Num tempo em que se assinala a
memória do que foi a Grande Guerra de 1914-1918, aquela que depois se pensou
ser a última de todas as guerras (!!!), é bom que essa evocação não passe
apenas pelas datas dos feitos militares, mas que relembre sobretudo os homens e
as mulheres que nela intervieram de forma directa ou indirecta. Tão importante
como saber as causas e as consequências será conhecer quem foram os heróis que
por lá passaram, durante anos remetidos para o anonimato, lembrados num culto
(importante, mas esquecendo os nomes) ao “soldado desconhecido”, e muito pouco
recordados como personagens reais de um não menos real sofrimento, adviesse ele
das condições da guerra, das instabilidades causadas nas relações familiares,
da dor sentida, fosse ela física ou psicológica.
Setúbal, felizmente, entrou
desde cedo no percurso da memória, ao ter, logo em 1924 (ano da criação da Liga
dos Combatentes da Grande Guerra), a sua sub-agência desta organização, aqui
presidida pelo médico e professor Cipriano Mendes Dórdio, ao conseguir, sete
anos depois, em 1931, erigir o monumento de memória aos combatentes e ao ter
implantado na toponímia referências a esse acontecimento avassalador, pela
surpresa e pelo desgaste, que foi a Grande Guerra.
Diogo Ferreira e Pedro Marquês
de Sousa meteram mãos à obra para nos dizer quem foram os combatentes do
concelho de Setúbal, por onde andaram, o que sofreram, ao publicarem a obra Os Combatentes do Concelho de Setúbal na
Grande Guerra em França (1917-1918), editado em Julho pelo Núcleo de
Setúbal da Liga dos Combatentes. Trata-se de uma obra indispensável para a
cidadania e para a memória setubalenses, apresentada em quatro importantes
grupos: a contextualização do que foi a Grande Guerra e a forma como Portugal
nela se integrou; os registos biográficos dos cerca de 210 combatentes de
Setúbal e de Azeitão que partiram rumo à Flandres (alguns tendo combatido
também em África na primeira fase do conflito); o cenário da hierarquia e
organização militar em que os setubalenses intervieram, com indicação das
missões que lhes estavam cometidas; a história e o papel da Liga dos
Combatentes da Grande Guerra em Setúbal nos seus sete anos iniciais (até à
inauguração do monumento aos Combatentes).
Passa o leitor por cerca de
duas centenas de páginas em que se desenrola o filme da guerra, com os seus
actos em grupo, e em que se convive com cada um dos combatentes naquilo que
pode ser dado pelas fichas militares e do arquivo da própria Liga, sendo
possível encontrar: irmãos em combate (os Conte-Turpia e os Lápido Lourenço,
por exemplo); “um dos setubalenses que mais tempo serviu na Grande Guerra”
(Barbosa Cardoso); um combatente que se apaixonou por uma francesa (Morais
Teixeira); “um dos setubalenses com maior número de louvores por ocasião da
Grande Guerra” (Barros Carmona); outro que integrou a histórica e lendária
Brigada do Minho (Centeno Júnior); os vários que combateram La Lys em 9 de
Abril de 1918; os vários que foram feitos prisioneiros na sequência de La Lys
(indo, sobretudo, para os campos de Friedrichsfeld, Munster II e Dulmen); os
muitos que foram punidos (por se apoderarem ilegitimamente de bens alheios, por
jogarem a dinheiro, por não cumprimento do regulamento militar, por desrespeito
à hierarquia, por falsificação de documentos, etc.); os condecorados pelo
estatuto de herói (como foi o caso de Manuel Bernardino de Almeida, por
“socorrer a população, tirando dos escombros os mortos e os feridos”); um
combatente poeta e fadista, que também divertia os camaradas, como foi o caso
de Vicente José da Silva Penim.
Para lá de toda esta
diversidade, é o contacto também com a morte, com aqueles que não puderam
trazer a memória mas na memória ficaram - o actual concelho de Setúbal perdeu 9
homens durante esse conflito e, se associarmos os 6 do actual concelho de
Palmela (que, na altura, integrava o concelho de Setúbal), o número passa para
15, assim ocupando o segundo lugar no número de mortos e desaparecidos dos
concelhos que compõem o distrito de Setúbal, depois de Santiago do Cacém, que
teve 12 mortos e 5 desaparecidos.
Esta obra de Diogo Ferreira e
de Pedro Marquês de Sousa é de leitura obrigatória para um encontro com a
história e para vermos os heróis que a História sacrificou, muitos deles
ligados a famílias que ainda hoje existem. A memória da Grande Guerra foi
durante muito tempo esquecida em Portugal por variadas razões, mas, a partir
deste centenário, temos a obrigação moral e cívica de não deixar que esse
esquecimento impere, sendo esta obra um bom contributo para isso. Recordo que,
há duas décadas, em Novembro de 1998, em França, o jornal “Le Monde” procedeu a
um inquérito sobre os acontecimentos mais marcantes do século XX e a Guerra de
1914-1918 aparecia em quarto lugar, depois da 2ª Guerra Mundial, do Maio de
1968 e da queda do regime soviético; no mesmo inquérito, os jovens entre os 15
e os 19 anos punham a Primeira Grande Guerra em segundo lugar. É verdade que
não haverá família francesa que não tenha tido familiar a participar nessa
guerra, mas isso só não pode justificar essa intensidade de memória...
De Portugal foram mobilizados
mais de 105 mil homens para o teatro de operações na Europa e em África; mais
de 55 mil integraram a linha de combate na Flandres; tivemos quase 8 mil
mortos, outros tantos feridos, outros tantos prisioneiros e cerca de 6 mil
desaparecidos. Não serão estes números importantes para a nossa memória
colectiva? É também por isso que o livro de Diogo Ferreira e de Pedro Marquês
de Sousa, ao assinalar a epopeia de todas estas pessoas e das que lhes
estiveram ligadas, em linguagem acessível e sem deixar que a questão das
estratégias e da história militar viva sem os homens que lhe deram corpo,
merece leitura atenta e lugar importante na história local setubalense.
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