quarta-feira, 29 de setembro de 2021

António Galrinho e a palavra sob a superfície



Poema que pretende caminhar até ao mais profundo da vida e da sua complexidade, num olhar lento e pensado sobre a nossa circunstância, A superfície das coisas (Temas Originais, 2020), de António Galrinho, ensina a camada que precisa de ser retirada, ou aberta, para que as coisas sejam. Debaixo dessa superfície, surge a vida na sua perfeição, a vida que é - ou não estivesse o poema dividido em sete partes e cada uma delas noutros sete segmentos, pormenor simbolicamente estruturante, totalizador e mágico, haja em vista a simbologia em torno do número sete...

“Reflexão” se intitula o primeiro septenário, sobre a inevitabilidade e a presença da morte em todo o percurso da vida, qualificada esta como “preciosa” e “única”, adjectivos intensos na valoração, elevando o estatuto dado à vida pelo encontro com a alma, remetida para o sentir, para o amor, formas próximas de explicar um mundo de dúvidas, embora de maneira ilusória.

O segundo conjunto toma o título do livro, num caminhar até “misterioso interior”, amplo espaço de escuridão, o poeta a tentar orientar-se pelos sentidos e a registar o seu “espanto” que não quer descrever nem definir, pois “palavras são compromissos” e “compromissos são prisões”, assim não querendo “escavar mais nas coisas”, preferindo “o suave respirar da superfície / ao pesado sufoco da profundidade”, rejeição do risco de aniquilar a doçura dos sentidos, campo que domina a terceira parte, “Lamber amor”, título sensorial, a cobrir as sensações experimentadas desde o nascimento, na relação estabelecida entre mãe e filho, passando pela descoberta e construção do amor, num trajecto animado pelas sensações, por ondas de erotismo, numa valorização trazida pelo jogo de palavras, em que se acentuam os “mistérios a descobrir”.

E entra o leitor na quarta parte, “Complexa inteligência”, poemas dominados por olhar mais científico, percurso entre o “big-bang” e o ser humano em que sucedeu “tudo    muito    devagar”, aí se incluindo a criação das ilusões e a contradição maior que o ser humano criou, ignorando a demora, acelerando o mundo - “Eagoratudosepassatãodepressa / Tão difícil de parar”, distâncias graficamente assinaladas por maior separação entre as palavras quando se fala da vagareza e pela sua junção quando se evoca a rapidez. Pressente-se assim que as construções que têm a mão humana poderão não ser o melhor - e, por isso, o grupo “Sérias ideologias” se reveste de alguma disforia ao ironizar sobre as ideologias e as suas consequências, nefastas pelas tragédias provocadas em seu nome, quase interrogando sobre o papel que ao homem possa estar reservado...

Contudo, as duas últimas partes carregam alguma esperança, proporcionando a afirmação do poeta nas suas “Divagações” de independência e de se sentir alheio à máquina que trucida o tempo, assumindo um caminho próprio - “Fiz de mim uma construção / onde gosto de estar // Nela habito e nela sonho // Se essa construção deixar de me agradar / Erguerei outra”. É o poeta no seu paraíso, no seu jardim das delícias, jogando consigo próprio, aceitando-se e recusando-se, em permanente questionamento.

Todos estes passos são necessários para atingir o final em “Pacificadoras palavras”, surgindo nos sete poemas essa remissão do poeta para um mundo de mais silêncio, com palavras “sem som e sem forma”, que não prendam, buscando equilíbrio e paz. É nesta derradeira parte que o poeta se afirma, distanciando-se do banal e aproximando-se do mundo através do utensílio com que trabalha, a palavra - “Estou aberto para o mundo / Através dos meus sentidos / Ao mundo me conecto através deles / E das palavras que dele dizem // Ligar-me às palavras / E por elas ligar-me a tudo / Aí reside a grande magia”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 703, 2021-09-29, p. 10

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