Foi à imagem do palimpsesto que José Augusto Seabra (1937-2004) recorreu, em A Luz de Creta (2000), para estabelecer a relação entre a ilha grega, as referências pessoais acumuladas sobre a ilha ao longo da vida e a escrita diarística que constitui o livro, num tempo de seis anos, correspondentes a outras tantas estadas na ilha, no período entre 1986 e 1997.
Logo à partida, o livro chama a atenção para uma determinada forma de escrita, pois apresenta, abaixo do título, a indicação de “Diário Poético”, formulação que remete para géneros e para modalidades específicas, afigurando-se como encontro de um continuum na descontinuidade da vida. Desta mesma relação dá conta Seabra, ao registar no primeiro texto (“A Ilha”): “De viagem em viagem à ilha, foi-se adrede escrevendo um texto intermitente. Ele ganhou pouco a pouco (...) a forma de uma espécie de diário de mareante, de retorno em retorno a um porto”.
Nos vários registos, o diaristafaz a colagem da história cultural nas suas múltiplas referências a Creta, num texto de reencontro do autor com o seu percurso e com a sua obra, num desvendar das atracções que de Creta lhe provocavam o fascínio, permanentemente mantido e cultivado desde a adolescência, tempo de leitura e de encontro com Ulisses e com o Minotauro (“o mito fascinara-me e perturbara-me de raiz”), passando pela marca da resistência de que, na Segunda Guerra Mundial, Creta se revestiu, valores fortalecidos pela leitura de Kazantzakis (“intérprete inesquecível da identidade do povo cretense”) e pela música e conhecimento pessoal de Theodorakis (que Seabra conheceu no exílio e com quem participou em manifestação contra a ditadura grega), não esquecendo ainda o eco trazido por Jorge de Sena no poema “Em Creta, com o Minotauro”, evocativo do expatriado em absoluto e de um tempo de paz e de reencontro.
Nas palavras de Seabra, datadas de 31 de Julho de 1989, este livro será “um tributo pago regularmente a Cronos, que aqui nos devora os dias e as noites”, um conjunto de “instantâneos breves, com a obsessão de sorver o tempo todo, em momentos raros de aproximação da plenitude: fóricos, disfóricos”, um acto que se impõe – “recomeçar este diário intermitente, de Creta em Creta reencontrada”, isto é, afirmando a possibilidade de o tempo ter intermitências sem ser repetitivo.
As referências a autores ocorrem em abundância, sejam eles portugueses (Pessoa, Camões, Almada, António Ferreira), do mundo clássico (Homero, Sófocles, Ésquilo), gregos (Cavafis, Seferis, Kazantzakis) ou contemporâneos (Barthes, Darío, Steiner, Yourcenar, entre muitos outros), ao mesmo tempo que desfila uma galeria de personagens míticas (Zeus, Europa, Ariadna, Dédalo, Minos, Afrodite, Apolo, Diónisos, Édipo, Antígona, Cronos), num percurso que pretende lidar com uma ideia universal de cultura e de pensamento a partir de uma ilha que terá sido a mãe da civilização.
Mesmo refugiado na paz de Creta, o diarista não se ausenta do mundo e segue o seu romance - foi durante estadas na ilha que aconteceram factos como a liderança de Walesa na Polónia, as consequências da queda do Muro de Berlim, os conflitos com os albaneses refugiados, a destituição de Gorbatchov, entre outros.
As suas interrogações remetem sempre para o futuro, num misto de dúvida, mesmo quando a reflexão paira sobre o que lhe está próximo. No entanto, quanto ao passado, uma certeza é inabalável, resultante de um sentir humanista, que valoriza a relação do homem profundamente ligado à cultura, vector muito acentuado em Seabra: “A civilização é, de facto, o que perdura, através das barbáries”.
* J.R.R. "500 palavras". O Setubalense: nº 707, 2021-10-06, p. 14.
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