“As árvores têm uma raiz na terra, mas as nossas raízes espalham-se pelas terras dos nossos avós. As raízes de Amália Rodrigues são beirãs.” Assim fideliza Rui Pelejão as origens da mais conhecida fadista portuguesa no seu contributo para o livro Amália - A raiz e a voz, organizado por Arnaldo Saraiva, editado pelo Jornal do Fundão (2020). Essa fidelização surge atestada com cópia do registo de baptismo de Amália, cerimónia realizada na Matriz fundanense em 6 de Julho de 1921, quando a criança rondava o final do primeiro ano de vida - envolto em mistério, o dia rigoroso do seu nascimento derivava de um calendário medido pela agricultura, pois que sua avó dizia ter a neta nascido “no tempo das cerejas”, enigma que, na altura dos exames, Amália desvendou ser 23 de Julho de 1920.
Arnaldo Saraiva, na abertura, lembra que, em Amália, “o seu canto fundo transporta e sublima como nenhum outro as dores ou as fugazes alegrias do povo português e de uma mulher do povo português; mas transporta e sublima também as dores e alegrias de existir, os dramas e os amores da humanidade”, razões intensas para a leitura ir ao encontro de um retrato multifacetado.
Fortemente ilustrada, graficamente apelativa, estamos perante uma bela antologia de memórias, em que a ligação afectuosa de Amália às terras do Fundão e a sua identidade com o fado são grandemente lembradas. Contributo importante advém do arquivo do jornal, recorrendo a notícias sobre as suas actuações ou visitas à região ou a textos ali publicados sobre a cantora - de que se destaca um, assinado por David Mourão-Ferreira em 1994, que, a dado momento, poetiza: “Amália. Um ‘heterónimo’ de Portugal, o ‘heterónimo’ feminino de Portugal. Do que em Portugal existe de profundo e de fluente, de fixado e de erradio, de raiz e de flor, de tronco e de brisa. De rio, de escarpa, de céu límpido ou nublado, de montanha e de vale, de lonjura de planície, de abraço do oceano.”
Uma outra componente surge pelas palavras de entrevistas de Amália - à RTP, em conversa conduzida por Arnaldo Saraiva, emitida em 1987, agora passada a escrito, e ao Jornal do Fundão (em 1991 e em 1992), onde há momentos fortes, pela emoção ou pelo saber - em 1987, sobre os seus poemas: “Eu, como sou um bocado cantigareira, tenho a mania, como canto cantigas, tenho um sentido de ritmo, tenho uma medida das frases para os fados, e ponho-me a escrevinhar”; em 1991, sobre o fado: “Tenho a impressão que o fado me tem dado de comer e me tem comido. Sou o prato-forte do fado. Tenho tudo o que ele quer: desencanto, desilusão, falta de ambição, de interesse (...). O fado quer isto e eu tenho.”; em 1992, sobre o seu canto: “A minha maneira de cantar talvez tenha sido influenciada pela Beira Baixa. (...) Acho que a Beira Baixa é a terra onde há melhor música de folclore. É quase ao nível do Alentejo, está um bocadinho mais para cima. Como o Minho é a única região de Portugal onde se canta e se é alegre. O sul é mais tristonho.”
Parte significativa é ainda a de testemunhos sobre Amália, alguns elaborados para este livro, assinados por nomes muito diversos do mundo da crítica, da história ou da música. De Pedro Abrunhosa, um dos depoentes, fica uma frase que vale uma obra: “Amália, de uma assentada, desconfinou Camões da estatuária do Estado Novo e o Fado da letalidade endogâmica da tradição.”
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 523, 2020-12-09, pg. 9.
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