quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Cristão, pescador, sacristão e contínuo

 


“Muito obrigado, meu Jesus, por me teres criado, por me teres feito cristão, pescador, sacristão e contínuo.” Assim se inicia uma oração composta por João Maria Afonso Lopes (1914-1999), popularmente conhecido como “João Sacristão”, setubalense cujo nome consta na toponímia, texto que visou formular um “agradecimento ao Pai do Céu” por tudo aquilo que a vida lhe proporcionou e pelo que conseguiu fazer.

Este testemunho consta no livro João Sacristão - O Apóstolo das Pequenas Urgências (Paulinas Editora, 2025), de Conceição Lopes (n. 1950), filha do biografado, que justifica o epíteto com uma definição sentida do que foi o trajecto de seu pai: “A tua vida foi Missa em andamento — feita de gestos simples e profundos, como oferendas silenciosas: tempo partilhado, escuta atenta, justiça cultivada, perdão sem medida, cuidado constante e santa indignação diante da dor dos mais frágeis.”

Ao longo desta obra, o leitor está perante um misto de biografia (na medida em que se narra a vida de uma pessoa, percurso apoiado por meia centena de fotografias) e de livro de memórias (porque está presente a relação familiar entre o biografado e a autora, que recorre amiúde às suas lembranças), havendo ainda espaço para ser um escrito de louvor e de reconhecimento da estrutura familiar e da escola de valores construídas por João Lopes e por sua mulher, Tereza Oliveira (1913-1986), vinda da Murtosa.

Apesar de o título nos remeter para a possibilidade de um retrato sobre João Lopes, a verdade é que a história rapidamente é também dominada pela figura de Tereza Oliveira, assistindo o leitor mais à história da vida de um casal que se deixa envolver por uma partilha apoiada na construção da família e na assistência aos outros. De resto, a autora logo anuncia esta história a dois no texto prefacial: “A ti, leitor, desejo que estas páginas te acolham como quem entra numa casa aberta — e que, ao encontrares o Ti João Sacristão, meu pai, sintas a força da sua fé em acção, a sabedoria e coragem de Tereza, e a alegria de ambos em tornar o mundo mais justo, mais terno, mais fraterno.”

O programa de vida de João Lopes parece ter sido anunciado no nome da bateira em que, desde os sete anos, acompanhou o pai nas lides da pesca — “Vamos com Deus”, assim se chamava a embarcação, resumia a confiança na protecção perante as adversidades e apontava um caminho alicerçado na fé, algo que a criança podia associar às histórias que o pai lhe contava, vindas dos escritos bíblicos.

Depois, foi a construção do caminho: pescador com cédula aos 14 anos (1928), sacristão na igreja de S. Sebastião no mesmo ano em que Tereza começou a trabalhar como conserveira (1937), casamento (1940), nascimento dos filhos (1942-1952), participação na Juventude Marítima Católica, envolvimento em iniciativas diversas ligadas à vida religiosa da comunidade (construção das capelas de Nossa Senhora de Fátima, no Faralhão, e de S. José Operário, no Bairro Afonso Costa; edificação do nicho da Senhora do Cais; criação da Conferência Vicentina Juvenil de S. Sebastião; catequista; contributo para a retoma da celebração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Tróia), contínuo dos Serviços Municipalizados de Setúbal, entre muitas outras iniciativas em que esteve envolvido.

Nesse caminho, a sensibilidade de João Lopes levou-o a ser inovador na forma de viver a fé, como aconteceu em 1957, quando, na igreja de S. Sebastião, na Missa de Aleluia, incentivou o “quadro vivo” alusivo à Ressurreição, uma “cena de cortar a respiração”, em que participaram crianças e jovens, num trabalho de criatividade e de missão. Igual sensibilidade caracterizou o seu percurso de dádiva e de vivência da fé, manifestando-se como “presença constante junto dos últimos dos últimos: os pobres, os velhos esquecidos, as crianças sem abraço, os doentes sem visita, os excluídos da alegria e os presos na solidão do mundo e da alma”.

O olhar da autora de João Sacristão - O Apóstolo das Pequenas Urgências não se desprende nunca do olhar de filha do biografado, numa escrita em que perpassa com frequência um sentir poético, assim como a intenção de testemunhar em resposta a um desafio que o pai lhe deixou: “Querida filha Maria da Conceição, escreve o que for importante... para que um dia saibam que a minha vida só tem sentido em Deus.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1627, 2025-10-22, pg. 10.


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