quinta-feira, 15 de abril de 2021

João de Barros: memórias de Bruges em apoio à Bélgica



Na edição de 23 de Novembro de 1914 da Ilustração Portuguesa, Augusto de Castro assina uma crónica emocionada cujo assunto é o poema Ode à Bélgica, de João de Barros (1881-1960), publicado por essa altura: “canta, num ritmo emotivo e poético, as lágrimas e as ruínas da Bélgica violada e massacrada. (...) Chora a dor da Bruges triste, das cidades incendiadas, dos lares enlutados, dos templos destruídos - e a sua visão evoca a Bélgica redimida de amanhã.”

Em causa estava o sofrimento belga, no contexto da Primeira Guerra Mundial, pois, logo no início de Agosto, o país, que se afirmara neutro, foi invadido pelos alemães e, até Outubro de 1914, padeceu de violência sobre a população civil em elevado grau, sendo referência maior o massacre de Dinant, em 23 de Agosto, com 674 civis fuzilados.

Dedicado aos “amigos de Bruxelas”, o poema é organizado em seis partes, composto por dísticos e um monóstico no final da primeira parte, em métrica hendecassilábica. O tom do sofrimento surge logo no início - “Bélgica formosa, Bélgica fecunda, / Bárbaros sem alma vão-te assassinar! // Na loucura torpe, que incendeia e mata, / sobre ti lançaram garras de ambição! // Sobre ti lançaram, corpo e tenro moço, / mãos de violência, de extermínio e roubo!” -, sendo toda a primeira parte povoada com imagens da destruição por causa da guerra. Perante tal devastação, o poeta lembra na parte seguinte os aspectos bons que o ligam à Bélgica - pessoas, paisagem, paz - até chegar à memória das cidades, ao mencionar “a melancolia dessa Bruges morta, / da cidade morta dos canais que sonham”, imagem em que ressoa o título de Georges Rodenbach (1855-1898), Bruges, a morta, de 1892, personificação daquele espaço, ou um conhecido poema de Mallarmé (1842-1898) dirigido aos amigos belgas, textos que quase conferem o estatuto de romantismo e de arquétipo àquela cidade.

A terceira e a quarta partes constituem uma tela de saudade e de evocação sobre Bruges, onde o poeta ouviu “um Passado inteiro palpitar, erguer-se”: figuras das rendeiras de bilros, “cantos esquecidos”, imagens do passado de artistas e de príncipes, sonoridades dos sinos e dos canais, luminosidade e névoa, uma “paleta” para se “combinarem os mais raros tons”, um espaço para amar. Este êxtase é contrariado quando o poema se aproxima do final, perante uma cidade esmagada e melancólica sob o peso invasor - “Pois o teu encanto, pois a tua graça, / Bruges sem defesa, já tos violaram! // Bruges dolorosa, Bárbaros sem alma / pisam tuas ruas, turvam teus canais!”

O poema conclui com a esperança na recuperação dos valores que a Bélgica representava, assentando sobre um tom exortativo e heróico - “Tu, caminha e luta; tu, combate e canta / Alma de coragem, Força de triunfo!” - e anunciando um ressurgimento “que há-de ser em breve, Bélgica formosa, / Bélgica fecunda, teu Futuro altivo!”

Em 7 de Março de 1915, em Lisboa, no Politeama, Ode à Bélgica era apresentada como poema sinfónico, em composição do grandolense Teófilo Saguer, estruturado em três números - “Bélgica invadida”, “Rendeiras de Bruges” e “Bélgica heróica” -, que “recebeu muitos aplausos, o que também não nos admira, pois o assunto está na ordem do dia”, assinalava o crítico da revista A Arte Musical, de 15 de Março.

Com esta obra, João de Barros enfileirava no rol dos artistas e pensadores republicanos cuja arte favorecia a propaganda contra a Alemanha no conflito da Grande Guerra.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 600, 2021-04-14, p. 5


sábado, 10 de abril de 2021

Sebastião da Gama: a música (das palavras) e a memória



Hoje, Sebastião da Gama faz 97 anos. Digo “faz” intencionalmente. É que temos de saber viver com quem nos pode sempre acompanhar, seja pelas suas ideias, pelos seus sentires, pelas suas visões da vida e do mundo. E Sebastião da Gama, apesar de ter partido com 27 anos em 1952, teve uma leitura do universo que se mantém inovadora e cheia de lições.

Na sua poesia, foi sensível à música, aparecesse ela como “canto”, “hino”, “som” ou “música” mesmo. São vários os poemas que publicou em que a arte musical se manifesta – recorde-se, por ordem de publicação, um poema de cada um dos três livros que o poeta editou:“Vida” (Hoje, cá dentro, houve festa... / E, se houve festa e veludos, / e música azul, e tudo / quanto digo, / foi somente porque a Graça / desceu hoje a visitar-me.”), em Serra-Mãe (1945); “As Fontes” ("De todas as aldeias / vieram, cantando, as moças / encher as bilhas. // E eu fui também cantando ao som das águas… / Cantava as minhas mãos, cantava as fontes.”), em Cabo da boa esperança (1947);“Manhã no Sado” (Ali, à beira-rio, / de olhos só para o rio, de ouvidos surdos / ao que não é a música das águas, / um sossego alegórico persiste.”), em Campo aberto (1951).

No próprio Diário, ao refletir sobre a poesia e sobre a palavra, várias vezes o professor Sebastião da Gama se referiu à música.Vale a pena determo-nos sobre estes dois curtos excertos: “ser Poeta, tinha eu pensado dizer-lhes, é estar encantado ou desencantado e contá-lo com palavras que pareçam música” (9 de Março de 1949) e “A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” (16 de Março de 1949).

Mas Sebastião da Gama tinha também a preocupação pedagógica de passar esta mensagem musical para o leitor, por mais simples que ele fosse, explicando-lhe a relação da arte musical com a palavra e com o som. E foi assim que, numa crónica publicada no Jornal do Barreiro, em 24 de Agosto de 1950, intitulada “Sobre a Poesia”, se preocupou em simplificar esse casamento entre a poesia e o canto: “No povo inculto e na criança é que a verdade acerca da Poesia está guardada; é que o conceito de Poesia se mantém ingénuo. Pois não começou a Poesia por ser o puro canto?” Esta abordagem de Sebastião da Gama torna-se radical, subscrevendo o que um amigo seu dissera – os poemas deviam ser gravados em discos em vez de ser em papel… porque os versos são “para serem ouvidos, não para serem lidos”. Esta atitude “revolucionária” não é isenta de riscos, como Sebastião da Gama o nota – é que, logo a seguir, distingue os versos ditos pelo poeta dos versos ditos por outrem, porque, acima de tudo, só os poetas saberiam dizer os seus poemas “em intimidade”, isto é, “em plena comunhão com a palavra, com a perfeita compreensão dos mínimos pormenores”.

A música, vinda pela palavra, serviu-lhe para cantar a Serra, a Vida, o Amor, a Paz. Sempre numa dimensão muito próxima do real - a paisagem e os momentos constituíram frequentemente pretextos para os seus poemas -, mas com a capacidade de se deixar inebriar pela espiritualidade, numa relação com tudo que nos comove e nos convida à partilha. Sabia Sebastião da Gama que a poesia brotava da Natureza e das Pessoas e de tudo o que faz as suas circunstâncias - a questão era descobri-la, ouvi-la e dela fazer eco.

Muitas razões poderíamos invocar para justificar a importância deste poeta. Determinantes são o contributo que deu à cultura portuguesa da sua geração, a escola que formou, o legado que deixou. É um privilégio que ele ainda se mantenha entre nós através da sua palavra e do seu relato.

Em Azeitão, hoje, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em sua honra e de Joana Luísa, a mulher que sempre lutou pela divulgação da obra do poeta e que anteviu a importância do legado do marido, inaugurou a Casa-Memória Joana Luísa e Sebastião da Gama. Uma forma de reconhecer que os merecemos!

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Andersen: um tempo feliz em Portugal em 1866



Em 3 de Maio de 1866, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) tomou a diligência de Madrid para Mérida, onde apanhou comboio para Lisboa, tendo como companheiro, por coincidência, Garcia Peres (que dali a quatro anos passaria a viver em Setúbal). A chegada à margem do Tejo aconteceu três dias depois, instalando-se Andersen na Quinta do Pinheiro (Sete Rios, Lisboa), propriedade de Jorge O’Neill. Em 1868, consequência desta viagem, publicava o relato Uma visita em Portugal em 1866, só editado em português em 1971, em tradução do setubalense Silva Duarte (1918-2011).

A memória que Andersen levou de Portugal foi de um tempo feliz, num “paraíso”, em que não se cansou de classificar o que por cá sentiu como momentos de bem-estar que lhe faziam lembrar a sua Dinamarca - estava, portanto, “em casa”, situação que também lhe foi proporcionada pelo facto de privar com amigos antigos.

Depois de atravessar a fronteira entre os países ibéricos, Andersen anotava: “Que transição, ao entrar em Portugal, vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado.”

Esta viagem de Andersen começara em 31 de Janeiro, em Copenhaga, cidade onde regressaria apenas em 9 de Setembro; em Portugal, o contista dinamarquês esteve entre 6 de Maio e 14 de Agosto, data de embarque para Bordéus. Nos três meses lusitanos, viveu em Lisboa (na Quinta do Pinheiro), em Setúbal (na Quinta dos Bonecos, de Carlos O’Neill) e em Sintra (na Quinta do Duche, de José Carlos O’Neill), com deslocações rápidas a Aveiro e a Coimbra.

Curioso pela cultura e pela identidade portuguesas, conheceu Feliciano de Castilho (em Lisboa) e Manuel Maria Portela (em Setúbal), convivas que lhe falaram de Camões e de Bocage. Perspicaz e com sentido de humor, não olhava o mundo sem lhe pôr a sua marca - dirá, em Lisboa: “O cemitério maior não o vi, tem o nome de Prazeres. Quase nos faz crer ter sido um humorista que baptizou o lugar. O mesmo sucede com o nome do palácio da Rainha: Necessidades.” A Setúbal dedicou um dos mais longos capítulos do livro - conheceu a cidade, andou pela Arrábida e S. Luís, chegou a Palmela, atravessou para Troia, participou na festa de Santo António, viu uma tourada. Deixou-se ofuscar pela Igreja de Jesus, ao comentar: “Pequena igreja das mais belas que até agora vi. Tem algo de aéreo e luminoso.” Na Praça de Bocage, associou-lhe o seu sentir de poeta: “A maior e mais bonita praça é incontestavelmente aquela que tem o nome do poeta português Bocage, nascido em Setúbal e que, como é frequente com os poetas, morreu em pobreza. Vai agora ser-lhe levantado um monumento, para o qual se está a fazer uma subscrição. Setúbal é orgulhosa do seu vate.” Efectivamente, Bocage ali viria a ter a sua estátua anos depois, em 1871...

É ainda sabido que, em Setúbal, Andersen arranjou motivo de inspiração para o seu conto “O sapo”, como documentou em anotações feitas em 1868.

Viajante persistente (30 viagens entre 1831 e 1873, equivalendo a nove anos fora da Dinamarca), Andersen descobriu-se em cada saída, o que lhe permitiu afirmar, ao concluir o relato da viagem a Espanha em 1862: “A vida é o mais maravilhoso dos contos.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 595, 2021-04-07, pg. 10.


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Eugénio Lisboa cativa leitores relutantes


O título envolve um convite, embrulhado em emoção, numa exclamativa. É curto, duas palavras. Mas um subtítulo chama a atenção para o que tão conciso título pretende. Vamos ler! - Um cânone para o leitor relutante é o mais recente livro de Eugénio Lisboa (Guerra & Paz, 2021), leitor contumaz, a falar da felicidade de ler para interlocutores a conquistar.

A aventura começa com recuo à infância moçambicana do autor, numa família sem “folga financeira para comprar livros, para além dos escolares”, numa casa cuja arrecadação guardava num baú, “dezenas e dezenas de números de uma revista brasileira, com um título que era um verdadeiro chamariz”. Chamava-se... Vamos ler!, oferecendo “reportagens, verbetes dedicados a grandes escritores do passado e do presente (daquele presente!), contos de autores famosos, novelas policiais excitantes e até peças de teatro”. O trilho da leitura: “à falta de livros, fui-me embrenhando na boa e variada literatura que a revista me oferecia. ‘Vamos ler!’, dizia o título da revista - e foi isso mesmo que me dispus a fazer: ler.”

A persistência e o gosto levaram o jovem para um cruzamento de géneros, tempos, culturas, numa viagem fascinante que o faz afirmar: “As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam.” Esta asserção conduz a Virginia Woolf, pelo seu cenário do Dia do Juízo, no momento de recompensar heróis - dirá Deus a Pedro, quando alguém chegar com livros debaixo do braço: “Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!” Criados os passos, Eugénio Lisboa diz ao que vem: “Era precisamente para este estatuto de ‘pessoas que já gostam de ler’ que eu gostaria de seduzir as pessoas pouco habituadas à leitura. E uma coisa prometo, desde já: não fazer batota.”

Vamos ler! apoia-se em dois vectores: o da sedução e o da sinceridade de leitor experimentado. Se aquele cativa vontades, este aponta caminho não complexo nem difícil. Isto é: neste livro “trata-se de congeminar uma isca astuta e não de exibir uma cultura sofisticada e faraónica.”

O fingimento sentido no mundo literário é repudiado por Eugénio Lisboa, sobretudo pelo snobismo do “fica bem” ou do “dar estatuto”. Daí a palavra “cânone” no título, termo habitualmente guardado para associar a ideologia ao gosto, à norma, prescritivo, mas que Eugénio Lisboa usa em dimensão modesta e próxima, chegando a dizer não ser o “seu”, mas “um” cânone para que não haja leitores relutantes e também para ironizar com os cânones que deixam de fora, por exemplo, uma poeta como Sophia...

As visitas propostas passam por uma lista de 50 obras de 35 autores, todos portugueses (na verdade, são muitos mais e há imensos estrangeiros, pois as incursões sobre os seus gostos literários são outros tantos “iscos”, ainda que fora da lista), ordenada do “mais recente para o mais antigo”, estratégia pedagógica iniciada com Miguel Sousa Tavares até chegar a Camões, também descobrindo em alguns canónicos dos programas escolares as virtudes que ficam normalmente à porta do estudo. Não, não vou dizer quais são os autores - apesar de poder haver alternativas válidas, a proposta de Eugénio Lisboa é coerente, pois assenta no princípio de que “vale a pena ler”, verdade tão universal que até Bill Gates afirmou: “Os meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros”, porque, “sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever, inclusivamente a sua própria história.” E conclui o autor: “E, agora, VAMOS LER!” 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 591, 2021-03-30, p. 10.


quinta-feira, 25 de março de 2021

Francisco Vaz e um auto da Paixão (com Manoel de Oliveira à mistura)



O realizador Manoel de Oliveira sonhava-o desde 1958, quando, num périplo transmontano, viu, em Curalha (Chaves), a representação popular de uma antiga peça religiosa sobre a morte e paixão de Cristo. Em 1962, meteu mãos à obra, levando para o cinema os actores curalhenses no filme Acto da Primavera, estreado no ano seguinte em Paris e em Lisboa, numa actualização da história relatada no auto.

O texto desta narrativa rodada em Curalha existe desde o século XVI sob o título Obra novamente feita da muito dolorosa morte e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo conforme a escreveram os quatro santos evangelistas e é devido ao padre Francisco Vaz, de Guimarães. Pormenores biográficos sobre o autor são desconhecidos, mas sempre se sabe que a peça teve primeira impressão em 1593 e sucessivas reimpressões até finais de Oitocentos. Em 1995, o Instituto de Estudos Teatrais Jorge de Faria, da Universidade de Coimbra, editou o fac-símile da reimpressão de 1659, a quarta que terá sido feita, que, nas suas quarenta páginas, contempla trinta pequenas gravuras alusivas aos passos da paixão de Cristo. Os versos dos diálogos oscilam no esquema rimático e na métrica (maioritariamente em redondilha maior), numa linguagem acessível, ainda que, por vezes, recorrendo a alterações anastróficas por sacrifício imposto pela rima.

O auto envolve acima de quarenta personagens, representando toda a movimentação que rodeou a vida de Cristo entre a Última Ceia e o momento da descida da cruz e entrada no Santo Sepulcro. Assim, o leitor (ou o espectador) vê passar figuras como Acusador, Anás, Ancila, Anjo, Apóstolos (doze), Caifás, Centúrio, Cristo, Diabo, Espia, Fariseus, Herodes, Hóspede, Jacob Baru, José de Arimateia, Judas, Ladrões (dois), Longino, Malco, Nicodemos, Nossa Senhora, Pajem, Pilatos, Porteiro, Pregão, Rabi Abraão, Rabi Azar, Romão, Testemunhas (duas) e Verónica, além do Representador, que surge numa longa primeira cena para apresentar a obra (prometendo que será representado “tudo em suma como aconteceu”), assinalando a importância da fonte que os evangelhos constituem, tentando despertar as simpatias e as oposições do público relativamente a personagens que por ali desfilarão e preparando a assistência para momentos de comoção.

A maioria das personagens advém dos relatos bíblicos, mas há várias que resultam da imaginação do autor ou dos evangelhos apócrifos, o mesmo acontecendo com as cenas representadas, que têm também a intenção de levar à comoção - particularmente intenso é o momento em que Cristo vai despedir-se da mãe, antes do sacrifício por que vai passar, terminando esse encontro com Nossa Senhora a abraçar o filho e a dizer aos Apóstolos “Também vos quero abraçar, / filhos meus, com muito amor, / e a todos vós rogar / não queirais desamparar / a vosso Mestre e Senhor.” Não menos emotivo é o momento de pranto partilhado entre Verónica e Nossa Senhora quando ambas se encontram e a mãe vê o rosto do filho estampado na toalha que lhe é mostrada.

O tema da paixão de Cristo motivou fortemente o teatro de carácter religioso desde a Idade Média, numa linha de intensidade dramática que dominava actores e espectadores. Antero de Figueiredo, na obra Jornadas em Portugal, de 1918, noticia ter visto uma representação deste auto de Francisco Vaz na aldeia de Duas Igrejas e ter sabido de um homem doente havia quinze dias “com os açoites e as vergastadas que lhe deram na representação da Paixão do Senhor, em que ele fez de Jesus”, papel desempenhado “por penitência”. O texto quinhentista assumia assim o seu carácter catequético e eternizava a mensagem salvadora da Paixão de Cristo.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 586, 2021-03-24, p. 9.


quarta-feira, 17 de março de 2021

Raul Brandão: o mar como paleta



"Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa". Quem assim escreve é Raul Brandão em Os Pescadores (1923), livro de descrições e narrativas, de reportagens e de memórias, "apontamentos rápidos" num cenário apelativo - "esta paisagem - mar, rio e céu - entranhou-se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento", confessa, redesenhando o universo numa quase trindade. 

As recordações infantis não andam arredias quando do mar e dos homens se fala, pois conhecer as pessoas ligadas ao mar, suas forças e fraquezas, não lhe é tarefa difícil - "sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente". A vetusta idade da casa deixa transparecer a figura do avô, personagem a quem dedica o livro e de quem Brandão relata uma morte eufemística: "Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo".

Toda a escrita em Os Pescadores é uma desnudação do mar, dos mais diversos ângulos, incluindo o humano. Importante quanto aos pescadores é a referência ao nome de muitos deles, sinal da proximidade estabelecida, para além de citar muitos nomes de barcos, o instrumento de trabalho que os simboliza. É com carinho que os homens do mar são tratados, por vezes revelando-lhes uma certa inocência, a denotar uma relativa fragilidade. Com eles, estão sempre as mulheres, repletas de predicados abonatórios, destacando-se o trabalho e o papel que desempenham, mas também a tragédia que lhes está cometida ao terem de aguentar em terra todos os desgostos de que o mar é responsável. Ao mesmo tempo que o mar é a fonte da inspiração máxima para escrever a paisagem, é também a ameaça permanente, a morte liquefeita.

Em defesa destes homens e mulheres, é criticado um certo selvagismo existente no universo da pesca: pelo Estado, ao abandonar as populações à sua sorte; pelos proprietários que vegetam na capital, alheios ao sofrimento; pelo lucro fácil dos industriais, ao desprestigiarem a pesca artesanal, gerando desequilíbrio na Natureza - "cultivar o mar é uma coisa - é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é ofício de industriais". 

As alusões à pintura e à tela são vastas. "O que eu queria dar só o podem fazer os pintores", escreve. As duas cores mais utilizadas são a azul e a verde, a primeira em quantidade maior, ambas para a qualificação do mar e da terra, vestidas de imensas tonalidades. Mas muitas outras cores surgem no espectro brandoniano, numa paleta inesgotável nas combinações. "Tenho a alma a escorrer tintas estranhas", regista. A aproximação a Setúbal é um exemplo: “onde o mar atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baíazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz.”

Datado de 1923, Os Pescadores mereceu quatro edições durante o primeiro ano. Razões favoráveis são a fácil leitura, a galeria de tipos e de vistas, a proximidade humanista à epopeia destes homens e mulheres e a sensibilidade pictórica na transposição para a literatura.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 581, 2021-03-17, p. 10


quarta-feira, 10 de março de 2021

Borges Henriques: entre receitas e remédios, umas empadas de peixe de Setúbal




Quando Francisco Borges Henriques decidiu anotar as receitas culinárias e as prescrições úteis e práticas para vários fins e problemas, não terá pensado em publicação, antes em construir um guia, um repositório de segredos, para ter à mão nas situações de necessidade da sua casa.

Terá esse registo ocorrido entre 1715 e 1729, a acreditar nas datas mencionadas em alguns textos, provas de ter sido trabalho contínuo, edificado na paciência dos dias. Três séculos depois, podem os leitores mergulhar no tesouro construído por esse alhandrense que viveu em Lisboa, Elvas e provavelmente no Brasil e em Inglaterra, ligado a casas nobres e à arte da cozinha, curioso em extremo e coleccionador de descobertas culinárias e de soluções para o quotidiano caseiro - desde coisas sérias, como aliviar doenças, até assuntos de carácter social, como a duração do luto, ou religioso, como a transcrição de orações pedindo protecção ao santo patrono, passando por conselhos sobre tarefas agrícolas ou mais utilitários, como o fazer tinta de escrever, chegando a questões mais delicadas como o “remédio para os casados terem filhos” ou o “remédio para que as mulheres que casarem pareçam donzelas”... É por tudo isto que vale a visita à obra coordenada por Dulce Freire (que contou com uma equipa pluridisciplinar) Receitas e remédios de Francisco Borges Henriques (Ficta Editora, 2020), título breve de outro mais longo, no manuscrito preservado na Biblioteca Nacional de Portugal - Receitas dos melhores doces e de alguns guisados particulares e remédios de conhecida experiência que fez Francisco Borges Henriques para o uso de sua casa no ano de 1715

No conjunto, são quase 700 recomendações e receitas, muitas com a anotação de terem sido experimentadas (numa receita de marmelada que leva menos açúcar, indica ser “a que usamos”) e algumas comentadas (de uma pessegada de pedaços, regista a apreciação “excelente” como, de uns bolos de mel, refere “não se use desta”), bastantes com a indicação da proveniência - origem geográfica (Minho, Mirandela, Lisboa, Setúbal, Alentejo, França, Inglaterra, Itália ou Brasil, entre outros) ou menção de quem cedeu a receita (amigos, familiares, médicos ou figuras que lhe mereciam crédito) -, num excelente contributo para a memória das artes da casa, para a informação sobre os ingredientes e produtos então usados e para o conhecimento de aspectos do quotidiano setecentista. O olhar do leitor acompanha o pressentido aroma dos cozinhados de carnes (as mais diversas) e de peixe, da gulodice da doçaria com marcas conventuais, do gosto das massas, das formas de conservar alimentos, mas também das preocupações da época nos domínios das doenças, da vivência religiosa, das relações sociais. E, no caso de haver dúvidas por causa do vocabulário, no final, há um glossário adequado.

Com origem sadina, há apenas uma receita - a de “empadas de peixe como se fazem em Setúbal”: “Tirado o peixe da água, se enxuga muito bem num pano e, posto em pratos, se lhe bota açafrão pisado, com coentro seco somente, e se bandeja muito e, feito isto, se lhe bote um fio de azeite; voltando-se outra vez, pisarão cravo do Maranhão, canela, pimenta, cada um de per si, e, feitas as caixas, se lhe deita no fundo dos três adubos e se lhe acomoda o peixe e, acomodado, se lhe encherá a empada de azeite e se lhe põe a sua tampa e se manda ao forno.” Na margem, ainda se anota que a farinha “será feita de trigo tremês, porque não racha”. Agora, é seguir a recomendação e degustar!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 576, 2021-03-10, p. 5.


Fotos: Receita das "empadas de peixe como se fazem em Setúbal" a partir da cópia pública do manuscrito de Francisco Borges Henriques (BNP - cod.7376, p. 83); capa do livro de Francisco Borges Henriques (Ficta Editora, 2020)


quarta-feira, 3 de março de 2021

Paulo Guinote: ser professor e pai num diário da pandemia


    

Baluarte, discute-se a escola porque se está informado e se quer contribuir com ideias ou pela ligação que com ela houve e vem sempre à superfície. Paulo Guinote sublinha: “Mesmo quando em conversas ocasionais ou com maior pretensão reflexiva se criticam as escolas, em particular as da rede pública, a verdade é que se tem como dado adquirido que elas estão lá e funcionam.” Se dúvidas houvesse, a pandemia esclareceu-as - ainda Paulo Guinote: “As escolas fecharam e, em pouco tempo, esse tornou-se um tema de conversa e debate mediático quase permanente (...). Por muito mal que se diga que funcionam, sem as escolas abertas a sociedade perde uma das suas âncoras.” Estas considerações constam no livro Quando as escolas fecharam - Cadernos da pandemia, assinado por Paulo Guinote (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021).

Em 2020, entre 11 de Março (quando começou a intensificar-se a ideia do encerramento das escolas) e 18 de Maio (quando os alunos com exames do secundário regressaram à escola), foram 66 os dias de registo sobre o reflexo pandémico na vida da escola e da família - a escrita só esteve ausente em três dias desse período, havendo ainda um texto de “meados de Junho”, epílogo do livro. A forma de diário que o escrito assume verifica-se na indicação das datas, a que se podem sobrepor os acontecimentos evocados e motivadores das reflexões, entradas determinadas ainda por um título, que, muitas vezes, assume o tom crítico, que é uma das linhas deste diário.

Não se está apenas perante um relato mais ou menos cronológico e factual do que aconteceu no primeiro confinamento, pois as marcas do diarista abundam aqui e ali, conferindo um cunho pessoal às notas do quotidiano - o ambiente familiar, episódios vividos, convicções próprias, pequenas histórias (em torno da gata ou do telemóvel, por exemplo), olhar sobre o meio em que vive, fragilidades sentidas. O texto, sublinhado muitas vezes pelas referências à própria experiência como professor ou pela observação do que a informação privada ou pública trouxe ao diarista, adquire, com essas marcas pessoais e com um olhar de análise sobre o sistema e sobre a educação, um ritmo que o coloca no plano do testemunho sobre esse primeiro confinamento causado pela covid-19, salvaguardando-o como elemento histórico importante.

Perante tudo o que foi a surpresa, a descoberta, a vivência e a construção de uma nova forma de viver, as notas de Paulo Guinote fundem os sentimentos do pai, do professor e do cidadão crítico, numa construção que não esconde a tensão entre essas três dimensões, exacerbada numa sociedade mais habituada ao corporativismo do que à parceria e ao entendimento. Por aqui passam as medidas políticas nem sempre compreensíveis, o ziguezaguear dos discursos, o deslumbramento perante as tecnologias, o estado dos serviços públicos, as escolas entregues a si mesmas, os pequenos poderes, a servidão digital, o abalo sobre o sistema educativo, a fragilidade de conceitos aparentemente modernos mas inconsistentes, a ausência de perspectivas para o que possa ser uma outra normalidade ao nível da escola, o remeter para resolver na escola questões que deveriam ser solucionadas (também) fora dela, a importância que as famílias dão à escola, etc.

À distância de quase um ano sobre os acontecimentos registados, este diário é a revisitação do que solidariamente vivemos e a prova de que, como ensaio, essa experiência foi escassamente aproveitada para melhorar o desempenho do sistema. Obra a ler - para nos revermos e não nos deixarmos abater pela inércia...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 571, 2021-03-03, p. 5.