domingo, 18 de maio de 2014

Guerra Junqueiro, Edith Cavell e o "monstro alemão"



Edith Cavell (n. em Dezembro de 1865) tinha 49 anos na manhã de 12 de Outubro de 1915, data em que, pelas sete horas, foi executada em Bruxelas pelos alemães. A sua prisão tivera lugar em Agosto, depois de ter sido acusada de proteger a fuga de soldados aliados no país ocupado que a Bélgica era. Com efeito, calcula-se que duas centenas de combatentes do conflito que foi a Grande Guerra tiveram a possibilidade de chegar à neutral Holanda graças a Edith Cavell, acção que a enfermeira inglesa de Norfolk nunca negou.
A proclamação a dar nota da decisão do Tribunal do Conselho de Guerra Imperial Alemão, assinada nesse mesmo dia 12 de Outubro pelo governador, general Von Bissing, dava conta da condenação à morte “por traição colectiva” de seis pessoas, entre as quais Cavell, e subjugava mais quatro a quinze anos de trabalhos forçados, contendo ainda em nota final a informação de que, quanto a Cavell e a outro condenado, “o julgamento já recebeu plena execução” (Bocados de papel – Proclamações alemãs na Bélgica e em França. London: Hodder and Stoughton, 1917). Poucas horas antes de morrer, Edith Cavell confidenciou ao capelão anglicano Stirling Gahan: “Nada receio. Já vi a morte tantas vezes que a não estranho, nem me assusta. Dou graças a Deus por estas dez semanas de tranquilidade antes de morrer. Passei continuamente uma vida agitada e cheia de obstáculos e, por isso, este período de repouso o julgo uma grande mercê. Aqui foram todos bondosos para mim. Mas, no momento supremo, em face de Deus e da eternidade, eu sinto e quero dizer aos homens que o patriotismo não basta: não devemos ter ódio nem azedume para ninguém.”
Esta citação, longa, impressionou Guerra Junqueiro, que, em Barca de Alva, nesse mesmo mês de Outubro, a usou para abrir um seu escrito dedicado à memória da enfermeira e professora, opúsculo cujo produto da venda tinha como destino a enfermagem da Cruzada das Mulheres Portuguesas (Edith Cavell. Lisboa: Imprensa Nacional, 1916).
O escrito junqueiriano, em cinco páginas, não esconde a veneração pela cultura alemã ao mesmo tempo que o desprezo pela fleuma bélica e, no tom combativo, não disfarça o partido tomado na questão do conflito europeu. O parágrafo inicial é esclarecedor: “O horrendo assassínio de Miss Cavell pelo império alemão é já a crise delirante da ferocidade teutónica e demoníaca, o louco e pávido estrebuchar da bebedeira de sangue, orgulho e omnipotência, que fez da luminosa pátria de Goethe e de Beethoven a caserna ciclópica e sinistra do Kaiser, de Krupp e de Bismarck.” Na sequência, a intensificação da brutalidade e do sofrimento resulta da antítese entre o “martírio belga”, por um lado, e a “avalanche execranda, esmagadora, inexorável (…), numa raiva alcoólica e sangrenta de orgulho conquistador e canibalesco”, por outro, tendo pelo meio a “alma cristã de Miss Cavell, (…) que teve o martírio como epílogo”, depois de ter obedecido “ao dever, desafiando a morte”. Um bom retrato do ponto de vista cristão…
Guerra Junqueiro enaltece a verticalidade e a coragem de Cavell, não só pelo gesto que praticou na protecção dos seus validos, mas também, e sobretudo, pela coragem no assumir das responsabilidades, pela confissão do que fizera, sabendo que, ao mesmo tempo, aproximava a sua condenação, atitudes que levam o poeta transmontano ao retrato de desvanecimento: “Miss Cavell ergueu-se à esfera mais alta e luminosa da perfeição humana.” No lado oposto, o escrito de Junqueiro tenta descortinar o sonho do executor de Cavell, através de ideias que se acumulam gradativamente, num processo de onde não está alheia a ironia, até chegar ao seu estado máximo – “A ordem augusta vai fundar-se: Germânia, imperatriz do mundo, Berlim, capital do Universo”! Mas o poeta crê que esta é a futilidade do convencimento do carrasco, a auto-imagem que dos invasores poderia advir, algo que a última frase do escrito, num misto de esperança e de crença cristã, vai contrariar: “A justiça de Deus vai proclamar-se na terra. O monstro espantoso será desfeito e aniquilado.”
O testemunho de indignação quanto ao que foi o destino de Edith Cavell apareceu depois recolhido pelo autor no volume Prosas dispersas, em 1921 (Porto: Livraria Chardron, de Lello & Irmão), obra em que, de resto, surge um outro texto datado de 1918 sujeito ao momento histórico que foi a experiência da Primeira Grande Guerra. Sob o título de “O monstro alemão”, dedicado “à França heróica e redentora, à mãe sublime de Joana d’Arc”, o texto é datado de Março de 1918, também a partir de Barca de Alva.
Construída sobre metáforas de combatividade, este escrito de Junqueiro põe em oposição as figuras do italiano Cavour (1810-1861) e do prussiano Bismarck (1815-1898) para dizer que aquele foi um “tipo político perfeito”, enquanto este se destacou por “engrandecer a Prússia e prussianizar a Alemanha”, seguindo uma trajectória de onde não está ausente aquilo que pode ser visto como uma consequência da psicologia do invasor: “A Prússia, odiosa, invejosa e rancorosa, só domina, esmagando. Ou faz vítimas ou faz escravos. Bismarck, engrandecendo-a, exaltou um monstro.” A linguagem junqueiriana prossegue a senda da opressão e da desumanização: “O capacete prussiano deformou o cérebro da Alemanha; desumanizou-o, prussianizou-o, bestializou-o. (…) Bismarck não foi um grande homem, foi um grande prussiano. (…) A essência da alma de Bismarck  e da sua obra é esta: Quem tem a força tem o direito. O direito mede-se pela força. Krupp é o jurisconsulto do Império.”
A imagem da Alemanha e a fé no pangermanismo, recuando ao espírito da unidade alemã, segundo Junqueiro, alicerçado em Fichte (1762-1814, autor da ideia de um “pangermanismo espiritual”) e em Nietzche (1844-1900, que terá influenciado Bismarck de forma acentuada – “No fundo da Super-Alemanha de Bismarck há o Super-Homem de Nietzche”), acompanham neste texto o sonho que o cronista imaginou que já tinha sido o do carrasco de Cavell – a forte impressão ideológica de que a imagem de Átila, chefe dos Hunos e símbolo da Alemanha, viria a dominar o mundo, passando sobre valores como a civilização, a justiça ou o direito. Rapidamente Junqueiro nos dá o retrato: “Esta guerra é demoníaca e santa. É a guerra da Iniquidade com o Direito, da Besta com o Espírito, de Átila com Joana d’Arc.”
Estava-se em Março de 1918, justamente no início da Primavera que os alemães escolheram para progredirem de novo na frente oeste (haja em vista o que aconteceu em La Lys, por exemplo). A visão infernal de Junqueiro prolongar-se-ia ainda por uns meses nesse 1918. Mas o final do texto deixa antever que a vitória não será germânica, mas terá a marca de Joana d’Arc, pairando sobre todo o sofrimento a esperança cristã da paz – “Triunfa no Céu, porque da Terra varada de dor, inundada de sangue e orvalhada de lágrimas, brotam lírios de fé, lírios de chama, das campas nascem cruzes, das bocas voam preces, os joelhos dobram-se, as almas rezam e, cheias de infinita angústia, só encontram em Deus infinito amor a infinita paz!”
Este texto de Junqueiro não pode deixar de nos incomodar, atendendo às datas e aos retratos que dos povos e dos conflitos são traçados e ao que, de alguma maneira, é antecipado. Com razão José Nuno Pereira Pinto regista, a propósito desta lógica da cronologia e da quase profecia do poeta de Barca de Alva: “Esta capacidade de prognose, naquele momento, a meses do Armistício, é das páginas mais perturbadoras, pela sua capacidade profética, pela leitura não só do momento presente, como pelo prenúncio de que o apocalipse estaria para chegar.” (in À volta de Junqueiro. Henrique Manuel Pereira, org. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010). O poeta virava também profeta, ao mesmo tempo que mostrava o seu compromisso cívico e também religioso.

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