sábado, 3 de maio de 2014

Pedro Martins e António Reis Marques, "Agostinho da Silva em Sesimbra"



Os registos biográficos de Agostinho da Silva estão agora enriquecidos com um volume que estabelece a relação do homem de pensamento com a vila que se abriga na Arrábida, sob o título de Agostinho da Silva em Sesimbra, trabalho devido a Pedro Martins e a António Reis Marques (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2014), apresentado por António Cândido Franco, obra que se pode dividir em três partes: a primeira, constituída por um estudo das relações de Agostinho da Silva com a “piscosa” (a propósito deste atributo camoniano dado a Sesimbra, lembro-me sempre da intenção do palmelense António Matos Fortuna de ser construída uma rede ou um pacto de geminação entre todas as terras portuguesas com nome referido em Os Lusíadas, projecto que não chegou a ter execução, infelizmente) e com algumas das suas personagens e outros vultos da cultura portuguesa que por Sesimbra passaram, levada a cabo por Pedro Martins; a segunda, formada por dois textos de cunho memorialístico devidos a António Reis Marques, acentuando as vivências de Agostinho da Silva em Sesimbra; a terceira, reproduzindo a que terá sido a última entrevista do filósofo, saída no mensário sesimbrense Raio de Luz, no último dia de Setembro de 1993, conduzida por Pedro Martins, António Ladeira e José Pedro Xavier.
Os ecos de Sesimbra em Agostinho da Silva foram contínuos e tiveram início pela década de 1930, quando ali foi levado por eminente estudioso da região – Orlando Ribeiro, na altura em que preparava a sua tese sobre a Arrábida (com primeira edição em livro em 1936 e cujo manuscrito esteve em mostra em exposição biobibliográfica que a Biblioteca Nacional dedicou ao geógrafo há poucos anos). Na escrita, a região regista-a pela primeira vez em texto de 1956, a partir de Belo Horizonte, ao mencionar os “pescadores de Setúbal” e “os faroleiros do Espichel” nesse escrito introdutório a Reflexão à margem da literatura portuguesa (Lisboa: Guimarães Editores), que é um canto de agradecimento à cultura e à terra portuguesa, num longo passeio pela memória.
Depois, foram as vindas sucessivas a Sesimbra: motivadas pelas amizades de nomes como António Telmo, António Reis Marques, Rafael Monteiro; provocadas ainda por um projecto cultural que Agostinho da Silva gizou quando corria 1973, ao destacar monumentos como o santuário de Nossa Senhora do Cabo, o castelo sesimbrense ou a Fortaleza de Santiago como pontos matriciais para uma obra que colocaria Sesimbra no mapa de estudos da memória portuguesa; construídas sobre conferências, a primeira das quais na década de 1940 e a última em 1988, na Escola Secundária de Sampaio.
Ao longo deste estudo de Pedro Martins, em que a ligação do pensador à “piscosa” se reconstrói com memórias e com alguma correspondência que entre Agostinho da Silva e a afilhada Anahy se estabeleceu, Sesimbra afigura-se como espaço a que deram privilégio nomes importantes da cultura portuguesa do século XX, entre os quais, além dos já citados, são nomeados Vergílio Ferreira, Joel Serrão, Álvaro Ribeiro e João dos Santos, todos eles, porventura, com obra que teve “Sesimbra no horizonte”.
A evocação feita por António Reis Marques assenta em dois textos, correspondentes a outras tantas intervenções públicas em que o autor lembrou o amigo (datadas de 2002 e de 2006). Ainda que ambas contenham lembranças de vivências pessoais nos sucessivos encontros entre os dois, também por isso demonstram a grandeza desta personalidade, assente sobre princípios tão antigos quanto o franciscanismo ou a liberdade. Particularmente interessante é o registo em que é evocada uma ida dos dois amigos a uma loja de companha (a pedido de Agostinho da Silva), onde, depois de lhe terem sido explicadas as tarefas da pesca, o filósofo lembra aos pescadores o seu papel na história: “Vocês são os descendentes desses sesimbrenses que correram mundo nas naus e caravelas dos Descobrimentos. Foi com pescadores como vocês que os nossos mareantes aperfeiçoaram a arte de navegar, e foi também com eles que, velas desfraldadas, conseguiram um dos maiores feitos das navegações portuguesas: aprender a navegar à bolina, ou seja, navegar contra o vento.”
Na derradeira parte do livro, na entrevista que também foi a última dada por Agostinho da Silva, surgem temas que lhe foram caros como o da missão de Portugal no mundo, a questão do iberismo, o valor do mar e, naturalmente, Sesimbra. Debatia-se, na altura, o papel a ser desempenhado pela Expo 98, com escolha do tema dominante. E o entrevistado juntava na oportunidade esse tema – que só seria visto pelo público dali a cinco anos e que ele já não veria – com o papel de Portugal no mundo: “Surgiram agora com a ideia que é uma exposição sobre os Oceanos. Seria muito interessante que se pensasse sobre este problema: foi da costa portuguesa que se fez a exposição ao mundo do Império Romano; tem a costa portuguesa alguma coisa de particular? Eu acho que tem. Não é nenhum golfo. É uma costa aberta para um mar amplo. Daqui se pode sair, dar a volta ao mundo, sem estar preso por nenhuma terra. Talvez fosse bom pensar-se nisso: nos Oceanos.”
Esta mensagem de Agostinho da Silva tem vinte anos. Os oceanos foram, de facto, o tema da Exposição Mundial de 1998 em Lisboa; e, quando são passadas duas décadas sobre esta opinião, no nosso país começa-se a viver sob o signo de “Portugal é mar”… Momentos profícuos e de privilégio os que são gastos na leitura desta obra! Pelo que se aprende, pela riqueza do percurso do biografado, pelas marcas de identidade que são lembradas, por uma escrita que nos aproxima das personagens de quem se fala.

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