Ao biografar o avô, Francisco Moniz Borba confessa a angústia do investigador perante a reconstituição do percurso - “Até há poucos anos, senti sempre a falta de algo que, escrito pelo seu punho, em discurso directo, nos desse a conhecer, de forma mais clara e objectiva, o que era o seu pensamento e o que na realidade o motivava nas suas iniciativas e realizações”, algo que se impusesse às entrevistas dispersas pelos jornais ou aos excertos que a imprensa divulgava dos discursos das cerimónias.
A tenacidade do biógrafo e o arquivo de família permitiram, no entanto, que a esta biografia sobre Francisco de Paula Borba chegassem dois documentos com a marca do biografado, ambos incluídos no livro como anexos: um, de 1920, “Relatório da Associação de Beneficência da Misericórdia de Setúbal relativo ao triénio 1917-18, 1918-19 e 1919-20”, que ultrapassa em muito o típico relatório circunstancial para revelar uma forma de pensamento própria relativamente aos assuntos abordados; outro, presumivelmente de 1932 ou do ano seguinte, uma “nota sobre a conferência a realizar em Évora”, em que o médico setubalense falou “sobre a assistência em geral e sobre a forma como a assistência era efectuada em Setúbal”.
O primeiro documento está imbuído da emoção e da sensibilidade do seu redactor, começando por uma apreciação crítica relativamente aos agentes da assistência social - “é quase sempre a iniciativa particular quem a alimenta e desenvolve”, mencionando, para o caso de Setúbal, uma rede de parceiros (como as organizações operárias dos Montepios de Socorros Mútuos, a Cruz Vermelha ou a Associação Vicente de Paula, entre outros) que em muito ajudaram a Associação de Beneficência da Misericórdia. Depois, relata a obra no triénio, destacando a instalação da farmácia no edifício do hospital, a construção de uma padaria num anexo do hospital para fazer face à escassez de géneros trazida pela Grande Guerra, a dignificação da casa mortuária ou as condições da lavandaria como medida de higiene pública, entre outras iniciativas. Merecem ainda realce a coerência mostrada quanto ao Asilo Barradas, defendendo que deveriam ser cumpridas as disposições da benfeitora quando havia quem propusesse, em nome da sustentabilidade financeira, a diminuição do número de assistidas, bem como, para registo da história local, a indicação do início da pneumónica em Setúbal, em Setembro de 1918, sendo os primeiros pacientes da zona de Rio Frio, um dos quais faleceu antes de chegar à enfermaria.
O segundo documento é um bom resumo do pensamento de Francisco de Paula Borba quanto à prática da medicina e da assistência, muitas vezes crítico da demagogia em torno desta questão, como acentua no início da prelecção: “Muitas são as pessoas que emitem a sua opinião, mas menos as que se preocupam com os deveres que todos devemos ter para com o nosso semelhante.” O Estado também não é poupado - “A assistência feita pelo Estado é sempre cara e muito burocrata. Falta-lhe o desinteresse material e o muito do sacerdócio indispensável para o bom exercício de uma assistência profícua e útil.” Fazendo valer circunstâncias como a riqueza da localidade, o clima, o espírito religioso e a gestão dos óbolos, enuncia um programa do que deveria ser a organização da saúde pública, desde o posto médico nas aldeias até aos hospitais centrais de Lisboa, Porto e Coimbra, passando pelos hospitais concelhios e pelos distritais, valorizando a iniciativa particular, sobretudo das Misericórdias. Para Paula Borba, a mensagem essencial estava na vontade de que “a assistência continue sendo acarinhada e protegida pelas almas benfeitoras para todos os que compreendem o sagrado dever de fazermos aos outros o que desejamos para nós.”
Não admira, assim, a quantidade de retratos emotivos que sobre Francisco de Paula Borba foram traçados aquando do seu passamento em 26 de Setembro de 1934. Esta biografia é a homenagem justa nos 150 anos do seu nascimento e o avivar da memória sobre uma figura incontornável na identidade setubalense.
* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 984, 2022-12-21, pg. 21.
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