quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

António dos Santos, tipógrafo para sempre (1)


 

“Dediquei-me a esta máquina com muito entusiasmo, conseguindo, com o correr do tempo, dela tirar os melhores resultados de impressão. Era como cruzar uma estrada cheia de obstáculos que nunca esperei percorrer, perguntando-me como consegui sobreviver do abandono a que fui jogado e parecer, afinal, igual a tantos homens que na vida tiveram feliz nascimento. Tudo isto regenerou em mim vontades de chegar longe na arte que escolhi, o ser impressor tipográfico, vendo-me como mais um sobrevivente que ao Orfanato chegou como indigente.”

Este parágrafo surge quase a meio do livro O Tipógrafo, de António dos Santos (Centro de Convívio dos Ex-Alunos do Orfanato, 2022), motivado pela grande inovação que constituiu a aquisição de uma máquina cilíndrica em segunda mão para trabalhos de grande formato, que equipou a oficina do Orfanato Municipal de Setúbal em meados da década de 1950. Mas o propósito deste parágrafo vai além dessa notícia - ele revela também um acto de fidelidade de António dos Santos relativamente à profissão que escolheu, um compromisso com a arte tipográfica, que lhe apareceu como bóia de salvação no seu percurso de criança abandonada pelos pais, mas depois acarinhada pelas instituições sociais, como foram o Asilo das Crianças Desvalidas (até aos sete anos) e o Orfanato Municipal de Setúbal (até aos 18 anos).

Talvez este parágrafo seja a justificação para o título desta obra - na verdade, a linha de leitura dominante neste livro é o percurso de tipógrafo de António dos Santos, desde essa altura até ao encerramento da empresa Corlito (Centro Técnico de Artes Gráficas), ocorrido em 2010, marca que criou e geriu com três outros sócios (Agostinho Ferreira, Alfredo Lopes e Henrique Rocha, este último também formado nas oficinas do Orfanato) ao longo de quase quatro décadas.

Ao escolher um título como este, O Tipógrafo, para contar a sua vida profissional, António dos Santos assume o seu ofício como algo de essencial, como motivação primeira, cruzando a vida com a técnica, com a produção, com o seu papel social de cidadão.

Lemos esta narrativa e assistimos à permanente sobreposição dos dois planos que a conformam - o da biografia do autor e o da história da arte tipográfica -, dando-se a primazia ao plano da profissão: de facto, o princípio da história, à semelhança de todas as biografias que seguem a ordem cronológica, aponta para a infância, mas, neste caso, a infância que é valorizada não é a do narrador António dos Santos, mas a da arte tipográfica - em duas páginas, o narrador apresenta-se para justificar a sua entrada no Orfanato e revelar a curiosidade em torno do que poderiam significar aquele cheiro da tinta e o barulho das máquinas que se ouvia. Depois, em dezena e meia de páginas, o leitor passeia pelos meandros de uma história da “tipografia através dos tempos”, recuando-se até aos anos de 800 no Japão, com entrada na história da arte tipográfica em Portugal, concluindo com referências à reedição, em 1962, da obra Manual do Tipógrafo, de Libânio da Silva (inicialmente publicada em 1908), título “indispensável para os rapazes que se inspiravam nas artes gráficas, procurando na arte de imprimir um futuro seguro”.

Só depois deste passeio pela história da tipografia é que o percurso pessoal do narrador é retomado - “Os 12 anos de idade chegaram. Era ali, naquele espaço do convento com artes de magia, que colocava no papel as palavras através dos caracteres na hora do confronto com a platina da máquina de impressão... que queria estar.” 

Tão firme decisão (ou paixão) obrigaria o jovem a uma conversa com o prefeito, momento de receio quanto à reacção que pudesse surgir como resposta, a carecer de toda a auto-confiança que o rapaz a sair da infância, ainda sem o exame da 4ª classe feito, pudesse arrecadar. O diálogo foi tão marcante que António dos Santos o relembra quase como se tivesse sido registado no momento em que aconteceu, vindo do perfeito a resposta desejada - “Impressionas-me... Está bem, vai lá falar com o Sr. Sequeira e diz-lhe que tens a minha autorização.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 989, 2023-01-11, p. 5.


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