sábado, 11 de novembro de 2017

Maximiano Gonçalves: Poesia que ouve palavras



Para que outro fim existem as palavras senão para serem ouvidas, seja pelos ouvidos, seja pelo olhar? A pergunta pode parecer supérflua por incidir sobre uma coisa óbvia, mas são justamente as coisas evidentes aquelas sobre que menos se diz.
Vem isto ao caso por um título como Ouvir a Palavra (Lisboa: Letras Paralelas, 2017), livro de poemas de Maximiano Gonçalves (n. 1942), conjunto de quatro dezenas de textos com um prefácio assinado por Eugénio Lisboa e uma nota inicial do autor. Os dois textos introdutórios assinalam as linhas gerais de que se faz este livro: por um lado, Lisboa chama a atenção para o primeiro poema, “Ode à Palavra”, que considera uma “belíssima e muito explícita ars poetica”, contendo esse texto “toda uma filosofia sobre o valor da palavra, no texto literário, em geral, e no texto poético, em particular”. E, ao olharmos o poema, logo somos convidados, melhor, interpelados para esta captação da palavra através de uma festa dos sentidos - “Ao leres, / Ouve a Palavra em silêncio, / Olha o corpo que tem / E prova-lhe o sabor, / Enche dela a tua boca.” Ouvir, olhar, gostar. Poderíamos até adivinhar o tactear. Esta Palavra, grafada com maiúscula, apresenta-se com identidade, dela se falando com palavras (desta vez, com minúscula). A “Palavra” contém a sua energia no que está para lá do soletrável, do dizível, e apresenta-se como “chave-mestra dos assombros”, como “ressonância do Mundo”.
Grandioso é este poder metafórico que Maximiano Gonçalves atribui à palavra poética, aquela que está muito para lá do dicionário, do uso corrente, prenhe de “assombro”, de revelação, de fantasia, de mundo a descobrir, albergando todos os ecos do Universo, em combinação musical, algo que nos remete para o entendimento bíblico daquela frase, também ela assombrosa e totalizadora, “no princípio, era o Verbo”. Por isso mesmo, o poema termina de forma reincidente e insistente, quase pleonástica, ao sublinhar: “Ouve a Palavra. / Ao leres, ouve a Palavra.”
Percorre o leitor este livro e sempre se encontra com palavras da enorme família do sentido que nos dá esse prazer que é o ouvir, seja na forma do que nos chega, seja na coragem do “belo esforço das palavras”, seja na co-relação com o “falar”, seja num acto tão aritmético quanto o “perguntar e responder”, seja na faceta musical de “som da eternidade” ou do “ouvinte do silêncio”, seja na sua forma de esplendor em que “a luz de cada palavra / passa a outra palavra”. Percorre o leitor este livro e vê homenagem à poesia e a poetas, sobretudo a um chamado Fernando Pessoa de quem se diz “que quase tudo escreveu”, porque foi um poeta que, mais do que ver, ensinou a olhar, esse acto de interiorização que sucede ao ver!... Percorre o leitor este livro e, mesmo num poema com o fascínio do visual como aquele que se intitula “À mulher que dançava, sozinha, na Praia”, o que se ouve é música, porque, como é dito noutro poema, “ouvimos o olhar”. A palavra só contém sentidos se for lida, se for ouvida, isto é, se houver uma coesão sensorial, se nos deixarmos invadir pela sua força, que, no poema, é mais intensa, pois, como disse José Fernandes Fafe, “Todo o poema - por mais dramático, áspero, dissonante... - infiltra-nos pelos poros a música, e o silêncio, do rumor de fonte da Harmonia.” (Curriculum Vitae. S/L: Editorial Fragmentos, 1993, pp. 14-15)
Para regressar ainda ao que diz Eugénio Lisboa no seu prefácio a este Ouvir a Palavra, o poeta milita em busca da poesia, “porque ela - a poesia - está em todo o lado, se bem a procurarmos”. Uma forma imediata de referir esta totalidade a ser desvendada que um outro poeta, Luís Filipe Castro Mendes (que para aqui convoco porque também ele conjuga a palavra com a harmonia dos sons), assim versou: “O poema / (…) / são palavras que caem, abatidas pela vida, / e que esperam por nós para se erguerem, / como se a música assim pudesse permanecer.” (Outro Ulisses regressa a casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016, pg. 63)
O outro texto introdutório a este livro é de Maximiano Gonçalves, que, não ultrapassando a simplicidade de um título como “Nota inicial”, refere uma tónica que vai sobrepor-se em vários dos seus poemas. Por entre os agradecimentos, o autor menciona que todas as suas palavras são dedicadas aos que lhe ensinaram “as Letras e a alegria de Pensar”, aqueles que lhe abriram o caminho em que “a dignidade do homem que se entende como cidadão (...) o obriga a lutar por uma Sociedade Nova”.
Há, assim, a presença da convicção, da afirmação, do compromisso. E, neste caminho, Ouvir a Palavra contém espaço para a denúncia (“A espécie única”), para a ironia (“Index Librorum Prohibitorum”), para a reflexão sobre o menos bom no homem (“Há duas classes de homens”), para o desafio (“Se um dia falar com Deus”), para a contemplação das grandes vidas e grandes percursos (míticos, como o herói Heitor, ou reais, como essoutro herói, Beethoven), para a auto-reflexão (“Conversa sobre hipocrisia”), para as reflexões a partir dos encontros casuais da vida (“Uma gata da rua morreu na minha rua” ou “O nosso irmão, cão-guia”).
Todas estas valências surgem agrupadas na primeira das duas partes do livro, singular e laconicamente intitulada “Vária”, uma designação que, habitualmente, é reservada para o não-agrupável, remetida para depois das arrumações temáticas. Mas até esta ordem parece resultar do composto que a vida é nas suas oportunidades de tudo, inclusivamente de se manifestar pela poesia. “Vária”, assim como quem diz Vida ou Caminho ou Mundo ou, apenas, Tudo. “Vária”, assim como quem diz Olhar ou Gostar ou Tocar ou Ouvir ou, apenas, Sentir. “Vária”, assim como quem diz Paleta ou Sonoridades ou Sinfonia do Mundo. “Vária”, porque é esse imenso mar ou conjunto do que o exterior nos oferece para que se faça, para que se construa Poesia.
A segunda parte, mais curta, recorre ao universo “Do Amor”, povoada por treze poemas, todos com um destinatário implícito, recolhido numa segunda pessoa que se pressupõe causa dos dizeres. Ainda aqui, surgem referências de poetas outros, mas perpassa sobretudo o afecto, o gesto, o erotismo, todos inseparáveis, como se nota no poema “Se não visse”: “Se não visse, / Amar-te-ia pela pele. / Se não ouvisse, / Amar-te-ia pelo olhar. / Se não falasse, / Amar-te-ia pelo gesto. / Se não escrevesse, / Amar-te-ia pela fala.”
Finalmente, com este livro também se descobre. Parodiando Fernando Pessoa, o poeta é um perguntador. Faz poemas que fixam olhares, sons, gostos, questões, crenças, valores e descobertas. Faz poemas que questionam sentidos. E remata: “Perguntar é a viagem / De saber como somos / E o deslumbre / De só sabermos pouco, / Pouco a pouco, / Ou que temos de voltar atrás.” As perguntas obrigam a tentativas de pensar e só existem porque há respostas. Umas e outras combinam-se sempre que o leitor está disposto a... ouvir a palavra!
(Na apresentação pública da obra, na tarde de hoje, na Biblioteca Municipal de Setúbal,
iniciativa da Casa da Poesia de Setúbal) 

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