“Agora que cheguei à idade que ele tinha quando as escreveu, é possível que consiga ter a coragem de copiar delas o suficiente para que a sua figura sobressaia das sombras.” Olhar uma caixa de madeira, cujo interior guarda as cartas enviadas pelo pai nos seus últimos oito anos de vida, leva John dos Passos (1896-1970) a iniciar Os melhores tempos, memórias que finalizam na década de 1930, publicadas em 1966, traduzidas para português em 1968 (Editorial Íbis).
A história familiar parte da linha paterna - John Randolph dos Passos (1844-1917), abolicionista, advogado de sucesso em Nova Iorque, filho de Manuel Joaquim dos Passos, madeirense nascido em 1812, que “teve de abandonar Ponta do Sol muito à pressa, em consequência de um incidente relacionado com um crime de apunhalamento”, rumo a Baltimore, onde “trabalhou de chumeco”, passando depois para Filadélfia, aí constituindo família. Talvez a emigração do avô se devesse à fuga ao serviço militar e não ao que o neto invoca...
A primeira visita de Dos Passos à Madeira, em 1905, foi para se “restabelecer da operação a uma hérnia”. Instalado no Hotel Reids, o pequeno entregou-se “à tarefa de apanhar lagartixas para as domesticar”. Do Funchal, registou uma mistura de cheiros, entre o odor oleoso dos patins dos condutores dos transportes puxados por bois e o aroma das rosas e heliotrópios sentido nos “carros de vime em que deslizava pela íngreme calçada empedrada”.
A sua ligação à Europa intensificou-se durante a juventude e, na Grande Guerra, momento em que “a propaganda franco-britânica batia os tambores pela intervenção americana” e “odiar os alemães se tornou uma mania”, quis voluntariar-se para os serviços de ambulância na Frente, o que aconteceu em 1917, após o falecimento do pai, servindo em França e Itália. Por final da década de 1910, esteve em Lisboa - “Saí do país com uma impressão mais favorável da pintura portuguesa primitiva do que do governo republicano. Achei os políticos eloquentes e evasivos. O seu ar de benevolência ineficaz pôs-me o pêlo ao contrário.” Esta opinião poderia ser exagerada, mas Dos Passos justifica: “aos vinte e três anos, é-se intolerante”.
Em 1921, na companhia de Cummings, está de novo na Europa, numa viagem em que tentou decifrar Os Lusíadas e visitou os Açores e a Madeira. Portugal não entusiasmou Cummings: em Lisboa, “sentia repulsa pela exuberância do estilo manuelino” e disse preferir Rembrandt aos painéis de Nuno Gonçalves; em Coimbra, manifestou “uma fobia ancestral contra o catolicismo”, pois “os estudantes pareciam-lhe todos jesuítas à paisana”; no Porto, o tempo foi passado em busca de um dentista. Depois, Dos Passos viajou até ao Próximo Oriente, relato com dose substancial de aventura, que pintará também outros registos de viagem como a que fez pela Rússia.
Desde cedo, Dos Passos conviveu com os mais importantes autores, muitos dos quais, como Twain, Jiménez, Aragon, Valle Inclán, Machado ou Joyce, viria a conhecer, sendo o convívio com Cummings, Fitzgerald e Hemingway tema forte nestas memórias, aliando sempre o gosto de falar sobre eles, da sua relação com as obras lidas, do seu encarar o mundo através da arte, fosse pela escrita ou pela pintura. Importante também é o percurso ideológico, simultâneo com o seu conhecimento do mundo - a convicção contra o belicismo, a defesa de Sacco e Vanzetti, a desconfiança do regime soviético.
Em Os melhores tempos, o leitor acompanha intensamente o entusiasmo da juventude nas grandes causas assim como o percurso de uma Europa em busca da sua (re)construção.
*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 546, 2021-01-27, p. 9.
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