Em 11 de Dezembro de 1945, uma terça-feira, Sebastião da Gama (1924-1952) escrevia uma carta para a namorada, Joana Luísa (1923-2014), comunicando-lhe a saída do seu primeiro livro, notícia não desprovida de entusiasmo: “Hoje devem dar-me a gravura e amanhã começam a fazer a capa. Só sexta ou sábado teremos o nosso livro. Meu Amor!...” Feitas as contas, o livro estaria pronto a 14 ou a 15 desse mês, ali bem próximo do Natal. Não sabemos exactamente se o livro ficou pronto num desses dois dias; mas, numa carta de 18 de Março de 1946, Sebastião da Gama lembrava à namorada: “Faz hoje três meses que a Serra-Mãe saiu a lume. Estou a lembrar-me da minha comoção quando eram já onze horas da noite, e a vi na montra da Portugália, 18 de Dezembro — havemos (sim, Amor?) de ensinar esta data aos nossos filhos.”
Desde essa data, o livro Serra-Mãe tem feito um percurso em louvor da Arrábida e o seu título tem servido outras artes — a Serra, pela força transmitida pela paisagem, é constantemente motivo artístico, na fotografia, na pintura (no início da década de 1940, Hélène Beauvoir registou o Portinho na tela, imagem muito divulgada nas publicações de carácter turístico da época; hoje, pintores como Rogério Chora ou Nuno David, entre outros, cultivam a Serra como tema), na música (lembremos a composição Caminhos da Arrábida, de Rui Serodio, de 2001, ou a de Agostinho Caineta, que tomou o epíteto de Sebastião da Gama para título de uma composição que a Banda Filarmónica Perpétua Azeitonense gravou em 2000) ou na escrita (são inúmeros os poetas que têm dedicado as suas métricas à Arrábida, como ainda recentemente aconteceu com Alexandrina Pereira, ao publicar o seu Arrábida - Entre a Cor e o Verso). Mas a designação “Serra-Mãe” foi ainda mais longe e emprestou o seu nome a uma marca de vinho (produzido na SIVIPA) ou, mais recentemente, à Unidade de Saúde Familiar azeitonense (USF Serra-Mãe).
A fortuna identitária desta designação metafórica e afectiva que Sebastião da Gama atribuiu à Arrábida levou mesmo a que o título da obra fosse considerado na toponímia (facto não muito vulgar, apesar de, em Portugal, serem conhecidos os casos de Os Lusíadas, em várias ruas de diversas localidades, e de Amor de Perdição, um largo no Porto), uma iniciativa apresentada por António Cunha Bento à Associação Cultural Sebastião da Gama e à Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão no início de 2016, dois meses depois aprovada pela Câmara Municipal de Setúbal (23 de Março), com descerramento de placa de identificação toponímica em 30 de Abril seguinte, assim se assinalando, na altura, os 70 anos sobre a publicação desta obra (sublinhando-se na placa tratar-se da “1.ª obra de Sebastião da Gama, 1945”). A designação “Rua Serra-Mãe” só podia ter aplicação num espaço que tivesse ligação com a Arrábida e com o poeta azeitonense, dando nome à rua por onde se acede ao Portinho da Arrábida, a partir da Estrada Nacional 379-1.
A construção da obra Serra-Mãe demorou quase tanto tempo quanto a vida do seu autor. Com efeito, a Arrábida desde cedo impressionou o jovem Sebastião da Gama — lembrava sua mãe, Ana Cardoso, que, ainda em criança, ele terá acompanhado alguém num passeio na Serra e, ao chegar, disse-lhe que fizera uma quadra: “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia.” Coincidência ou não, certo é que a ideia da serra e da maternidade se conjugariam uns anos depois para dar título a um poema e ao primeiro livro, como é certo que a Arrábida desde cedo pontuou nos versos de Sebastião da Gama — o mais antigo poema em que a menciona data de Julho de 1939 e, sob o título “Conselho”, recomenda ao irmão que fuja com a amada “p’ra serra Arrábida chamada / cuj’ alecrim belo perfume emana”... Ainda do mesmo ano, de Dezembro, é o mais antigo poema em que a serra surge como motivo — intitulado “Arrábida” (o nome da serra aparece apenas no título), a primeira estrofe diz-nos que “Portugal (...) / num local / ‘scondidinho / um canteir’ abençoado / tem, que pasma toda a gente”; na seguinte, há uma descrição da paisagem, como “linda serra, / a seus pés / estende-se o mar muito calmo / verde, azul e prateado”; a última faz a apologia da beleza da paisagem, recorrendo à contemplação e à comparação favorável à Arrábida, ao dizer que “tod’ a vista / que encerra / encanta muit’ e deslumbra; / do panorama a beleza, / que é mista / - mar e serra - / deixa Sintra na penumbra.”
*João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1652, 2025-11-26, pg. 10.


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