Entre 10 de Dezembro de 1974 e 31 de Dezembro do ano seguinte, Manuel Vinhas (1920-1977) escreveu um diário, publicado em 1976 sob o título Profissão Exilado, com prefácio de Agostinho da Silva (de quem foi amigo) e testemunho de Luiz Pacheco (de quem foi protector).
Manuel Vinhas, empresário, teve, no final de Setembro de 1974, de fugir, depois de ter sido alertado sobre eventual prisão, motivada por alegado envolvimento nos acontecimentos políticos ocorridos dias antes. Em Madrid, em 10 de Dezembro (o primeiro registo), recorda o testemunho que lhe chegou sobre o momento em que as milícias o procuraram “de metralhadoras em punho, obrigando os meus filhos a saírem da cama de madrugada, interrogando-os com ameaças, despejando garrafas de vinho, roubando as espingardas de caça. Como não me encontraram, repetiram a ‘visita’ na noite seguinte; beberam mais vinho — o que tomei como homenagem ao meu critério selectivo — e roubaram um automóvel”. Razões para esta invasão? “Disseram-me depois que a razão de me quererem prender era a de estar incluído na lista de reféns do partido comunista, e a ‘honrosa’ escolha baseava-se em desfrutar de certa popularidade entre os que para mim trabalhavam, e ser, assim, um empecilho para manobras que se preparavam.”
É em nota prévia que o autor justifica o seu livro: “A razão principal deste livro é mostrar a vida de um homem na diversidade do quotidiano.”, observação que vai ao encontro de Agostinho da Silva, que assim conclui o seu prefácio: “quaisquer que tenham sido as dificuldades que a aventura trouxe a Manuel Vinhas, estou contente com ela: os negócios o afastavam de si próprio (...); faltava-lhe cumprir o dever primordial de nós todos: sermos o que somos.”
Com efeito, Manuel Vinhas vai dando nota dessa ‘descoberta’, que assume, como quando escreve que “nestas páginas trato de coisas da minha vida, e assim também de pessoas com quem tenho convivido” (11 de Junho) ou ao relembrar que “tomei o compromisso de me mostrar nestas páginas como sou; não para que me sejam reconhecidas qualidades, mas para evidenciar características” (5 de Agosto), acompanhando o leitor o itinerário do autor por Espanha, França e Brasil (onde já se encontra em Janeiro), primeiro no Rio de Janeiro e, depois, na Baía (Salvador e Itapoã), havendo ainda três deslocações à Europa (em Abril, Junho e Outubro).
A variedade das observações é intensa: o sentido da ligação ao mundo da arte (Vieira da Silva e Arpad, Manuel Cargaleiro, Millor Fernandes, Carybé, Júlio Pomar, entre outros), mas também da política (António de Spínola, Adriano Moreira, Américo Tomás, Marcelo Caetano, por exemplo), partilhando conversas e contactos; a preocupação com a família (em que ganha peso a distância geográfica, doendo-lhe a impossibilidade de ter estado no casamento do filho, mas também o caminho feito no sentido de a reunir, como vai acontecendo gradualmente); o rumo que a política levava em Portugal e em Angola (cuja independência defendeu desde cedo), ainda que percepcionado pelos relatos que lhe faziam chegar (vai vendo que a espera é demasiado longa e o ideal se vai perdendo — é em tom irónico e decepcionante que termina o seu diário, em 31 de Dezembro: “Estou cada dia mais atento ao balançar dos coqueiros e menos interessado na multiplicação das chaminés fabris. Obrigado, revolução. Revolução em que pus a maior esperança e me trouxe as maiores desilusões.”); as dificuldades em que viviam muitos portugueses em fuga (“Todos os dias, mas todos os dias, pessoalmente, pelo correio ou pelo telefone, contacto portugueses que partiram ou vão partir de Portugal, de Angola, de Moçambique. Uns animados, com ocupação garantida ou pecúlio transferido, outros desesperados, sem amanhã assegurado e sem terem podido salvar nada do que tinham juntado com muito trabalho e esforço.”); algumas notas curiosas, como a da razão que levou à não-permissão da marca “Coca-Cola” em Portugal, decidida pelos governantes (Salazar “não queria ceder na sua obstinada recusa dentro da natural antipatia que tinha por ‘americanices’, mas necessitava de encontrar uma boa desculpa”, construída por Jorge Jardim — “partindo de que a palavra ‘Coca’ é diminutivo que em português é sinónimo de cocaína, (...) concluía pela ilegalidade da produção em Portugal, pois, ou continha cocaína, o que não era permitido pela Lei, ou não continha e induzia o público em erro, o que a lei também não poderia autorizar.”); ou as considerações sobre a gastronomia, as festas, as caçadas, o convívio, a arte.
Os momentos de poesia povoam também este diário, como se evidencia na declaração amorosa que faz à mulher, Concha, em 8 de Dezembro (“Gostam os meus olhos das rugas do teu rosto, cicatrizes de uma vida comum”), ou no encanto decorrente de um instante, como quando vê o passar de uma gaivota (“Voa a gaivota branca, o seu destino é voar. No ar desenha arabescos que fazem sombras no mar”, 23 de Abril).
Com razão, Luiz Pacheco, crítico insuspeito, considerou que, nesta obra, não dever ser esquecido “o desfasamento temporal a que estão sujeitos os exilados”, o que condiciona a análise dos acontecimentos, ao mesmo tempo que a viu como conjunto de “páginas soberbas, pequenas aguarelas ricas de colorido e sentido de observação, (...) um livro cheio de movimento e comovente de vida.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1642, 2025-11-12, pg. 10.
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