quinta-feira, 13 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (3)

 


Se há marca que ficou nesta relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama, essa foi a da dimensão da alegria, um traço fundamental na personalidade do poeta, como Joana Luísa fez sentir numa acção formativa para educadores em 1982, ao dizer que “a sua alegria transbordava”, cunho que ela também alimentava e que se lhes ajustava. Mesmo nos momentos mais dramáticos, marcados pela doença do marido, o papel que Joana desempenhou junto dele foi de lembrança dessa mesma alegria, valendo a pena relembrar a história a propósito do poema “Fé”, datado de finais de 1951, o último poema que ele escreveu: “Estávamos na Arrábida naquele 8 de Dezembro de 1951. O Sebastião tinha andado todo o dia um tanto misterioso: poucas falas, o olhar muito distante. Não se sentia muito bem de saúde mas não aludia ao facto. Depois do jantar, saímos (...) para ouvir o Mar, a Serra, o Vento... (...) Deitámo-nos cedo. (...) Sobre a madrugada, acordei com o soluçar do Sebastião, que me abraçava estremecendo com os fortes soluços que não conseguia conter. (...) Entre soluços e lágrimas, disse-me: ‘Se um de nós agora morrer, aquele que ficar vai sofrer muito, não vai, querida?’ Nunca soube explicar o que senti naquele momento, mas tive a ideia de que foi Nossa Senhora que me ensinou aquele recado tão bonito: ‘Ó filho, somos os dois tão novos! Quem vai pensar na morte com esta idade? Vamos dormir, sim?’ ‘Tens, razão, desculpa...’ Abraçou-me e não chorou mais. Passado pouco tempo, acordou o dia com o Sol brilhando sobre o Mar, lindo, luminoso. E, baixinho, com voz meiga como de costume quando me dizia um poema acabado de nascer, disse-me o poema ‘Fé’.”

Na véspera do Natal de 1955, Matilde Rosa Araújo recebeu carta de Joana Luísa, noticiando o seu regresso a Azeitão e o abandono da congregação religiosa a que se ligara após o falecimento de Sebastião da Gama, comunicação eivada de amor e de poesia: “Voltei, Tilde. (...) Não poderás calcular quanto me custou tomar esta resolução e até onde vai ou irá o sofrimento de sentir, mais que nunca, se é possível, a falta do Bastião, do meu querido Bastião que eu espero encontrar em todos os cantos da casa e nunca encontro.” Era o ponto de partida para uma viagem de absoluta preservação da memória, afinal o itinerário que assumiu.

O livro Estala de Saudade o Coração, de Joana Luísa da Gama, contém ainda mais duas partes: uma, constituída por crónicas versando memórias da infância em Azeitão, por onde passam situações e figuras familiares, pessoas que povoaram a terra com maior ou menor popularidade, eventos habituais no calendário local (a chegada do circo ou as marchas, por exemplo), personalidades e instituições que fizeram a história local (Frei Martinho ou o juiz de fora Machado de Faria, a quinta da Bacalhoa ou a Perpétua Azeitonense), havendo ainda espaço para momentos de reflexão, como o texto em que é valorizado o papel das mães e do esforço que lhes estava atribuído quando ainda não era celebrado o seu “dia”, por todos estes textos perpassando um sentimento de ternura e de afecto às experiências vividas ou testemunhadas.

O último grupo de textos alberga poemas de Joana Luísa da Gama produzidos entre Março de 1942 e Novembro de 1944, neles surgindo a dimensão religiosa, a expressão lírica de um “eu” dominado pela luta interior e por um certo sentimento nostálgico, imagens da infância e a influência da Natureza, em vários passos surgindo evidente alguma abordagem comum a Sebastião da Gama, como no poema “A Serra vestiu-se de noiva”, que é ao mesmo tempo um poema de amor, ou “Ouve, mar, que vens bramindo”, em que o sujeito poético, feminino, desabafa com o mar, perguntando-lhe pelo amado, seguindo a pista das cantigas de amigo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1487, 2025-03-12, pg. 9.

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (2)

 


Em Estala de Saudade o Coração, assiste o leitor ao entusiasmo da jovem Joana Luísa, com 21 anos, a escrever a uma amiga, em Agosto de 1944, dando-lhe conta do início do namoro dos dois — “eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu enfim que não me dará o desgosto que temia, porque se julga muito barro, muito humano, muito tudo menos o que é. Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.” 

Se o namoro entre Joana e Sebastião foi o ponto de partida para tão longo percurso, as provas da fidelidade vão surgindo no decorrer das várias intervenções — em 18 de Maio de 1999, ao falar na cerimónia de entrega do Prémio de Poesia Sebastião da Gama, tendo sido pedido a Joana Luísa um discurso de cinco minutos, dirá perante a assistência: “Como posso eu meter o Sebastião em cinco minutos, estando ele presente 24 horas em cada dia dos 365 dias do ano?” A pergunta não seria apenas retórica, mas denotava toda a dedicação que continuava a existir — e quem estava presente ouviu mais uma história protagonizada pelo jovem Sebastião em 1945, quando terminou a Grande Guerra: “ele chegou de Lisboa e ouviam-se em toda a vila os gritos dele, desde que saiu da camioneta de passageiros até à minha porta: ‘Acabou a guerra! Acabou a guerra! Acabou a guerra!’ E foi assim aos gritos que ele manifestou a sua alegria.”

O entusiasmo dos dois aquando da publicação dos livros é também lembrado, seja na publicação do seu primeiro título, Serra-Mãe, no meio de dificuldades económicas e editoriais, das recomendações de amigos quanto à estrutura da obra, das idas sucessivas à tipografia, da revisão de provas, seja na preparação do segundo, Cabo da Boa Esperança, tarefa partilhada por ambos — “O caderno ia engrossando e chegou a altura de fazer a selecção. Bem difícil tarefa! Tinha a preocupação de não engrossar demasiado o livro e, vista agora, à distância, encontro uma ternura enorme recordando a cena dos dois diante do caderno, lendo poemas, trocando uns por outros, tirando mesmo alguns, para que o livro não fosse volumoso nem caro de mais."

Joana Luísa foi testemunha de momentos de poesia vividos com Sebastião da Gama. Se, no tempo que durava a finalização de um poema, ele queria estar sozinho, ela foi também, frequentemente, a primeira ouvinte e a primeira leitora de muita da produção poética, instantes que preservou quase cinematograficamente, como relembrou a propósito da escrita do poema “Nocturno”, de 1946: “Uma noite, o Sebastião saiu para a Serra como sempre. Quando voltou, trouxe um poema; nós estávamos na praia e, a caminho de casa, pela noite, de braço dado, ouvi-o murmurar esse poema. Foi tão linda aquela hora! O mar, o vento, o silêncio da noite e o poema dito por ele. (...) Quando volta assim da Serra, vem tão bonito! Os olhos muito abertos, os lábios vermelhos entreabertos, olha para longe, longe, para aonde não podemos olhar, e diz o poema.”

Joana Luísa acompanhou Sebastião da Gama nos sentimentos, ambos perfilhando a vivência de fortes emoções, muitas vezes surpreendentes.  Caso a que não falta essa intensidade, pela espontaneidade e naturalidade do acontecimento, é o do episódio acontecido no dia do casamento, em 4 de Maio de 1951, relembrado numa entrevista à Antena 1, em 1988: “No dia do nosso casamento, ele foi muito cedo para a Serra, casámos no Convento da Arrábida, e por lá andou. E, como fazia muitas vezes, apanhou um ramo de alecrim. Quando eu cheguei à porta da capela com o meu ramo de rosas, ele veio ter comigo, pediu-me as rosas, que deu a um convidado, e disse-me: ‘Leva antes estas!’ E eu casei-me de ramo de alecrim...”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1482, 2025-03-05, pg. 9.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (1)

 


Não tivessem sido a dedicação e a persistência de Joana Luísa da Gama (1923-2014) e os leitores pouco conheceriam da obra de Sebastião da Gama (1924-1952)! Talvez mesmo se tivesse perdido a maior parte da sua produção literária!... A obra do poeta poderia ter-se cingido aos títulos por si publicados — Serra-Mãe, em 1945, Cabo da Boa Esperança, em 1947, e Campo Aberto, em 1951, além dos textos que deixou dispersos por vários jornais e revistas, das quadras que foram integradas nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (em 1946), do texto A Região dos Três Castelos, de 1949, que cativava para as viagens turísticas nas imediações da Arrábida e, talvez, de Pelo Sonho é que Vamos (de 1953), a primeira obra póstuma, que Sebastião da Gama deixara orientada e com título escolhido. Todos os restantes títulos do poeta e professor azeitonense publicados resultaram do empenho posto por Joana Luísa da Gama, na tarefa de recolha, organização e preservação dos manuscritos e dactiloscritos do marido, e por um grupo de amigos do casal (David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Luís Amaro, Maria de Lourdes Belchior e Luís  Filipe Lindley Cintra, entre outros), que acompanharam as edições sucessivas.

Após o falecimento de Sebastião da Gama, o itinerário de Joana Luísa passou pela vida conventual (até final de 1955), tendo chegado a tomar o hábito nas Franciscanas Missionárias de Maria sob o nome de Maria Delfina de Jesus, pelos estudos na Escola João de Deus, pelo trabalho nas Misericórdias de Lisboa e de Azeitão e no Centro Regional de Segurança Social, pela dedicação ao apoio social e pela divulgação da obra do marido. A ideia de um novo casamento não se lhe voltou a pôr, pois, como disse em entrevista a Vladimiro Nunes, na revista Tabu (jornal Sol, 3.Fev.2012), “ia ser o mais infiel possível ao homem que casasse comigo, porque não me largava do Sebastião”. Este sentimento, explicava-o ela ao entrevistador nos seguintes termos: “Não sou capaz de pensar no Sebastião morto. Não o vejo, mas encontro-o. Ele está sempre comigo. (...) Sei que ele está vivo e ajuda-me. Pergunto-lhe muitas vezes o que hei-de fazer. Não sai livro nenhum sem eu ter a resposta do Sebastião. Todos os livros que têm saído, ele tem consentido. E tem ajudado.” Uma espécie de presença pressentida que foi publicamente confessada por Joana Luísa em diversas ocasiões, como, por exemplo, em 1985, quando, num encontro com jovens da Casa do Gaiato, onde contou a história do encontro entre Sebastião da Gama e o Padre Américo ocorrido em 1947, disse à assistência: “Não estou aqui por acaso, (...) estou em lugar do Sebastião, do nosso poeta Sebastião da Gama, porque se ele cá estivesse viria aqui fazer esta apresentação. Mas ele deixou um recado e eu venho trazê-lo.” Outro momento, para lembrar um outro reflexo desta união, aconteceu em 2007, ao falar para alunos e professores numa escola em Carnaxide: “Será desnecessário dizer o carinho que sinto pelos professores e quanto sofro e me alegro com eles. São colegas do meu marido. São, porque o Sebastião continua presente.”

Os períodos de vida dos dois quase se entrelaçaram no tempo — Sebastião da Gama nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro, Joana Luísa nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. Nos 62 anos que sobreviveu ao marido, ela não deixou de testemunhar, de divulgar, de apresentar, de falar sobre a obra dele, fosse em sessões poéticas, fosse em eventos públicos para que era convidada, sobretudo em escolas, caracterizando-se sempre o seu testemunho pela leitura de alguns textos de Sebastião, por vezes recorrendo a inéditos, pelo contar de uma história relacionada com os textos lidos e por uma viagem nas memórias.

Foi da reunião de alguns desses textos que surgiu o livro Estala de Saudade o Coração (Associação Cultural Sebastião da Gama, 2013), em cuja apresentação Joana Luísa ainda esteve presente, apesar de já revelar alguma debilidade física. O passeio que, enquanto leitores, podemos fazer por essas páginas dominadas pela memória é um trajecto impressionante numa história de amor e de poesia, de saudade e de reconhecimento.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1478, 2025-02-26, pg. 10.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Os panoramas que Cabral Adão cantou

 


Em 1 de Fevereiro de 1960, a primeira página do jornal O Setubalense publicava um poema assinado por “Medronho da Mata”, cujo tema era a cachoeira da Quinta do Alcube, imagem procurada para o poeta exprimir o seu encanto perante cenário repleto de verdura, assistindo à acção da água corrente e saltitante sobre a pedra, limando-a e polindo-a, imagens de que logo se apropria para exprimir a sua emoção: “Devia ser em mim que tu corresses / E as rochas do meu fel me dissolvesses / Levando tudo, sem deixar um ai!...”

O pseudónimo que assumia o poema, também utilizado na página “Arte - Alegria - Beleza” que o jornal publicava de vez em quando, organizada pela Arcádia da Fonte do Anjo, pertencia a Cabral Adão (1910-1992), conhecido médico que chegara a Setúbal, oriundo de Vila Flor, em 1938. O poema sobre a cachoeira foi o primeiro de uma série intitulada “Panorâmica”, que alojou 21 sonetos ao longo de 1960, até à publicação do último na edição de 31 de Dezembro desse ano, tempo importante para Setúbal, pois passava o primeiro centenário da sua elevação a cidade.

O panorama que se ofereceu como pretexto a Cabral Adão passou por locais e momentos importantes, cantando espaços (ruínas dos Capuchos, quintas dos Ciprestes e da Laje, Senhora do Cais, miradouro de S. Sebastião, mata do Vidal e Albarquel), figuras (descarregador de peixe, vendedora de laranjas e varina das Fontainhas), momentos (luar no Sado, campina vista no Outono e anoitecer sobre a cidade) ou paisagens (vista desde S. Luís, marinhas e praia “do Dr. Adão”, assim conhecida e onde constam os versos que, hoje, em lápide sobre rocha, podemos ver na estrada a caminho da Figueirinha).

Ao longo dos vários momentos ou locais evocados, há imagens fortes pelo efeito sensorial e artístico, vibrantes no retrato do descarregador (“uma iluminura que se antolha / digna de um óleo ou mármore render”), na aguarela das marinhas (“tabuleiros d’água a branquejar”), no efeito de espelho vindo do rio (o “sol vem bater no tafetá do Sado”) ou na paisagem sonora do bulício da urbe (“a serra, na distância, põe-se à escuta / desta cidade inteira que labuta”). A voz lírica destas “panorâmicas” circula em busca de afinidades e o leitor não se surpreende no momento em que o poeta entra pela mata, espaço procurado “nas horas de tristeza ou de aventura”, cruzando-se com a inspiração suscitada pela Natureza e com as vozes de quem na serra o antecedeu na escolha da Arrábida para tema do seu canto: “Mas só me vem um eco, em melodia. / — És tu, Sebastião?... E ele aparece / Sob o capuz fraterno de Agostinho.”

Três anos depois destas publicações em O Setubalense, em 1963, Cabral Adão assinalava o quarto de século sobre a sua chegada a Setúbal e a melhor forma que encontrou para manifestar o seu apego a este torrão foi através da edição de Panorâmica - Poemas a Setúbal, reunião desse conjunto de sonetos, antecedidos de curta nota em que em que o autor revela ter a chegada ao Sul refinado “o pendor inato de enamorar-se da Natureza” e ser Setúbal “a segunda almofada de recostar a cabeça”, assim como de um poema com uma dúzia de quadras intitulado “Rio Azul”, em jeito de introdução e de justificação: “Não há um rio na minha terra!... / Só a três léguas, pra cada lado. / Mas eis que a vida aqui me desterra / Pra me dar um - o meu terno Sado.” Nesta abertura, é cantada a paisagem e a alegria de a poder contemplar, confessando que raramente se ausenta ou afasta do rio, dizendo-se com “mais sorte do que Feijó”, alusão ao escritor limiano que, em consequência da sua vida profissional, viveu longe do pátrio Lima.

Panorâmica - Poemas a Setúbal teve segunda edição em 1988, ano em que passava o cinquentenário sobre a chegada de Cabral Adão à cidade do “Rio Azul”. Aos poemas da primeira edição acrescia um, no final, o vigésimo-segundo, reflexão autobiográfica em que se junta o efeito do tempo, o passar da vida, a família (já em terceira geração) e a adopção de Setúbal como espaço-natal repartido: “Subtis, sem um aviso, de mansinho, / Rodam os anos sem se dar por isso: / É o sol que mal anda o seu caminho / E, sem se perceber, leva sumiço. // Já são cinquenta os anos que, submisso, / Eu tenho de Setúbal, fofo ninho / De cinco filhos meus, flores de viço / A rescender a mar e rosmaninho. // Desses cinco, já onze refloriram / Geração estendida a muita parte, / O Rio Azul levando gota a gota... // E já que eu vim de longe nesta rota, / Meu meio berço seja, pela arte / Que os meus olhos sagazes jamais viram!”. A panorâmica deixava de ter como motivo o exterior e tornava-se dominada pelo percurso de vida...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1473, 2025-02-19, pg. 10.

 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (5)

 

 

A ligação de Sebastião da Gama a Estremoz seguiu um caminho de intensidade crescente, numa simpatia mútua e na construção de uma rede de afectos, como testemunha uma sua carta dirigida a Albano Ferreira, em 7 de Setembro de 1951: “Devo estar mais um ano, pelo menos, em Estremoz. A terra é agradável, a gente é boa.” Esta permuta afectiva revelou-a ele a quem o ouviu quando, em Abril de 1951, a convite de João Falcato, repetiu no Colégio Estremocense a conferência que fizera em Setúbal sobre Bocage — a concluir a palestra, disse, numa linguagem de empatia e com não menos dose de simplicidade, ter sido “o prazer de pagar aos estremocenses com leite do meu gado o puro azeite da simpatia e do bom acolhimento.”

Estremoz foi também o espaço e o tempo de transformação e de criação para Sebastião da Gama, visível até nos gestos mínimos, provas da satisfação e do prazer de sentir e de partilhar a alegria e a vida, tal como contou em carta de 13 de Janeiro de 1951 a Joana Luísa: “Alegre, alegre mesmo com a chuva, é o mercado aos sábados. Hoje comprei - pelo prazer de comprar: dois molhinhos de rabanetes, que trouxe na mão como violetas; meio quilo de peros; um prato de barro para os pôr: no fundo tem um passarinho.” Há lá maneira melhor do que recriar a vida ao atribuir significado e força àquilo que impressiona o olhar de um poeta!...

Na obra Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade (Leya, 2014), romance baseado na figura de João Francisco Carreço Simões e na sua acção em Estremoz, Sebastião da Gama, designado como “professor” e como “poeta” ocupa quase três páginas, num retrato traçado a partir das memórias que deixou na cidade alentejana. É através da personagem José Eduardo Serrão, com 15 anos em 1954, que o leitor recebe o eco das lembranças do poeta da Arrábida que permaneceu em quem com ele privou.

“Do professor de português, o poeta, é que nunca mais me esqueci.” — assim começa a evocação. E, no final da passagem: “Depois de o poeta abalar — não gosto de dizer que morreu —, parecia que me tinha passado a vontade de rir. Comecei a ler cada vez mais.” A memória exposta vale como um testemunho do que para quem o conheceu em Estremoz significou a figura de Sebastião da Gama: a leitura que ele fazia de poemas, que se tornava motivadora, enchendo-se-lhe, por vezes, os olhos de lágrimas ao longo do poema; o professor que “falava da beleza das pedras, das cores das folhas no Outono, do azul do mar, da imensidão dos céus e da magia das estrelas”; as sucessivas chamadas de atenção para a beleza do outro e da Natureza; a abertura para que os alunos interviessem nas aulas e o prazer que os estudantes tinham no tempo de uma lição com aquele professor; os ensinamentos de solidariedade recebidos, convidando os jovens à partilha e à dedicação aos mais necessitados; as suas idas ao mercado estremocense para comprar flores... enfim, um conjunto de marcas que identificaram Sebastião da Gama no seu relacionamento com a vida e com o local. Se dúvidas existissem quanto à identificação deste professor e poeta, elas seriam desvanecidas com a referência à Arrábida, com a indicação da sua morada, “no segundo andar de uma casita do Largo do Espírito Santo”, com a alusão a uma prenda que a personagem recebera — “Não era à toa que lhe chamávamos poeta, pois, além de tudo isto, escrevia versos. Ainda guardo um livro de poemas seus chamado Cabo da Boa Esperança que me ofereceu.”

Para esta personagem, que tinha 13 anos aquando do falecimento de Sebastião da Gama, o desaparecimento do poeta volveu um quase-mistério: “Nunca percebi bem que doença tinha, e depois de ter abalado as pessoas também preferiram não falar disso. Foi-se embora durante as férias do Carnaval e, apesar de tudo, ia feliz por regressar à sua Serra da Arrábida, como dizia. É um lugar muito longe daqui, explicou, ‘onde os ares são muito puros e curam algumas doenças’. Com ele, pelos vistos, não resultou. Ouvi algumas conversas e também li no jornal. Vinha uma fotografia e um poema dele, que começa assim: ‘Quando eu nasci / Ficou tudo como estava...’ E depois, em baixo, a cruz preta. Penso nele muitas vezes com saudade. Foi a primeira pessoa de quem gostava que morreu. Sem contar com o meu pai, claro.”

Muito embora sendo o testemunho de uma personagem de ficção, a intensidade desta caracterização corresponderá ao que a sociedade estremocense da época ficou a conhecer de Sebastião da Gama, fosse pelo retrato chegado (e mantido) por via dos seus alunos, fosse por quem com ele conviveu na escola e na rua, no café, nas tertúlias e no Rossio. Manter a imagem do poeta através de uma obra de ficção é também uma forma de resolver o mistério que envolve uma partida aos 27 anos, sobretudo quando sentida por uma população juvenil que neste professor encontrava momentos de felicidade... como sucessivamente muitos foram lembrando ao longo dos tempos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1468, 2025-02-12, pg. 10.

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (4)

 


Acilda Fragoso, a aluna, teve no professor-poeta um amigo e também ela foi motivo de apresentação a Joana Luísa através de carta, em 1951 — em 11 de Fevereiro: “Ontem, (...) encontrei a Acilda e a Maria Emília. Tão bonitas ambas, sob a chuva! Comprei-lhes violetas.”; em 7 de Março: “A Acilda faz anos na sexta. Disse-me o Banha. E eu combinei oferecer-lhe três ou quatro dos poemas deste ano dentro de uma capa feita pelo Banha. Na capa: somos assim aos 17.” Cerca de 60 anos depois da morte de Sebastião da Gama, em 13 de Abril de 2013, Acilda Fragoso evocava-o em Azeitão, mantendo viva a imagem, tal como a senhora que indicou ao visitante onde era o Largo do Espírito Santo: “O pedagogo, o professor amigo e poeta, deixou-nos em 7 de Fevereiro de 1952; no entanto, a sua presença persiste indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de com ele conviver, especialmente dos seus alunos. O Poeta-Professor ou Professor-Poeta, único no seu todo, sabia como nos fazer sentir únicos e como buscar o melhor de cada um dos seus alunos, deixando-nos perplexos com a descoberta de nós próprios. (...) Nesta cidade, de gente pacata, todos conheciam aquele homem barulhento, e que até era o novo professor, sempre de boina na cabeça, trazendo às vezes flores nas mãos, além de livros, porque, falando alto com a sua voz rouca, com todos metia conversa.”

Desde que chegou a Estremoz, Sebastião da Gama (a viver inicialmente na então Rua das Areias) insistiu na procura de casa para viver com Joana Luísa após o casamento (que se realizou em 4 de Maio de 1951). É numa carta de meados de Março, que, depois de ter desistido de várias propostas e de ter encontrado uma do seu agrado, escreve para Azeitão: “Estou doido com a casa. Vê-se toda a cidade e metade do Alentejo. A praça é engraçada — em frente de duas torres, de um chafariz, de uma capela. A cozinha, triangular, é grande e engraçada. Da janela vê-se quase tanto como do terraço, que é no terceiro andar (no telhado). É inclinado, não serve para lá comer ou trabalhar. Mas para o banho de sol é excelente.” Poucos dias depois, nova longa carta faz nova descrição da casa, terminando com uma promessa: “Vamos gostar tanto da nossa casa e do repouso que tenho cá que não nos apetecerá sair, pois não?” Estava escolhida a morada futura e os preparativos foram acontecendo com a ajuda de várias pessoas, entre as quais, Acilda Fragoso e Guiomar Ávila. Em vista, estava o segundo andar do número 2 do Largo do Espírito Santo, endereço que daria título a poema em 9 de Junho de 1951, registando como local de escrita “Nossa casa”, oito quadras que a apresentam a partir do sonho de quem a habita, do interior do lar e de um “nós” que alimenta todo o poema, talvez um dos mais belos poemas de amor. Publicado pela primeira vez na revista Árvore, o título suscitou divergências com a direcção, pois havia quem não aceitasse que uma morada figurasse como título de um poema... Foi preciso que Sebastião da Gama se impusesse e escrevesse ao seu amigo Luís Amaro a não deixar alternativas para o título ou, de outra forma, não aceitaria publicar na revista.

As imagens de Estremoz perpassam também na correspondência que Sebastião da Gama vai trocando com amigos como Virgílio Couto (o seu professor metodólogo), Cristovam Pavia e Luís Amaro (ambos alentejanos, ambos poetas), António Manuel Couto Viana (poeta), Matilde Rosa Araújo e Lindley Cintra (colegas da Faculdade e professores), José Régio (escritor), António Sampaio (pintor), Pedro Lisboa (médico) ou Albano Ferreira (que fora seu aluno em Lisboa). Nestas missivas, há frequentemente notas sobre a vida em Estremoz, em pequenos apontamentos que constituem recortes interessantes sobre o quotidiano, como se pode verificar na carta enviada a Matilde Rosa Araújo em 13 de Outubro de 1951, relatando um episódio vivido num sábado: “Hoje, logo pela manhã, uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no ‘seu erro de ortografia’ - diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera. Se aparecer outro ficará entre os que têm (esses encomendados) os nomes dos nossos sobrinhos. Para te lembrarmos e eu te lembrar um pouco mais ainda.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1463, 2025-02-105, pg. 10.

 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (3)


Dedicatórias autógrafas de Sebastião da Gama para
Joaquim Vermelho, Maria Guiomar Ávila e Acilda Fragoso


Pelas crónicas estremocenses de Sebastião da Gama, vindas a público no Jornal do Barreiro, passa a paisagem, a festa de Carnaval, a cidade, o mercado, a simpatia das gentes, episódios do quotidiano do poeta, um jogo de futebol, os amigos... tudo num xadrez de observação e de contemplação enlaçadas em afecto, patente em exemplos como: a) ao referir a paisagem, diz ainda não a conhecer “senão da janela do quarto ou da Torre de Menagem — o campanário de Estremoz e o seu mirante, de onde os olhos se admiram para os olivais sem fim, para o verde que te quero verde dos trigos, para as searas onduladas”, umas pinceladas que nos remetem para outra vastidão, também ela “ondulada”, também ela podendo ser “verde”, como o mar que marca forte presença na poesia de Sebastião da Gama, assim como nos remetem para García Lorca, intertextualizando com o seu “Romance sonâmbulo”, quando diz “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas.” (e sabemos bem quanto Sebastião da Gama conhecia e apreciava a poesia espanhola, como David Mourão-Ferreira testemunhou numa entrevista); b) ao olhar o Rossio estremocense, não duvida de que a cidade pode ser “uma caixinha de surpresas” e proclama, quase em jeito de provocação, que “o Rossio de Estremoz poderia tratar por tu o de Lisboa”; c) para referir a hospitalidade alentejana, inicia uma crónica em torno de uma reflexão tão cheia de simplicidade quanto “só estou bem onde estou”, reforçando não se ver como forasteiro, mas sentir-se “em casa”; d) finalmente, na última “carta”, atesta a sua identificação: “Sou de Estremoz e dos seus arredores — e aqui é verde e alegre. Este é um Alentejo de flores e pássaros, de colinas e fontes, de cantigas gárrulas no ar.” Lemos estas afirmações e mais sentido ganha a ideia de que um poeta como Sebastião da Gama não pode viver preso a uma geografia, ainda que dela se sirva para, como refere Ruy Ventura no ensaio que integra na antologia Por Mim Fora (2024), funcionar como “arquétipo simbólico, símbolo visto, criatura / pintura que torna presente, por meios misteriosos e ainda assim imperfeitos, o supremo Criador ou Pintor”.

A presença de Sebastião da Gama em Estremoz passou muito pelas amizades aqui descobertas, várias registadas em poemas — além de António Bento, já referido, mencionem-se também Maria Guiomar Ávila (1919-1992), Joaquim Vermelho (1927-2002) e Acilda Fragoso (n. 1934). À primeira foram dedicados dois poemas, “Poesia depois da chuva”, de 12 de Fevereiro de 1951, e “Crepuscular”, escrito pelo S. João de 1951, este em torno da figura da Rainha Santa; o nome de Joaquim Vermelho figura na dedicatória de um dos mais icónicos poemas de Sebastião da Gama, “Viesses tu, Poesia”, de 10 de Fevereiro de 1951; finalmente, Acilda Fragoso, que teve o poeta como professor, viu os seus 17 anos coroados com o poema “A uma rapariga”, em 7 de Março de 1951.

Conhecer Maria Guiomar Ávila (que, em 1953, foi uma das responsáveis pela homenagem estremocense ao poeta) significou para Sebastião da Gama uma oportunidade para conviver com quem apreciava poesia. Em várias ocasiões falou dela à ainda noiva Joana Luísa, na correspondência trocada, um registo que funcionou muitas vezes como substituto de um diário para contar à amada as suas vivências no Alentejo — em Fevereiro de 1951: “Hoje, pelo telefone, já conheci a Guiomar Ávila. Encantadora. Encontrar-nos-emos na missa das 9 e trinta, no domingo (ela é muito religiosa, portanto não cobiça o homem do próximo; e não vai à das onze porque, diz ela, é uma parada de elegâncias)”. Guiomar Ávila e Joaquim Vermelho fizeram parte do grupo a quem Sebastião da Gama leu em primeiro lugar o seu Campo Aberto, acabado de sair, uma espécie de tertúlia que se reuniu na tarde de 11 de Fevereiro de 1951. Pertence a Joaquim Vermelho um sentido testemunho sobre o amigo poeta, intitulado “O rapaz da boina”, saído no Jornal de Almada quando passava o nono aniversário da falecimento de Sebastião da Gama, afinal um retrato da sua vivacidade e sentido de humor, da referência que constituiu para quem o conheceu — “O rapaz da boina veio da Serra-Mãe, descendo ao povoado sonolento e fechado como uma fortaleza antiga receosa de inimigo invisível. Olhos brilhando do sol das alturas. A boina tombada garridamente sobre a testa, sombreando os olhos como nuvem brincalhona a querer esconder-nos o brilho intenso e estranho da alegria que deles irradia, não vá ela ferir-nos profundamente no nosso doentio viver de janelas fechadas, de costas viradas para a luz. Como é que a alegria pode vir ter connosco se lhe fecharmos todas as janelas e portas, batendo-as intempestivamente na cara do convívio? O rapaz da boina desceu ao povoado e cantou as janelas fechadas em gargalhadas de rosa encarnada, num riso de criança feliz e despreocupada.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1458, 2025-01-29, pg. 10.

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (2)

 

"A Companheira", primeira colaboração de Sebastião da Gama em Brados de Estremoz,
e fac-símile do manuscrito de "Janelas de Estremoz", primeiro poema que Sebastião da Gama escreveu naquela cidade


Dos 27 poemas que Sebastião da Gama escreveu entre a sua chegada ao Alentejo e o falecimento, apenas oito têm como registo de local de escrita o espaço de Estremoz, o que não admira, pela quantidade de trabalho que tinha, a saúde precária (que o levou a algumas temporadas na Arrábida), a preparação em curso de Campo Aberto (saído em Janeiro de 1951) e os preparativos do casamento (que ocorreu em Maio de 1951). O mais antigo poema aqui escrito, “Janelas de Estremoz”, datado de 21 de Janeiro de 1951, dedicado ao amigo António Bento — figura que Sebastião apresenta em carta dirigida à ainda noiva, Joana Luísa (1923-2014), dizendo ser “um rapaz de Nisa de quem já sou amigo e com quem falo, o meu maior companheiro” —, resulta do seu olhar e vaguear pela cidade, espantado por não ver rostos, por assistir a um desfile de janelas cerradas, situação que o levará a um desabafo em carta para a namorada nesse Janeiro de 1951: “Ouve: fiz os primeiros versos. Sofri-os. Sofro-os desde o princípio — e já tinham estado quase a acontecer. Sabes lá o que é, para um homem da nossa terra, ver dezenas de janelas, centenas de janelas, fechadas! Pois aqui é assim. Até as madeiras. Até, por vezes, as gelosias.”

Desejoso de se ligar ao local e às suas gentes, Sebastião da Gama rapidamente enceta colaboração no jornal local Brados do Alentejo, aí tendo a sua primeira publicação em 28 de Janeiro de 1951 com o poema “A Companheira”, seguindo-se-lhe “Janelas de Estremoz” na edição de 4 de Fevereiro, duas semanas depois de ter sido escrito. O jornal estremocense teria ainda mais três textos do jovem professor, crónicas intituladas “Entre quem é!” (na edição de 11 de Março de 1951), “Sábado em Estremoz” (saída em 22 de Julho de 1951) e “Encarcerar a asa” (publicada em 3 de Fevereiro de 1952). Esta última prosa, um gesto de louvor à vida através de um episódio em que é protagonista uma idosa que protesta por ver um pintassilgo ao frio dentro de uma gaiola, foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu, datado de 25 de Janeiro de 1952 e publicado quatro dias antes do seu falecimento.

A cidade que o recebeu foi ainda o espaço para uma série de crónicas vindas a lume no Jornal do Barreiro (seis, no total), colaboração que Sebastião da Gama assim apresentou a Hipácio Dias Alves, director do jornal, em carta de 7 de Fevereiro de 1951: “pequena crónica em que diga da vida da cidade, no que ela possa interessar-me”. Resultam, pois, estas crónicas de um olhar de recém-chegado, ávido de entender e conhecer o meio no que ele tem de mais genuíno e participado, aspecto que não passou ao lado do Brados do Alentejo, que não hesitou em republicar a crónica “Sábado em Estremoz” (na edição de 22 de Julho de 1951), inicialmente saída no Jornal do Barreiro (de 15 de Março), com a seguinte explicação: “O poeta Sebastião da Gama, chegado a Estremoz para professor do Ensino Técnico, em pouco tempo se enamorou dos encantos da nossa terra, mesmo sem ter provado a água do Gadanha. Em pouco tempo se familiarizou até à intimidade com a nossa gente, que sem receio lhe abriu os braços, dado o seu carácter franco e lhano e o seu modo comunicativo de tratar. Hoje, Estremoz distingue sempre com um sorriso, um curvar de cabeça, um aceno de braço, o poeta do Campo Aberto, à janela, na rua, em qualquer parte onde ele apareça. Ele está com a cidade e a cidade está com ele. Estremoz passou a fazer parte das suas conversas, a ser motivo de alguns dos seus poemas e assunto de pequenas crónicas (...) em prosa simples, despretensiosa, límpida como o seu espírito de poeta, reflectindo a alta e rara sensibilidade de artista. É uma dessas ‘Cartas de Estremoz’ que (...) transcrevemos, em homenagem à sua admiração pela nossa terra e pela sua gente.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1453, 2025-01-22, pg. 10.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (1)


Homenagem a Sebastião da Gama em Estremoz, em 15 de Junho de 1953


Em Abril de 2006, o visitante estava no Museu de Arte Sacra de Estremoz e, no final do percurso, perguntou a uma senhora qual o trajecto para chegar ao Largo do Espírito Santo. Com ela, estava uma outra senhora que logo opinou: “Mas o senhor quer ver o Largo? Aquilo não tem nada de jeito, só montes de carros estacionados...” O visitante justificou que gostava de lá ir para ver a casa onde vivera Sebastião da Gama. “Mas conheceu-o?”, quis logo saber a senhora. Que não, que não o tinha conhecido, pois, quando nasceu, já Sebastião da Gama falecera havia meia dúzia de anos. “Mas eu conheci-o... Ainda o estou a ver. Com a boina, livros debaixo do braço, a sorrir, flores na mão, com a sua Joaninha...” E os olhos da senhora sentiam o prazer da memória, riam, viviam, poetavam o momento de recuo no tempo... e lá acabou por indicar o itinerário para o Largo do Espírito Santo. Impressionado com este efeito avassalador da memória, em que parecia que a senhora tinha visto Sebastião da Gama no dia anterior — quando, na verdade, já tinham passado 54 anos sobre a sua partida —, lá se encaminhou o viajante para o Largo, com uma história para contar.

Por isso, quando, dias depois, recordei este momento com Joana Luísa, mulher de Sebastião da Gama, ela sorriu enternecida e comoveu-se, lembrando vários alunos e diversas pessoas que conheceu em Estremoz no curto tempo de oito meses em que lá viveu. Cheguei, pois, ao Largo do Espírito Santo. E lá estava a casa, lápide na parede, em cenário que, mesmo com os automóveis estacionados a esmo, evocou a fotografia de 1953, protagonizada por vasto grupo de estremocenses que assinalou a colocação da lápide, gesto intenso de culto da memória. “Batei à minha porta, Irmãos, / entrai, / que eu tenho Amor para vos dar”, reza a inscrição, conjunto de três versos saídos do poema “A meus irmãos”, escrito na Arrábida em 30 de Agosto de 1944 e publicado no primeiro livro, Serra-Mãe, no ano seguinte. E, depois, o registo para a memória: “Sebastião da Gama viveu nesta casa de 11-5-1951 a 5-2-1952”.

Sebastião da Gama tinha 26 anos em 9 de Outubro de 1950, quando foi colocado na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha Santa Isabel), sendo seu director Irondino Teixeira de Aguilar (1914-1969), professor e autor de manuais escolares. Acabado o estágio e realizados os exames da parte pedagógica, Estremoz passou a ser o espaço de Sebastião da Gama, repartido com a Arrábida e com as lembranças de Lisboa, terra onde fez amigos, compôs poemas, leccionou, terra que deu a conhecer nas suas descobertas que partilhou em crónicas jornalísticas, semeando, talvez, alguns dos mais interessantes textos que sobre a vida da cidade se escreveram.

Chegado à Escola, Sebastião da Gama teve intenção de dar continuidade ao Diário que compusera nos dois anos lectivos anteriores. No entanto, poucas páginas nos legou, talvez por falta de tempo, como nos confessa no registo do dia 11 — “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo. E já não há-de ser pouco, que não tenho apenas, como em Lisboa, uma turmazinha.” Os registos diarísticos acabarão por respeitar apenas os primeiros dez dias, com observações que mais nos vão dizendo sobre o conhecimento que vai tendo dos novos alunos: o Francisco Graça, que “vem de bicicleta, todos os dias, de a dez quilómetros de Estremoz”; a Luciana, “uma carinha de riso”, em quem “até as tranças riem”; o Mário, que “trouxe flores de Vila Viçosa” e vários outros... enfim, alunos de diversas idades e ciclos, que  o levarão a escrever, ainda no dia 10, sobre uma turma: “Gente boa. Gente minha. Não há rapazes maus. Vou gostar destes e destas seis raparigas.” E sobre outra, numa apreciação global: “São uma porção de rapazes e cinco raparigas que vêm para aqui, parece-me, com a ansiedade de rapazinhos. Mas eu, sinto-o com tristeza, vou ficar muito aquém das suas esperanças. Delicados. Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1448, 2025-01-15, pg. 10.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Quando Romeu Correia escreveu sobre Sebastião da Gama

 


Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.

Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.

De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”

No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”

A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.

Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”

A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.

O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.