quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Bocage pelo olhar de Sebastião da Gama



Em 15 de Setembro de 1950, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, coube a Sebastião da Gama falar sobre o aniversariante do dia, escolhendo para título “Lugar de Bocage na nossa poesia de amor”, texto que germinava desde finais de 1948 - com efeito, nos seus apontamentos, consta que o esquema da palestra datava de 15 de Dezembro de 1948 e que a sua redacção ocorreu entre Maio e Junho de 1950 na Arrábida. Felizmente, o conteúdo dessa apresentação foi escrito, permitindo que ela fosse repetida em mais duas ocasiões - em Estremoz, em 13 de Abril de 1951, e em Vila Viçosa, em 1 de Junho do mesmo ano. Outra vantagem de a palestra ter sido lida foi a sua publicação em 1953 na Revista da Faculdade de Letras como forma de homenagear Sebastião da Gama, que falecera no ano anterior. O texto dessa conferência foi depois incluído numa antologia de estudos bocagianos devida à Junta Distrital de Setúbal, em 1965, e na obra do poeta azeitonense O segredo é amar (1969), recolha de textos em prosa a cargo de Matilde Rosa Araújo. A mais recente edição, em volume autónomo, esteve a cargo da Associação Cultural Sebastião da Gama, em 2016.

“Uma palestra sobre um poeta é afinal um pretextozinho para conviver com ele, uma ocasião de melhor o entender”. Assim justificava o jovem Sebastião da Gama, então com 26 anos, a sua presença perante o auditório. E continuava: “Bocage, a cada nova leitura, impõe-se-me mais vivo, mais avultado, mais poeta”. Esta confissão de leitor leva o orador a desconfiar daqueles que muito teorizam sobre Bocage, quando, afinal, o necessário é que a sua obra seja lida. E a ocasião para um convite à leitura é aproveitada de forma apelativa: “Ó leitores possíveis que me escutais, abri o Bocage, lede serenamente o Bocage, lede-o atentamente, honestamente, e logo vereis que não era preciso vir aqui.” Sebastião da Gama acentuará em toda a conferência o seu estatuto de leitor - veja-se o que diz, quando começa a falar de Camões, início da abordagem do tema do amor na obra bocagiana: “Apetece-me juntar aos lugares-comuns desta conversa mais um; e um enormíssimo, um comuníssimo lugar-comum: Luís de Camões foi o maior poeta português. Sabem lá os senhores com que prazer digo esta verdade?... Digo-a com o prazer que me vem de a não ter apanhado no ar, de a ter bebido na fonte. Foi lendo e relendo Camões que ganhei o direito de proclamá-la.”

A temática do amor na literatura portuguesa leva Sebastião da Gama a um percurso que vem desde a lírica galego-portuguesa até ao século XX, num total de dezoito autores, com referências a alguns estrangeiros, revelando-se Bocage, na poesia amorosa, como o mais conseguido amante - “Eis o que o opõe terminantemente a Camões: o contentamento de amar. E daí o ar festivo de tantos dos seus versos de amor.” E, a rematar: “Não há pose na poesia de Bocage: aquilo que ali está é aquilo que foi. (...) Bocage é aquele poeta que diz de frente o que tem a dizer. (...) Seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a descermos à essência de cada um.”

Lugar de Bocage na nossa poesia de amor, de Sebastião da Gama, mantém ainda hoje a densidade crítica e a frescura do leitor compulsivo que ele era. A aproximação ao ouvinte-leitor afirma-se também pelo que o conferencista põe de si mesmo na abordagem, levando-nos a olhar Bocage de uma forma artística, mas sobretudo humana.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 693, 2021-09-15, p. 10.


1 comentário:

Arnaldo Ruaz disse...

Não conheço toda a obra de Bocage mas daquilo que conheço concluo que ele foi um lírico, sobretudo no que diz respeito ao amor sexual. Acho magnífica a interpretação que Sebastião da Gama faz da sua poesia.