“Há vozes fluidas como veios de água que vão abrindo sulcos no coração, logo ribeiros esguios onde apetece mergulhar os pés, depois correntes caudalosas que arrastam tudo pelo caminho. A voz daquela menina, por acaso minha irmã, provinha de uma nascente encorpada, depressa se transformava num rio que galgava margens e deixava um lastro fértil para semear emoções. ‘É um tesouro fora do comum’, dizia o empresário João Gomes Varela, contente pela aquisição... ‘um achado muito raro’, comentava Giuseppe Scolari, cravista, compositor e então maestro da orquestra, de cada vez que ela ensaiava.”
Quem assim vai contando é Isabel de Aguiar, dois anos mais velha do que a irmã, Luísa. O testemunho não existe, na verdade, pois a Isabel que isto diz é uma personagem de ficção, criada por Maria Helena Ventura para ser a narradora de Minha Irmã Luísa Todi, romance histórico em torno da biografia da diva setubalense de Setecentos (Edições Saída de Emergência, 2019), livro que, segundo a autora, mais não pretende ser do que “uns grãos de areia, para lembrar a erosão do tempo”, como afirma na dedicatória.
O leitor pode hoje mergulhar nesse romance sobre Luísa Todi (1753-1833), que só ganhará no conhecimento das circunstâncias e nas emoções. E, para recriar mais um pouco o ambiente, vale a pena ouvir o notável trabalho que é o cd As árias de Luísa Todi, devido à soprano Joana Seara e ao grupo “Os Músicos do Tejo”, editado em 2010, onde constam excertos de composições de Perez (1711-1779), Piccinni (1728-1800), Gassman (1729-1774), Sachinni (1731-1786), Ottani (1736-1827) e Paisiello (1740-1816). O que une estes nomes é o facto de serem contemporâneos da cantora setubalense e de ela mesma lhes ter dado voz em palcos tão diversos quanto Lisboa (1770), Porto (1772), Londres e Paris (1778), Turim (1781), Bérgamo (1791) e Nápoles (1797). O ouvinte sentirá, assim, um pouco do que seria a magia que Luísa Todi derramava naquela conjugação de canto e de representação que arrastou multidões (em 1794, ao despedir-se do público madrileno, com a lotação do Teatro de Los Caños esgotada, as portas tiveram de ser abertas porque o público que estava fora do Teatro exigiu ouvir a celebridade).
Entre o êxito e o sofrimento
Nascida em 9 de Janeiro de 1753, na Rua de Coina (actual Rua da Brasileira), em Setúbal, Luísa Rosa de Aguiar foi baptizada em 30 desse mês na paróquia da Anunciada e, ainda criança, foi viver para Lisboa com a família, participando aos 15 anos numa representação de Molière, no Bairro Alto, embora a sua estreia como cantora tenha ocorrido em 1770 (um ano depois de ter casado com o violinista Francesco Todi) na ópera Il Viaggiattore Ridicolo, de Scolari, em que actuavam também as suas irmãs Cecília e Isabel. O seu fulgurante trajecto a partir de 1775 levou-a a uma carreira internacional, com actuações nos mais cotados palcos - além dos já indicados, em Berlim, Turim, Varsóvia, Veneza, Viena, Sampetersburgo e Madrid, entre outros - e convivência com as cortes europeias, chegando a ser mestre de música das princesas da Rússia por iniciativa de Catarina II.
A vida longa de Luísa Todi, se teve um considerável período de glória, teve também não menos longo tempo de intenso sofrimento. Com a entrada do novo século, a cantora enviuvou (1803) e, vivendo no Porto, ao fugir da invasão napoleónica de 1809, na travessia do Douro, perdeu todos os bens de valor que conseguira transportar. A viver em Lisboa desde 1811, começaria a cegar em 1813, perdendo completamente a visão por 1822. Em 1833, em 1 de Outubro, desaparecia, no dizer de Mário Moreau (1926-2020), um dos seus mais brilhantes estudiosos, a “maior cantora de todo o século XVIII”. Por coincidência, o primeiro de Outubro passou, a partir de 1975, por iniciativa do International Music Council, a ser o Dia Mundial da Música...
Ler a vida de Luísa Todi
De 1872 é a primeira biografia sobre Luísa Todi, subscrita por José Ribeiro Guimarães, publicada com carácter de beneficência, pois o produto da venda revertia “a favor das bisnetas da cantora, filhas de Francisco Xavier Todi”. No ano seguinte, seria Joaquim de Vasconcelos a assinar Luísa Todi - Estudo crítico (reeditado em 1929), investigação que percorreu muitos dos jornais estrangeiros que se referiram à cantora. Em 1943, Mário de Sampaio Ribeiro biografava-a também, tema em que voltou a pegar quando, em 9 de Janeiro de 1957, palestrou em Setúbal a propósito do 204º aniversário da cantora. O ano de 1967 trouxe A vida fascinante de Luísa Todi pela mão de Maria Isabel Mendonça Soares, que, em 2007, voltaria a contar a vida da diva na obra 10 Grandes Portugueses. De 2002 é, talvez o mais completo estudo, Luísa Todi, assinado por Mário Moreau, assunto que já abordara em Cantores de ópera portugueses, publicado em 1981. Aquando do 250º aniversário da cantora, em 2003, Victor Luís Eleutério aumentou a bibliografia todiana com a obra Luiza Todi - A voz que vem de longe, com vasta documentação iconográfica. Em 2011, na colecção juvenil “Chamo-me”, apareceu o livro dedicado a Luísa Todi, redigido por Nuno Quintas, uma biografia contada na primeira pessoa.
* João Reis Ribeiro. In Sem Mais: nº 1110, 2021-01-15, p. 10.