quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Sabores e histórias de Sesimbra

 


A identidade local ou regional também é feita do que se cozinha e se come — se dúvidas houvesse, bastaria lembrar a quantidade de receitas (de carne, de peixe ou de doçaria) que, no nome, trazem associado o nome da localidade onde foram criadas (mesmo que recorrendo ao trivial “à moda de”), busca ainda mais interessante se folhearmos o Cancioneiro Popular Português, recolhido por José Leite de Vasconcelos (1858-1941), só publicado entre 1975 e 1983, e lermos a quantidade de versos dedicados às comidas locais, por onde passam os ingredientes (ervas, legumes), os animais (terrestres, aquáticos ou voadores), o pão (e os cereais), as frutas ou as bebidas (alcoólicas e não alcoólicas) característicos de muitas localidades do país, uma recolha que vive da literatura oral e constitui um extraordinário retrato etnográfico.

A gastronomia sesimbrense ganhou um registo interessante de histórias e de receitas ao ser publicado o livro A que sabe Sesimbra - Quando os sabores diferenciam um território (Junta de Freguesia do Castelo, 2025), obra resultante da pesquisa e coordenação de Maria Manuel Gomes, que, em texto introdutório, refere: “Ao longo deste livro, convidamos os leitores a descobrirem os sabores que definiram a identidade de Sesimbra, a conhecer os produtos típicos da região, como o peixe fresco, o pão, os queijos, a doçaria, e a saborear as tradições que perduram, resistindo ao passar dos anos.” O desafio posto aos leitores sentiram-no também muitos naturais das freguesias do Castelo e de Santiago, que, como é dito em nota final, “em conversas de café, entrevistas demoradas, através das redes sociais ou até em simples contactos telefónicos, (...) abriram as portas das suas memórias”, partilhando “os segredos culinários de família, aqueles que passam de geração em geração e que dão verdadeira alma a cada prato.” 

São quinze os capítulos que organizam esta colectânea de sabores, sempre apelando para a reunião dos convivas através da expressão “à mesa”, ordenados de acordo com o momento das refeições diárias (pequeno almoço, lanche), com os ingredientes predominantes (ovos, sopas e legumes, peixe, marisco, carne, caça), com o calendário festivo (santos populares, festas religiosas), com produtos regionais (doçaria, fruta, mel, vinho) ou com situações específicas (doença), apresentando um conjunto próximo da centena e meia de receitas.

Associada às várias receitas, aparece, frequentemente, uma rápida alusão à preservação do património local, como acontece ao mencionar as papas de abóbora (“são hoje memória viva de uma gastronomia popular, marcada por ingredientes locais, sazonalidade, e uma forte ligação à terra”, representando “um património imaterial que merece ser valorizado, não apenas no seu valor nutritivo, mas também pelo testemunho que dão de um modo de vida simples, resiliente e profundamente enraizado na cultura rural portuguesa”), assim como se reaviva a memória de passados recentes, como no exemplo da batata frita do Zé Tucha (“era junto às rampas de acesso à praia ou à saída do autocarro que levava os jovens para o antigo Colégio Costa Marques que o encontrávamos a vendê-las, sendo quase impossível resistir ao cheiro que se espalhava no ar”), ou se insiste nas marcas identitárias que construíram o quotidiano, servindo de exemplo o que é dito sobre os rabos de sardinha cozidos em água e sal (“um alimento com história, feito da relação íntima entre o mar, o trabalho e a mesa”) e também sobre a farinha torrada sesimbrense (“alimento energético levado pelos pescadores para o mar ou pelos trabalhadores para o campo, servindo como reforço alimentar nos longos dias de faina”).

Por esta recolha passam também apontamentos curiosos, construtores da identidade, como: o episódio da encomenda de 660 empadas de piscos (que exigiam 2304 pássaros) pelo Marquês de Tancos em 1770 ao sesimbrense  Fonseca Pacheco; a utilização do cozido à portuguesa para a celebração de determinados momentos, como na Festa das Chagas; a crença na utilidade da mioleira de borrego com ovo (“acreditava-se que, por ser ‘comida de cérebro’, ajudava no desenvolvimento e na inteligência dos mais pequenos”); o hábito, na vila de Sesimbra, de, “ainda antes do casamento, os noivos oferecerem pratos de bolos aos vizinhos e familiares que não participariam directamente na cerimónia”; ou a prática do leilão das fogaças, em Alfarim, no dia de Natal, após a missa, cujo “valor angariado com a venda revertia para as festas locais e para obras de beneficência da Capela” local. A memória dos sabores encontra também, por vezes, um momento de sensibilidade poética, como quando se referem os malacuecos, mistura de açúcar e de muitas cores que alimentavam a delícia das crianças — “estes matacões coloridos não eram apenas guloseimas: eram pequenas alegrias de bolso, símbolos de infância e de um tempo em que um simples caramelo podia encher o dia de doçura e fantasia”...

Para que o leitor não se sinta excluído, além de ter a possibilidade de experimentar as sugestões, no final, há ainda uma dúzia de páginas em branco com o sugestivo título “Lembra-se de mais alguma receita?”, convite para que cada um entre no livro e o complete à sua maneira, listando ingredientes e prescrevendo a confecção ou lembrando histórias associadas à alimentação...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1647, 2025-11-19, pg. 9.


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