Data de 20 de Março de 1867 a longa carta que António Feliciano de Castilho (1800-1875) dirigiu aos “Presidente e Vereadores da Câmara, Notáveis e Habitantes em geral da ilustre Cidade de Setúbal”, tendo como motivo a construção de um monumento que lembrasse Bocage na sua terra-natal. Homenagear o vate sadino cerca de seis décadas após o seu falecimento ganhara entusiasmo depois de, em 1864, Manuel Maria Portela ter conseguido pôr lápide na casa onde teria nascido Bocage, acto que aproximou e entusiasmou António Feliciano de Castilho.
O primeiro motivo dessa carta é o agradecimento do subscritor por a Câmara o ter designado presidente honorário da comissão promotora do evento em honra do “Cisne do Sado”, satisfeito porque “os Shakespeares, os Molières, os Schillers, os Cervantes, os Camões e os Bocages pertencem a este número de eleitos” merecedores de serem imortalizados pelo cinzel.
A valorização de Bocage prossegue pela aproximação a Camões - se este “regulariza e fixa, com o adjutório do latim, do italiano e do espanhol, a arte do escrever claro e culto”, aquele, “outro Messias literário, ofusca, dispersa, quase aniquila de todo a sinagoga arcádica.” Se ambos recorrem à milícia para servir a Pátria, vão para o Oriente, são encarcerados, assistem à crise social e morrem na miséria, também as vivências privadas são paralelas: “Amores: qual dos dois levará nisto a palma ao outro? Nem um nem outro é Petrarca para uma só Laura ou Dante para uma só Beatriz”, pois “não amam a uma formosa, enleva-os a formosura” e “a feminidade, sob qualquer forma ou nome, é o seu íman perpétuo.”
Feliciano de Castilho antecipa depois a festa que Setúbal promoverá aquando da inauguração do monumento a Bocage: “Daqui me estou eu deliciando a antever essa festa nacional! Toda a vossa cidade de gala; a capital visitando-a com inveja; a praça alcatifada de loiros e murtas; a música alvoroçando ainda mais os corações; os edifícios colgados de púrpura; os representantes do município em toda a pompa oficial e, a convite dele, as damas indo coroar de flores seu escravo agora rei.” O entusiasmo leva-o a sugerir a realização de outeiros poéticos, retoma de prática do tempo de Bocage, e a insistir na construção de uma “escola-asilo”, verdadeiro monumento ao poeta, o que levaria Setúbal a ser “uma cidade famosa”.
Uma semana depois, em 27 de Março, o executivo camarário respondia: “É esplêndida a maneira como V. Exª expressa os seus elevados conceitos; será modesta a nossa resposta, porque modestos são os nossos recursos.” No entanto, a mensagem de Castilho calara fundo nos decisores locais: “Aquela carta, Exmo. Senhor, devera ser lida em assembleia aonde concorresse o maior número possível dos conterrâneos de Bocage, se não fosse ainda mais útil dá-la à estampa e distribuí-la com profusão para que fique bem gravada na inteligência e no coração de todos e seja um poderoso talismã que avive mais e mais neste povo o amor às instituições humanitárias”. Dois dias depois, Castilho respondia a autorizar a publicação, numa curta carta em que também defendia o método de ensino que criara, apesar de saber que muitos o desprestigiavam.
As três missivas foram publicadas nesse mesmo ano sob o título Cartas do Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho e da Câmara Municipal de Setúbal a respeito do Monumento a Bocage, impressas na Tipografia de José Augusto Rocha, em Setúbal.
O monumento a Bocage, na praça que já tinha o seu nome, foi inaugurado em 21 de Dezembro de 1871, com festejos, muito público e comitiva grande, que integrava nomes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 688, 2021-09-08, p. 5
Sem comentários:
Enviar um comentário