-lo ao Mundo. (...) Pois há uma semana encontrei o Amaro. Acompanhei-o. Junto de um portal, com medo de que alguém que passasse o ouvisse, segredou-me: ‘Vou publicar.’ “Diário Íntimo?’ ‘Não. DÁDIVA.’ Senti cá dentro uma lágrima que era a compreensão exacta e comovida daquele nome. Dádiva. Dádiva. Dádiva.” Luís Amaro conheceu esta opinião do amigo uns meses depois, quando, em 2 de Outubro, recebeu de Sebastião da Gama longa carta (uma das mais longas no seu epistolário para o amigo), apreciando o livro e transcrevendo este excerto do seu diário. Diário Íntimo - Dádiva e Outros Poemas viria a ser o novo título da obra, ampliada, em 1975 e em 2011, enquanto em 2006 se intitularia Diário Íntimo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1539, 2025-05-28, pg. 6.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

José-António Chocolate: o que baila num poema

 

 

Deverá o poeta tentar explicar o que perpassa pelos seus versos? Caber-lhe-á mostrar as lágrimas que podem correr de desalento ou de paixão no interior do poema? Serão necessárias mais palavras para explicar a palavra? Estas questões serão mera retórica, mas vão ao encontro do que José-António Chocolate se propôs na obra À Descoberta de um Verso (Colibri, 2025), um objecto com finalidade didáctico-pedagógica, deixando perpassar a poesia e debruçando-se sobre ela, trazendo momentos de transfiguração surgidos a partir das telas, que assumem novas interpretações.

Neste livro, poesia, crónica (por vezes, analítica) e ilustração entrelaçam-se, na proporção de um poema para um desenho e para um texto em prosa, funcionando este como descodificador de símbolos, a orientar o caminho, eivado de memórias, de reflexões, de chamadas de atenção, afinal, no cumprimento de uma intenção: sensibilizar para a poesia, “procurar conquistar o leitor para o gosto e uma leitura de poesia, através da desmistificação da palavra e dos versos, tantas vezes associados a alguém fora da realidade e pairando num ambiente lunático”, por um lado, e abrir a fonte do “entendimento da palavra poética”, por outro.

Fala-se, pois, de sensibilização para. E correrá o leitor os caminhos da produção poética, das motivações, do dizer, onde são sinais a força da palavra, a chamada do silêncio, o colorido das memórias, o efeito trazido pelo deleite e pela voluptuosidade de momentos ou de visões. Vê o leitor que todas as vidas se transformam em palavras — o lu(g)ar, simultaneamente conforto, protecção e tempo; a aldeia e as vivências da infância; a labuta e as dificuldades da vida; a paisagem entre a planície e o mar alentejanos; a brutalidade da realidade; o sorriso e a indignação; a sensualidade de momentos; as operações que se fazem com o tempo, às vezes longo, às vezes não mais do que instantâneo; o equilíbrio entre o eu que se expõe e o espelho que o olha; o pacto de quem se diz com a avaliação do caminho feito; a faceta sensorial que nos liga ao mundo; a casa que se constrói em torno do que se é; os sentimentos, por vezes contraditórios, ora libertadores, ora opressivos; a predestinação que quase nos impomos...

Pelos intervalos, passam as palavras de outros, como as perguntas do eterno questionador Pessoa ou o deslumbramento do caminho trazido pelo sevilhano Antonio Machado, passam os retratos dos mais antigos aconchegos, passam os reflexos deixados pelas experiências. Passa também a interpelação, exigindo a conivência do leitor, num trabalho que tem a preocupação de levar a pensar a poesia (ou de a construir), abrindo caminhos a leitores, independentemente da sua maturidade leitora, conjugando o poema (valorizado pela palavra essencial) com a prosa, que lhe giza um possível mapa e ajuda a entendê-lo, e com a arte do traço, outra forma de perscrutar o sentir do mundo, espelhado por autores como Carlos Pereira da Silva, Eduardo Carqueijeiro, Fátima Falcão, Paula Falcão de Lima e Nuno David.

Duas linhas de força correm em paralelo: a ideia de que o poeta não é um “lunático”, antes uma entidade que se expõe pela palavra, reinventando-a e constituindo-a como força metafórica; o princípio de que a poesia leva o seu criador e o seu leitor à descoberta, verdadeiro acto de fé que contempla a epopeia da simplicidade do quotidiano nesse trajecto da procura de quem somos. É este percurso da procura de sentido que José-António Chocolate nos proporciona, ora num acto de revisitação da sua própria poesia, ora com poemas novos, sempre tentando descobrir os seus versos ou dando-os a descobrir, contando histórias, contextualizando, apontando linhas de sentido ou de leitura, num trabalho que tem também a sua dose de didactismo e de desocultação do acto de poetar. É que a poesia é algo que adorna o mundo, assim a saibamos sentir — isso ensinou-nos Miguel Torga num livro de 1950 (que nem sequer é de poesia), quando construiu uma bela metáfora sobre o texto poético: “Poema é toda a página aberta diante de mim, caligrafada de esperança e de calma. Poema é o facho de claridade que incide sobre as coisas e os seres, acariciando com a mesma ternura inefável o bom e o mau, o perecível e o imperecível.” (em Portugal, 1950). O que é preciso então é partir... à descoberta de um verso e das suas cores!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1534, 2025-05-21, pg. 10.


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (3)

 


Um dos textos intensos, em termos de percurso histórico-cultural e de defesa dos poetas, presente em Viva la Poesia!, do Papa Francisco, é a carta apostólica de Março de 2021, surgida a propósito do sétimo centenário da morte de Dante Alighieri, exercício que passa pelas leituras pontifícias que o poeta italiano possibilitou no século XX (através de Bento XV, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) e pela adesão de Francisco ao autor de Divina Comédia, obra que se afirma como “um grande itinerário, assim como uma verdadeira peregrinação, seja pessoal e interior, seja comunitária, eclesial, social e histórica”. Entendendo Dante como “paradigma da condição humana”, Francisco atribui-lhe a missão de ser “poeta da esperança” pelo caminho que fez entre uma visão do inferno, “a condição humana mais degradante”, e a visão de Deus, como possibilidade de “uma nova humanidade que aspira à paz e à felicidade”, irmanando-o com Francisco de Assis.

A construção deste caminho, com invocações históricas, recheado de símbolos e de imagens intensas, apresenta Dante como referência de um tema que é caro a Francisco: “paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé”. Quase no final do texto, Francisco considera que, em Dante, “podemos quase vislumbrar um precursor da nossa cultura multimedia, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem”, razão adicional para que a obra do poeta florentino seja apresentada aos jovens como mensagem forte e importante.

Esta preocupação de apresentar a literatura, particularmente a poesia, como determinante para a formação dos agentes pastorais constitui tema da carta em que Francisco abordou esse papel, datada de Julho de 2024, logo de início defendendo “o valor da leitura de romances e de poesia no caminho do crescimento pessoal”. Seguindo uma perspectiva didáctica da leitura, porque “uma obra literária é um texto vivo e sempre fecundo”, Francisco elogia a capacidade criativa que a leitura traz, em vantagem sobre outros meios — “Diferentemente dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo e a margem e o tempo para enriquecer uma narrativa ou interpretá-la costumam ser menores, na leitura de um livro o leitor é muito mais ativo. De alguma forma, ele reescreve a obra, amplifica-a com sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de drama e simbolismo.” Para reforçar a importância da literatura na formação, Francisco valoriza a forma como o quotidiano a influencia e recorre ao jesuíta Karl Rahner (1904-1984) quando disse que ela parte dos “acontecimentos reais como a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as coisas pobres que preenchem a vida.” E conclui o Papa: “O olhar da literatura treina o leitor na descentralização, no sentido dos limites, na renúncia ao domínio cognitivo e crítico sobre a experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de riqueza extraordinária. Ao reconhecer a inutilidade e talvez até a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou certo/errado, o leitor acolhe o dever de julgamento não como instrumento de dominação, mas como impulso à escuta incessante.”

O elogio (e desafio) aos poetas consta numa carta que lhes é dirigida, publicada em 2024, numa antologia de poesia religiosa. Apresentando-os como aqueles que são “olhos que olham, mas também sonham”, elege-os como excelentes mensageiros, pois “o artista é o homem que vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e de compreender as coisas que estão diante dos nossos olhos”, apresentando “tanto as belas quanto as trágicas realidades da vida”. Chamando-os à sua função para a Humanidade, Francisco enaltece o trabalho dos poetas — “dar vida, dar corpo, dar palavras a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza” —, ao mesmo tempo que lhes atribui a responsabilidade de poderem “ajudar a entender melhor Deus como o grande ‘poeta’ da humanidade.” Em jeito de exortação, este texto conclui com o incentivo aos poetas: “Segui em frente, sem cansar, com criatividade e coragem!”

Este texto acaba por justificar todas as mensagens sobre poesia que Francisco nos lega neste Viva la Poesia!, dirigindo-se aos leitores, aos formadores, aos que escrevem, aos responsáveis pelo mundo, assumindo a poesia como uma manifestação de aprendizagem do humano, absolutamente necessária, porque “uma pessoa que perdeu a capacidade de sonhar não tem poesia, e a vida sem poesia não funciona.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-14, pg. 14.


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (2)

 


A apresentação pública de Viva la Poesia!, reunindo uma dúzia de textos do Papa Francisco (entre encíclicas, prefácios e entrevistas) sobre a necessidade dessa arte que a poesia é, ocorreu no mês de Março, quando ele estava internado no hospital Gemmeli, em Roma. Ao longo das várias intervenções recolhidas, o leitor fica perante formulações que valem um programa pedagógico de âmbito universal.

No primeiro texto papal, entrevista dada a Antonio Spadaro (o responsável por esta obra) publicada em 2013, Francisco recorda um episódio do seu tempo de professor, quando tinha de leccionar El Cid aos seus alunos — perante o descontentamento dos jovens quanto à matéria, desafiou-os a lerem a obra em casa para, nas aulas, serem tratados autores como García Lorca ou outros, contemporâneos, mais estimulantes. “Para mim, foi uma grande experiência”, admite Francisco, pois “concluí o programa, mas de forma não estruturada, organizado não conforme o que era esperado, mas sim segundo uma ordem que surgiu naturalmente na leitura dos autores.” E pergunta Spadaro: “Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa, é importante a criatividade?” A resposta, embrulhada em riso: “Para um jesuíta é extremamente importante! Um jesuíta deve ser criativo!” Uma criatividade que levou o então professor Jorge Bergoglio a apresentar contos escritos pelos seus alunos a Jorge Luis Borges, que prefaciou uma recolha dessas narrativas...

Este texto poder-se-á ligar ao último, que reproduz uma entrevista de Spadaro a Jorge Milia, aluno de Bergoglio em Santa Fé, na escola jesuíta da Imaculada Conceição, no início da década de 1960, e autor de um dos contos incluídos na referida antologia, lembrando as aulas do professor e o contributo legado para o conhecimento da literatura, para a escrita criativa e para a divulgação do teatro entre os alunos — “Com Bergoglio, o teatro levou os alunos a considerarem as obras como um trabalho de equipa e a aprenderem a descobrir a verdadeira mensagem dos autores.”

A atenção à leitura da poesia é a preocupação que ressalta neste livro, associada à forma de estar no mundo e de agir humanamente. Quando Luca Milanese (n. 1992) publicou em 2020 o livro Rime a sorpresa, o prefaciador foi Francisco, numa tarefa que lhe agradou (como revela nesse texto) e que acabou por ser um pequeno manifesto em favor do acto poético: “Não haveria poesia se não houvesse alguém disposto a ouvi-la. Se o nosso tempo é pobre em poesia, não é porque não exista a beleza, mas porque temos dificuldade em ouvir”, pois “a poesia é um exercício livre de escuta, um caminho com duas direções: para quem a escreve e para quem a ouve.”

Desse mesmo ano é a carta papal Querida Amazónia, obra em que as referências a poetas avultam, como são os casos da equatoriana Yana Lucila Lema, do colombiano Juan Carlos Galeano, do peruano Javier Yglesias, do chileno Pablo Neruda, do boliviano Jorge Vega Márquez ou dos brasileiros Vinícius de Moraes e Pedro Casaldáliga. As preocupações com o mundo, expõe-nas Francisco com um permanente recurso à poesia, como também ficou evidente na mensagem para o IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares (em Outubro de 2021), designando-os como “samaritanos colectivos” e desafiando os interlocutores a serem “poetas sociais”, uma vez que têm “a capacidade e a coragem de criar esperança onde só há desperdício e exclusão”, por isso se lhes aplicando a designação — é que “poesia é criatividade, e vós criais esperança.”

A preocupação com a Inteligência Artificial e com uma educação marcada pela humanidade encontram também eco em Francisco e na sua defesa dos sentimentos e da poesia da vida, como o deixou patente no discurso à academia da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Novembro de 2024: “Nenhum algoritmo pode substituir a poesia, a ironia e o amor, e os alunos precisam de descobrir o poder da imaginação, ver a inspiração germinar, entrar em contacto com suas emoções e ser capazes de expressar seus sentimentos.” A propósito da expressão das emoções e da ironia, valerá a pena lembrar que, meses antes, em Junho, ocorreu o encontro de Francisco com uma centena de humoristas de todo o mundo (em que estiveram os portugueses Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e Maria Rueff), tendo valorizado esta arte de uma forma surpreendente, quase descobrindo a poesia do riso: “quando vocês fazem alguém sorrir, Deus também sorri.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-07, pg. 10.

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (1)

 


“Caro irmão, viva a poesia! Fico feliz que tenha reunido os textos que escrevi ao longo dos anos sobre a importância da poesia. Gostaria que a poesia ocupasse um papel importante nas nossas universidades! Precisamos de recuperar o gosto pela literatura nas nossas vidas, mas também na nossa educação, caso contrário seremos como um fruto seco. A poesia ajuda-nos a sermos humanos, e hoje precisamos muito dela.” A mensagem, datada da Casa de Santa Marta em 20 de Janeiro de 2025, tem a assinatura do Papa Francisco (Jorge Mario Begoglio, 1936-2025) e é dirigida ao jesuíta Antonio Spadaro (n. 1966), que a reproduziu na abertura do livro Viva la Poesia! (Milano: Edizioni Ares), recolha de textos do Papa argentino produzidos entre Agosto de 2013 e Novembro de 2024.

No capítulo introdutório, assinado pelo organizador da antologia, a atenção do leitor vai sendo encaminhada para algumas das traves-mestras que suportam o pensamento de Francisco, texto significativamente intitulado “A vida sem poesia não funciona”.

Spadaro apresenta-nos o percurso de leitor e de pensador do Papa a partir de um princípio que estabelece ligação com a poesia — “Bergoglio sabe que a falta de imaginação é um sério problema para a fé.” Esta afirmação surge como eco de uma quase confissão deixada pelo Papa num discurso para a revista La Civiltà Cattolica, em Fevereiro de 2017, quando afirmou que continuava a ler poesia sempre que lhe era possível, pois “a poesia é cheia de metáforas” e compreendê-las “torna o pensamento ágil, intuitivo, flexível e preciso”, ideia que completava com uma chave que alimentou muitas das suas intervenções e que marcou muitos dos que o admiram: “Quem tem imaginação não se torna rígido, tem sentido de humor, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior.”

Fica patente o papel atribuído à manifestação artística, aqui representado pela poesia: o de ser indispensável para a peregrinação humana que decorre numa vida, aspecto demasiado importante, porquanto, diz Spadaro, “a leitura de romances e de poesia não é um simples passatempo, mas um meio para explorar as profundezas da alma humana e para cada um se compreender melhor a si próprio e aos outros”.

A fechar esta apresentação, o organizador refere uma constante nas intervenções de Francisco — “larga referência à poesia e à literatura nos seus discursos e nos documentos que legou, ora citando um verso, ora um autor ou o título de uma obra”. Para o confirmar, todos nos lembramos dos seus discursos na Jornada Mundial da Juventude de 2023, como no de 2 de Agosto, no encontro no Centro Cultural de Belém, perante o corpo diplomático, em que citou Camões, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e José Saramago, ou, ainda no mesmo dia, no encontro com o clero e agentes da pastoral, nos Jerónimos, invocando o padre António Vieira e Fernando Pessoa, ou, no dia seguinte, quando se encontrou com jovens universitários e convocou para a sua mensagem os nomes de Pessoa, Sophia e Almada Negreiros...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1520, 2025-04-30, pg. 20.

 

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Cores e Palavras de Abril desde Grândola



O título da colectânea, publicada em 2024, advém de um poema de Sophia de Mello Breyner motivado pelo 25 de Abril, publicado na sua obra O Nome das Coisas (1977): “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Intitula-se O Dia Inicial (numa caixa dominada por fundo verde e letras vermelhas, com os nomes dos autores em prateado) e é uma colecção de 25 postais sobre o cinquentenário do 25 de Abril, cada um deles tendo, numa face, uma ilustração e, na outra, um texto, reunião de meia centena de autores (tantos os escritores quantos os artistas do desenho), num trabalho produzido pela Câmara Municipal de Grândola.

Se a imagem do cravo surge em 21 das ilustrações, já a força da cor vermelha perpassa por todas elas, ora mais viva, ora menos acentuada. Algumas das propostas artísticas misturam o desenho com o “slogan” (exemplo da ilustração de Joana Mosi, cruzada com excerto de canção de Sérgio Godinho), outras reforçam a urgência de assinalar a data (em várias, aparece o slogan imperativo “25 de Abril Sempre”, como são as ilustrações de Bernardo P. Carvalho, Tamara Alves, Nuno Saraiva e Mafalda Milhões), outras ainda dão azo a uma valorização de alguns momentos do 25 de Abril (como é o caso de João Vaz de Carvalho, que nos deixa ver uma multidão de cravos a ser emitida a partir de uma telefonia, ou o de Bernardo P. Carvalho, cuja mistura de rostos, de profissões, de gestos e de olhares sugere a união em torno da data e da sua simbologia), havendo ainda espaço para o humor (como na proposta apresentada por Nuno Saraiva, que parodia “slogans” em reconstruções como “A terra a quem a compra!” ou “Viva a reforma agro-turística!”, levando o mesmo tom parodístico para o desenho, substituindo a foice pelo símbolo da moeda euro) ou para a sugestão de narrativas relacionadas com o 25 de Abril (como se nota na figura salazarenta que foge de um alvejamento de cravos, concebida por Cristina Sampaio).

Relativamente aos textos, a maioria dos autores optou pela prosa, tendo o poema sido a modalidade preferida por Almeida Faria, José Agostinho Baptista, Helga Moreira, Yvette K. Centeno e Hélia Correia. Seguindo o índice, é Afonso Cruz quem abre a escrita, com uma mensagem que joga com algumas frases de “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, assumindo um cunho pedagógico sobre o sentimento da democracia e sobre a necessidade de pensar. Reflexão sobre a maneira como foi vivida esta data há 50 anos é feita por Onésimo Teotónio Almeida, que junta a memória e as imagens guardadas — “O 25 de Abril foi a festa onírica do grafito que captou o espírito dominante no tempo: ‘Queremos tudo!’, enlevados nos mais doces e utópicos sonhos de um homem e de um mundo novos.”

Histórias imaginadas ou reconstruídas povoam alguns dos textos (Dulce Maria Cardoso ou Ana Margarida Carvalho), havendo lugar também para o humor (Cláudia Andrade redige uma carta, em que não falta o final “a bem da Nação!”, dirigida ao director da polícia política a informar sobre “actividades indizíveis” acontecidas no quintal), para as memórias do tempo anterior ao 25 de Abril (Maria do Rosário Pedreira, Anabela Mota Ribeiro ou Ana Bárbara Pedrosa) ou para a memória da data ocorrida em tempo de juventude (Possidónio Cachapa ou Julieta Monginho), assim como para a lembrança do que foi viver essa data (Germano Almeida). Não faltam também os textos que problematizam a concretização das esperanças que vieram com esse Abril (Joel Neto ou Richard Zimler)

Feliz é o tom de José Luís Peixoto (nascido em 1974, já depois de Abril). Só tendo conhecido o país em regime de liberdade, confessa ter demorado “a entender a importância do 25 de Abril”. Mas a alegria de não ter conhecido o tempo anterior cola-se-lhe à escrita, num reforço do que é viver: “O passado era o peso de tanta injustiça, sofrimento, medo. (...) Fico feliz que essa sombra não me tenha tocado a pele. E todos os dias, em todos os momentos, agora mesmo, encho o peito de ar, sinto o gosto fresco do oxigénio. Estou vivo, estamos vivos, sou livre, somos livres.” Um excelente convite para concluir estas leituras a favor de Abril surge de um nome, também nascido em 1974, depois de Abril, Jacinto Lucas Pires, que relembra a intensidade da canção de José Afonso, avivando, numa interpretação pessoal, o significado de “Grândola, Vila Morena”: “Voltei hoje a ouvir esta canção que marca a nossa vida. Um detalhe pouco referido é o que se pode escutar antes da voz: o som dos pés na terra. O som da terra, o som de gente sobre a terra, a caminhar. Sempre que me lembro de ‘Grândola, Vila Morena’, vejo a imagem límpida de uma utopia, uma ‘terra de fraternidade’, um lugar ideal que nos serve de bandeira e inspiração - mas a canção que sonha um mundo novo começa com os pés na terra. É bom lembrar isso. Ter sempre presente que uma revolução que não caminha, morre. E que esta canção — como o próprio 25 de Abril — pede gestos concretos e a nossa melhor participação.”

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1516, 2025-04-23, pg. 8.


terça-feira, 22 de abril de 2025

O que o ChatGPT disse sobre as obras de Sebastião da Gama

  

10 de Abril, 101 anos depois de Sebastião da Gama nascer. Uma pergunta simples ao ChatGPT: “Obras de Sebastião da Gama?” E veio a resposta: “Principais obras de Sebastião da Gama: Serra-Mãe (1945), sua estreia literária, uma homenagem à Serra da Arrábida, que ele tanto amava; Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946), continuação da exaltação da natureza e da espiritualidade; Cabo da Boa Esperança (1947), poesia intimista e de esperança, marcada por sentimentos humanos profundos; Campo Aberto (1951), reafirmação do seu amor pela natureza, com uma linguagem simples, mas muito lírica; Diário (publicado postumamente em 1958), diário do seu tempo de professor em Setúbal, revela o seu pensamento pedagógico e sensibilidade humana, muito estudado em contextos educativos; Itinerário Paralelo (1958, póstumo), outro livro de poesia que aprofunda temas como a fé, a natureza e o amor.” E acrescentava: “Se quiser, posso te mostrar trechos ou fazer um resumo de algum desses livros. Quer?”

Os conteúdos indicados para cada uma das obras não saem de um fio em que tudo parece igual ou, pelo menos, alojado dentro de uma série de ‘continuados’, abordagem que está longe de corresponder à realidade; há dois erros absolutos — o dizer que o Diário respeita ao “seu tempo de professor em Setúbal”, o que não é verdade (tem referências ao tempo de Setúbal, mas relata a experiência de estágio em Lisboa), e a data de publicação de Itinerário Paralelo, que, sendo edição póstuma, ocorreu em 1967.

Não pedi pormenores sobre os livros. Limitei-me a curtíssima pergunta: “Mais obras?” Resposta: “Claro! Além das obras mais conhecidas que mencionei, Sebastião da Gama tem outras publicações, incluindo edições póstumas e compilações organizadas por estudiosos e admiradores da sua obra.” Fica a ideia de grande fartura de trabalhos e a curiosidade por esse levantamento. E a nova listagem foi: “Outras obras de Sebastião da Gama: Cartas I (1987), reunião de cartas trocadas com amigos e colegas, revelando seu lado mais pessoal, íntimo e humano; Cartas II (1994), continuação da colecção de correspondência, que mostra seu pensamento poético e filosófico; Pelo Sonho é que Vamos (1999), antologia poética com selecção de textos marcantes, inclui o célebre poema com o mesmo nome, frequentemente citado no meio educativo; Diário II - Setúbal e o Ensino (1999), continuação do Diário, focando mais profundamente na sua actuação como professor e na educação; Textos Dispersos e Inéditos (2004), organização de textos que ficaram fora das publicações originais, incluindo prosa, poesia e anotações pessoais; Obra Poética Completa (várias edições), compilações que reúnem todos os seus livros de poesia, muitas vezes acompanhados de prefácios e estudos críticos; A Poesia Vai à Escola, edição voltada para contextos escolares, que selecciona poemas de Sebastião da Gama com propostas de leitura e interpretação; A Serra da Arrábida e o Homem, texto de tom ensaístico, voltado para a protecção da natureza, mostrando seu pioneirismo ecológico.” Fiquei perplexo: a única verdade nesta informação são os títulos Pelo Sonho é que Vamos e Cartas I, embora apareçam com datas erradas, pois são de 1953 e de 1994, respectivamente. E disse mais: “Quer que eu te recomende por onde começar, dependendo do que você curte?” Nova perplexidade. Limitei-me a dizer: “Há aqui muitos títulos inventados e que não existem...”

Triplamente perplexo com a resposta: “Ah, finalmente! Uma alma atenta. Sinto muito por ter contribuído para a já sobrecarregada pilha de desinformação cultural. Você está certo. Vamos limpar essa bagunça e separar o que realmente faz parte da obra de Sebastião da Gama, sem esse festival de títulos fantasmas que surgiram como cogumelos mal catalogados.” Apre!!!

E lá veio mais uma lista de “obras autênticas”, quase totalmente certa, e uma outra de “compilações e edições póstumas relevantes”, em que é dito sobre as Cartas: “Existe, sim, publicação de parte da correspondência dele, mas não em volumes organizados como Cartas I ou ‘Cartas II’. Isso fui eu, inventando colecções como quem faz playlists de poeta.” O Chat GPT confessa-se e arrepende-se? E, provavelmente para fazer as pazes comigo, uma promessa: “Se quiser, posso te mostrar o poema Pelo Sonho é que Vamos, sim, o verdadeiro, não a versão remix que minha mente neural elaborou. Quer que eu repare meu erro com um pouco de beleza real?”

Desisti. Fechei a aplicação. “Beleza real”? Tive receio de que me surgisse um qualquer boneco desses que agora proliferam nos murais facebookianos. Desliguei-me do monitor e fui pegar num livro do Poeta. Lamento, ChatGPT, não vou alimentar a sua “mente neural”...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1512, 2025-04-16, pg. 10.


sexta-feira, 11 de abril de 2025

Abril, cravos e poesia (2)

 


A permanência dos sonhos que Abril trouxe, como alimento da liberdade e do futuro, ressalta em várias mensagens presentes neste São Cravos, como no poema de Analita Santos, que, no terceto final, deixa o desafio: “Hoje, a cada dia, há um abril a reiterar. / Há outros cadeados e passos a percorrer, / para que o grito de abril continue a renascer.” Incisivo no dever de proteger os cravos de Abril é Artur Ferreira Coimbra, que, na “Carta de um avô aos netos sobre os dias de Abril”, lembra o antes e o depois e exorta os descendentes: “Meus netos: regai em cada hora os cravos da liberdade, para que não / Mirre o vermelho da esperança no coração dos dias que vão nascendo.”

O poema assinado por Maria Manuela Mendes Ribeiro, formado por seis quadras, tem a particularidade de fazer perguntas, usando anaforicamente a expressão “quem sabe hoje em dia” para enaltecer quem fez despertar a luta por um Abril promissor e apresentar um quadro da tristeza do passado (marcado pela perseguição, pelo sofrimento, pela tortura da prisão, pela ousadia da luta de uns tantos), levando o leitor a pensar na responsabilidade de sentir que o “Abril cantado” é muito mais forte do que a alegria resultante de um feriado... É Maria Quintans quem lembra a intensidade da data cinquentenária: “abril será sempre a / varanda aberta / onde nos sentamos a / admirar o sobrenome / da vida.” A mesma emoção de Abril é trazida por Rita Taborda Duarte, num jogo em que não faltam palavras recriadas e cuja última estrofe, pela força da repetição, pretende afirmar o essencial da liberdade: “Dar uma no cravo / outra no cravo / outra cravo / outra no cravo”.

No conjunto dos poetas antologiados, vários nomes estão ligados à região de Setúbal, como Alexandrina Pereira (que poetiza Abril, lembrando que: “Um grito surgiu da alma de um povo. / Ergueu-se um país que nasceu de novo.”), Álvaro Giesta (com um poema de louvor aos que fizeram e sonharam o anúncio de Abril), António Manuel Ribeiro (que traça um retrato do que “era um país em forma de aldeia” até ao momento em que “veio da noite o piparote” que “dobrou o regime por dentro”), Dina Barco (cujo texto nomeia Abril em todos os seus versos, enaltecendo as bandeiras do sonhado e desejado), José-António Chocolate (que põe a expressividade lírica em favor da data: “Era abril e outro mês não podia / ser mais forte, de esplendor e beleza, / ter luz clara e anunciar novo dia.”) e Sara Loureiro (apregoando, num poema que vive do sensorial, que “a liberdade foi um grito não murmúrio” com gosto “a plasma a vida a sonho transparente”). Três outros poetas participantes, como António Canteiro, Luís Aguiar e Xavier Zarco, foram vencedores de prémios literários ligados a Setúbal, designadamente os que têm como patronos os poetas Bocage e Sebastião da Gama.

A participação poética do coordenador desta obra, Luís Aguiar, cifra-se num texto feito de memórias e de aprendizagens, dedicado ao pai, “militar de Abril de 1974”. O seu final é, talvez, a melhor justificação para a existência de um livro como este, associando o conhecidíssimo cartaz concebido por Sérgio Guimarães, a memória e a necessidade da escrita: “Recordo-me do cartaz com um menino de cravo na mão / a silenciar uma G3 - ímpeto de um pássaro livre -, / já que a liberdade a todos pertence, e se alastra, certamente, / às amargas recordações, mas que são imunes ao olvido, / visto que o peso da memória também pode, um dia, habitar um livro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1507, 2025-04-09, pg. 10.


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Abril, cravos e poesia (1)



São cem poemas (tantos assinados por homens como por mulheres) que celebram o cinquentenário do 25 de Abril. São cem vozes que cantam as marcas de um mês que ficou como o “lugar onde a imaginação se fez maior que o medo”, como o definiu Conceição Brandão. São Cravos, diz o título desta antologia, coordenada por um também poeta, Luís Aguiar (editora Labirinto, 2024), que apenas apresenta poesia, sem introduções ou apresentações, porque cada poema justifica o ideário (ou o imaginário) de um Abril que se deseja sempre novo, apesar de cinquentenário.

Muitos são os versos que falam do cravo e da sua magia, assim conferindo poder ao título do livro, um quase vaso de poemas, metáfora apoiada nos dizeres de Alberto Pereira, o autor que abre a antologia, quando afirma que, naquele dia, se “transformaram espingardas em vasos”, imagem intensa porque “nunca se esquecem armas que declamam pétalas”.

Abril surge, assim, como o canto da esperança e da força da poesia, arte que permite o dizer mais intenso e absoluto, fortalecendo a palavra, dando asas à liberdade, uma certeza que Ana Maria Puga assinalou ao dizer que aquela manhã “logo fez cantar ruas e casas” e que o soneto de Maria Teresa Dias Furtado enalteceu como momento de suma importância histórica ao estabelecer: “A terra abriu-se de repente / Separou o passado do presente”.

Inevitavelmente, um símbolo de Abril como Salgueiro Maia não podia estar ausente deste universo, pelo carisma que alcançou e pelo que a memória dele fez — Isabel Cristina Mateus salvaguarda a imagem do capitão como “memória de Abril”; José Viale Moutinho constrói-lhe um busto de palavras ao defini-lo como “um capitão de bravura, que cultivava cravos vermelhos e sonhos, apeou os sacerdotes do medo e da maldade”; Nuno Sousa celebra-o como detentor de “genuinidade humilde de herói sem lugar / de deus sem altar”; Paula Banazol de Carvalho faz do poema um agradecimento à figura que trouxe “a liberdade em poemas de futuro”.

As palavras de esperança realçam também, por vezes, a soturnidade do passado, lembrando ora a guerra (António Salvado, num poema de 1974, ou Letícia da Mota), ora a prisão interiormente rejeitada pela crença num futuro melhor (Eugénia Soares Lopes) ou o medo militarizado e policiado (Miguel Marques), ora o esforço de anteriores gerações para que o futuro acontecesse (Daniel Gonçalves conclui o seu poema com o reconhecimento: “Mas se te mereço, Abril, / Por pouco que seja / É porque o meu pai / por ti lutou”), ora a força trazida pelos baladeiros e pelos poetas “que do mundo ergueram Verbo e voz clara e justa” (Marília Miranda Lopes).

Contudo, por alguns textos perpassa também uma certa reserva quanto ao cumprimento da esperança que Abril fez despontar — Carlos Nuno Granja denuncia com dose irónica: “Claro que animamos a malta com os foguetes da festa, / enquanto continua por cumprir a revolução, a sua plenitude”; Fernando Cabrita, nos passos de Paul Éluard (que, aliás, também é trazido por Yvette K. Centeno), afirma ser “preciso de novo escrever o teu nome / Liberdade / nas paredes que pensávamos esquecidas”; Isabel Cristina Pires lembra que “o futuro se enroscou”, enquanto “a espiral dos cravos / rodopiou no país, cada vez mais lentamente”; Teresa Tudela, em versos curtos, verbaliza a angústia de um Abril a acontecer: “Abril é já ali / ao virar da esquina / e não é ainda / (...) / Abril foi ontem / era outra coisa / era alegria”. Pela voz de João Pedro Mésseder, no entanto, há o esforço da conciliação, da urgência e do reforço de Abril: “Que em Abril, em todo o Abril / a vida em multidão venha para a rua. / (...) / Mas não me venhas falar de liberdade, / não me venhas falar de paz, democracia / se de justiça social me não falares, / pois sem ela tudo o resto é letra morta.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1502, 2025-04-02, pg. 10.