Edith
Cavell (n. em Dezembro de 1865) tinha 49 anos na manhã de 12 de Outubro de
1915, data em que, pelas sete horas, foi executada em Bruxelas pelos alemães. A
sua prisão tivera lugar em Agosto, depois de ter sido acusada de proteger a
fuga de soldados aliados no país ocupado que a Bélgica era. Com efeito, calcula-se
que duas centenas de combatentes do conflito que foi a Grande Guerra tiveram a
possibilidade de chegar à neutral Holanda graças a Edith Cavell, acção que a
enfermeira inglesa de Norfolk nunca negou.
A
proclamação a dar nota da decisão do Tribunal do Conselho de Guerra Imperial
Alemão, assinada nesse mesmo dia 12 de Outubro pelo governador, general Von
Bissing, dava conta da condenação à morte “por traição colectiva” de seis
pessoas, entre as quais Cavell, e subjugava mais quatro a quinze anos de
trabalhos forçados, contendo ainda em nota final a informação de que, quanto a
Cavell e a outro condenado, “o julgamento já recebeu plena execução” (Bocados de papel – Proclamações alemãs na
Bélgica e em França. London: Hodder and Stoughton, 1917). Poucas horas
antes de morrer, Edith Cavell confidenciou ao capelão anglicano Stirling Gahan:
“Nada receio. Já vi a morte tantas vezes que a não estranho, nem me assusta.
Dou graças a Deus por estas dez semanas de tranquilidade antes de morrer.
Passei continuamente uma vida agitada e cheia de obstáculos e, por isso, este
período de repouso o julgo uma grande mercê. Aqui foram todos bondosos para
mim. Mas, no momento supremo, em face de Deus e da eternidade, eu sinto e quero
dizer aos homens que o patriotismo não basta: não devemos ter ódio nem azedume
para ninguém.”
Esta
citação, longa, impressionou Guerra Junqueiro, que, em Barca de Alva, nesse
mesmo mês de Outubro, a usou para abrir um seu escrito dedicado à memória da
enfermeira e professora, opúsculo cujo produto da venda tinha como destino a
enfermagem da Cruzada das Mulheres Portuguesas (Edith Cavell. Lisboa: Imprensa Nacional, 1916).
O
escrito junqueiriano, em cinco páginas, não esconde a veneração pela cultura
alemã ao mesmo tempo que o desprezo pela fleuma bélica e, no tom combativo, não
disfarça o partido tomado na questão do conflito europeu. O parágrafo inicial é
esclarecedor: “O horrendo assassínio de Miss Cavell pelo império alemão é já a
crise delirante da ferocidade teutónica e demoníaca, o louco e pávido
estrebuchar da bebedeira de sangue, orgulho e omnipotência, que fez da luminosa
pátria de Goethe e de Beethoven a caserna ciclópica e sinistra do Kaiser, de
Krupp e de Bismarck.” Na sequência, a intensificação da brutalidade e do
sofrimento resulta da antítese entre o “martírio belga”, por um lado, e a
“avalanche execranda, esmagadora, inexorável (…), numa raiva alcoólica e
sangrenta de orgulho conquistador e canibalesco”, por outro, tendo pelo meio a
“alma cristã de Miss Cavell, (…) que teve o martírio como epílogo”, depois de
ter obedecido “ao dever, desafiando a morte”. Um bom retrato do ponto de vista
cristão…
Guerra
Junqueiro enaltece a verticalidade e a coragem de Cavell, não só pelo gesto que
praticou na protecção dos seus validos, mas também, e sobretudo, pela coragem
no assumir das responsabilidades, pela confissão do que fizera, sabendo que, ao
mesmo tempo, aproximava a sua condenação, atitudes que levam o poeta
transmontano ao retrato de desvanecimento: “Miss Cavell ergueu-se à esfera mais
alta e luminosa da perfeição humana.” No lado oposto, o escrito de Junqueiro
tenta descortinar o sonho do executor de Cavell, através de ideias que se
acumulam gradativamente, num processo de onde não está alheia a ironia, até
chegar ao seu estado máximo – “A ordem augusta vai fundar-se: Germânia,
imperatriz do mundo, Berlim, capital do Universo”! Mas o poeta crê que esta é a
futilidade do convencimento do carrasco, a auto-imagem que dos invasores
poderia advir, algo que a última frase do escrito, num misto de esperança e de
crença cristã, vai contrariar: “A justiça de Deus vai proclamar-se na terra. O
monstro espantoso será desfeito e aniquilado.”
O
testemunho de indignação quanto ao que foi o destino de Edith Cavell apareceu depois
recolhido pelo autor no volume Prosas
dispersas, em 1921 (Porto: Livraria Chardron, de Lello & Irmão), obra
em que, de resto, surge um outro texto datado de 1918 sujeito ao momento
histórico que foi a experiência da Primeira Grande Guerra. Sob o título de “O
monstro alemão”, dedicado “à França heróica e redentora, à mãe sublime de Joana
d’Arc”, o texto é datado de Março de 1918, também a partir de Barca de Alva.
Construída
sobre metáforas de combatividade, este escrito de Junqueiro põe em oposição as
figuras do italiano Cavour (1810-1861) e do prussiano Bismarck (1815-1898) para
dizer que aquele foi um “tipo político perfeito”, enquanto este se destacou por
“engrandecer a Prússia e prussianizar a Alemanha”, seguindo uma trajectória de
onde não está ausente aquilo que pode ser visto como uma consequência da
psicologia do invasor: “A Prússia, odiosa, invejosa e rancorosa, só domina,
esmagando. Ou faz vítimas ou faz escravos. Bismarck, engrandecendo-a, exaltou
um monstro.” A linguagem junqueiriana prossegue a senda da opressão e da
desumanização: “O capacete prussiano deformou o cérebro da Alemanha; desumanizou-o,
prussianizou-o, bestializou-o. (…) Bismarck não foi um grande homem, foi um
grande prussiano. (…) A essência da alma de Bismarck e da sua obra é esta: Quem tem a força tem o
direito. O direito mede-se pela força. Krupp é o jurisconsulto do Império.”
A
imagem da Alemanha e a fé no pangermanismo, recuando ao espírito da unidade
alemã, segundo Junqueiro, alicerçado em Fichte (1762-1814, autor da ideia de um
“pangermanismo espiritual”) e em Nietzche (1844-1900, que terá influenciado
Bismarck de forma acentuada – “No fundo da Super-Alemanha de Bismarck há o
Super-Homem de Nietzche”), acompanham neste texto o sonho que o cronista
imaginou que já tinha sido o do carrasco de Cavell – a forte impressão
ideológica de que a imagem de Átila, chefe dos Hunos e símbolo da Alemanha,
viria a dominar o mundo, passando sobre valores como a civilização, a justiça
ou o direito. Rapidamente Junqueiro nos dá o retrato: “Esta guerra é demoníaca
e santa. É a guerra da Iniquidade com o Direito, da Besta com o Espírito, de
Átila com Joana d’Arc.”
Estava-se
em Março de 1918, justamente no início da Primavera que os alemães escolheram
para progredirem de novo na frente oeste (haja em vista o que aconteceu em La
Lys, por exemplo). A visão infernal de Junqueiro prolongar-se-ia ainda por uns
meses nesse 1918. Mas o final do texto deixa antever que a vitória não será
germânica, mas terá a marca de Joana d’Arc, pairando sobre todo o sofrimento a
esperança cristã da paz – “Triunfa no Céu, porque da Terra varada de dor,
inundada de sangue e orvalhada de lágrimas, brotam lírios de fé, lírios de
chama, das campas nascem cruzes, das bocas voam preces, os joelhos dobram-se,
as almas rezam e, cheias de infinita angústia, só encontram em Deus infinito
amor a infinita paz!”
Este
texto de Junqueiro não pode deixar de nos incomodar, atendendo às datas e aos
retratos que dos povos e dos conflitos são traçados e ao que, de alguma
maneira, é antecipado. Com razão José Nuno Pereira Pinto regista, a propósito
desta lógica da cronologia e da quase profecia do poeta de Barca de Alva: “Esta
capacidade de prognose, naquele momento, a meses do Armistício, é das páginas
mais perturbadoras, pela sua capacidade profética, pela leitura não só do
momento presente, como pelo prenúncio de que o apocalipse estaria para chegar.”
(in À volta de Junqueiro. Henrique
Manuel Pereira, org. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010). O poeta
virava também profeta, ao mesmo tempo que mostrava o seu compromisso cívico e
também religioso.
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