quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pedro Narra: a intimidade das flores



Não terá sido por acaso que a jovem do poema do rei D. Dinis se dirigiu a uma árvore para saber notícias do namorado, cujo aparecimento tardava: “Ai flores, ai flores do verde pino, / se sabedes novas do meu amigo?” E as flores, sabedoras, apaziguadoras, enternecidas, responderam-lhe estar ele “são e vivo” e que seriam juntos “ante o prazo saído”, assim alimentando a paixão e dulcificando a espera. O rei poeta sabia que as flores contêm a beleza primordial e, no seu viver selvagem e bravio, espreitam o mundo de que se alimentam e espiritualizam a paisagem.

Selvagens - Estuário do Sado e Arrábida é um repositório de flores, ramo trazido pela lente de Pedro Narra, em edição de autor, livro recentemente surgido, que, em quase 90 fotografias, mostra o que vai na intimidade de mais de 40 flores que o leitor pode encontrar na paisagem arrábido-estuarina. Bastará ao caminhante um olhar atento, que esse é também um dos desafios desta obra - todos podemos ver este halo de beleza que se desprende do jardim natural, não cuidado, que ameniza a paisagem. 

O livro deixa que as flores impressionem o observador - a numeração das páginas está ausente, o texto que acompanha as fotografias está reduzido ao mínimo (designação vulgar e científica das plantas, apenas) e as flores animam sozinhas o espaço da fotografia, isoladas do seu contexto para que só elas se revelem. E os olhos vão passando pelas faces desta pequena multidão, que, desde o acanto até à “watsonia bulbillifera”, percorre o alfabeto da selecção feita.

Surpreende-se o leitor com a alegria das capuchinhas, com os recortes da flor-dos-rapazinhos, com o esplendor de artifício da cenoura-brava, com a dança do rosmaninho, com a aguarela da esteva, com o borboletear da amendoeira, com o desvendar do lírio ou com o ar de conversa das candeias; surpreende-se e fica em contemplação destas flores que se mostram num tom quase narcísico e propositado para chamar a atenção; surpreende-se e deixa-se fascinar pelo jorro de cor e de associações, numa liberdade de visão e de interpretação destas imagens que Pedro Narra escreve.

Depois do périplo por estas selvagens cheias de vida e de alegria, é obrigatória a leitura do prefácio redigido por António Bagão Félix, um testemunho de fé na descoberta e no afecto pelas flores - “Ao percorrer, suave e deliciosamente, as fotografias desta obra, melhor percebi o sentido universal do infinito mundo botânico sempre por descobrir e, não raro, injustiçado pelo ser humano.” Se para mais não servisse, cumpriria esta frase a sua missão pelo que suscita - o que este livro mostra é um olhar atento sobre o universo, um mundo que frequentemente se pisa, que sempre se expõe para que o conheçamos. É que por aqui passam também as plantas que se infiltram pelas junções das pedras da calçada ou que furam os muros dos confinamentos...

“Um hino botânico à vida”, assim classifica Bagão Félix este livro em que “as fotografias são dedicadas e delicadas, profundas e suaves, libertas e capturadas, rigorosas e multifacetadas.” Toda essa adjectivação, absolutamente presente, se compreende porque estas imagens exercem um fascínio, como se fosse amor à primeira vista, sobre quem as vê - seduzido o olhar, este álbum obriga a degustação prolongada para que se saboreie a cor, o cheiro, o movimento, a vida destas selvagens que se dispuseram numa obra de arte. Bem sabia a jovem das cantigas de amigo que falar com as flores era saber sobre o universo!...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 556, 2021-02-10, p. 5.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

De 2020 o que ficou do que passou

 

            

Do ano de 2020 todos temos a recordação amarga da pandemia e das suas consequências, que domina(ra)m a nossa emotividade, nos isola(ra)m e nos encaminha(ra)m para a fragilidade da angústia. E, no entanto, o ano de 2020 teve isso e muito mais. Uma edição especial da National Geographic foi-lhe dedicada, mostrando em cerca de 70 fotografias algo do que foi esse “ano inesquecível”.

Logo na capa, um cenário conhecido, que podia ser em qualquer hospital de Portugal, tantos têm sido os testemunhos falados e visuais do esgotamento e da dor de quem está na primeira linha contra a pandemia - mas a foto vem de outras latitudes, de Mons, na Bélgica, onde as enfermeiras Quinet e Cheroual, pela lente de Cédric Gerbehaye, num breve intervalo da sua luta, se apoiam uma à outra, na angústia da espera. De Cheroual, o desabafo: “Nunca imaginei ter uma experiência desta magnitude na minha carreira.”

O tempo de 2020 é mostrado por 58 fotógrafos em 25 países, em quatro partes - o ano “que nos pôs à prova”, “que nos isolou”, “que nos capacitou” e “que não nos roubou a esperança” -, um percurso entre o desafio, o massacre e a luta e vontade de vencer, sempre envolvendo a dose de sofrimento. Tema dominante é a pandemia nos seus efeitos (o vazio físico, práticas da “nova normalidade” - como os eventos no formato digital - e a ausência humana, aqui se incluindo duas imagens de Lisboa despovoada, captadas por Miguel Valle de Figueiredo em Abril) e nas suas lições (a solidariedade e a generosidade, a vizinhança e a amizade, a família). Mas também por aqui passam o ambiente vivido em torno da violência policial (a morte do afro-americano Floyd tem vários reflexos), as migrações em massa e os refugiados, os desastres ambientais, as eleições americanas, o policiamento e a justiça social, as exigências “maori” na Nova Zelândia, as descobertas científicas, a atenção à Natureza (de Portugal, aparece imagem devida a Hugo Marques sobre a nidificação do abutre-preto na região do Douro) ou a luta pelos sonhos (como o da jovem de Madagáscar que quer ser professora e música, apesar da dura vida que tem de enfrentar para poder ir à escola).

A selecção das imagens partiu de um banco de mais de um milhão e meio de registos que os fotógrafos da National Geographic captaram em 2020, quantidade impressionante, é verdade, sobretudo se pensarmos na afirmação de um deles, o americano David Guttenfelder - “a nossa missão é captar toda a energia, todo o caos, toda a emoção, e fornecer ao espectador a sensação de que ele está connosco no meio do turbilhão.” As emoções acompanha(ra)m estes autores que foram capazes de se sensibilizar perante a simplicidade, como foi o caso de Hannah Reyes-Morales ao captar imagens de refugiados e emigrantes na fronteira turco-síria no momento em que nas famílias se cantavam canções de embalar - “eram um pedaço de casa que podiam levar consigo, quase como um santuário portátil”, testemunha.

Os olhos do leitor perpassam por este conjunto de retratos (que não representa o “todo” de um ano, mas uma parte e um olhar sobre esse “todo”) e não podem ficar indiferentes, apesar de já se saber que era assim que o ano tinha acontecido - estas fotos vivem muito mais pela emoção do que pela carga informativa que possam ter, pois, como diz Siddartha Mitter, no ensaio “Um ano no limite”, que abre a revista, “um ano tão bruto não precisava de imagens complicadas”. 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 551, 2021-02-03, pg. 10.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Memória: Fernando Gandra (1947-2021)



Um dia, num encontro de acaso na rua, cruzei-me com o Daniel Pires e um outro amigo, que logo me foi apresentado: o Fernando Gandra. A partir daí - não sei em que ano, mas recordo-me do sítio -, falámos muitas vezes, convivemos, trocámos ideias, participámos juntos em algumas actividades, conhecemos as famílias respectivas com mútuo apreço.

Por amizade, convidou-me para, em 2008, apresentar em Setúbal o seu livro O sossego como problema (peregrinatio ad loca utopica), o que fiz com o gosto de quem descobre vasto conjunto de ideias e uma escrita que oscila entre o filosófico e o poético, na abordagem de temas sérios como a reflexão política, a cidadania.

Li os poemas do Fernando Gandra e as nossas conversas versavam sempre a actualidade, a ironia do mundo e, obviamente, a escrita, a literatura. Fui conhecendo o seu percurso - desde livreiro da “Orfeu”, em Bruxelas, com a esposa, até ao gosto de viver no seu mundo. Sempre que o convidei para uma colaboração poética, nunca se escusou - e sempre apresentou inéditos - o seu último contributo escrito, um poema sobre uma questão actual, "Great again (America)", saiu no nº 13 da Revista LASA, em Outubro.

No último ano e meio, o Fernando confrontou-se com grave problema de saúde - e vi-o assustado por causa da vontade de viver, mas também o vi com momentos de confiança num futuro. Por último, veio a pandemia. E o Fernando Gandra partiu ontem, 27, depois de internamento hospitalar de dois dias. 

Fica-me a saudade, a pena das conversas com improvisos que não voltaremos a ter e dos poemas que não voltarão a acontecer. Quero crer que foi para mais um exílio - depois daquele que teve de fazer antes do 25 de Abril. Obrigado, Fernando Gandra! 

 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

John dos Passos: entre a América, a Madeira e o Mundo


 

“Agora que cheguei à idade que ele tinha quando as escreveu, é possível que consiga ter a coragem de copiar delas o suficiente para que a sua figura sobressaia das sombras.” Olhar uma caixa de madeira, cujo interior guarda as cartas enviadas pelo pai nos seus últimos oito anos de vida, leva John dos Passos (1896-1970) a iniciar Os melhores tempos, memórias que finalizam na década de 1930, publicadas em 1966, traduzidas para português em 1968 (Editorial Íbis).

A história familiar parte da linha paterna - John Randolph dos Passos (1844-1917), abolicionista, advogado de sucesso em Nova Iorque, filho de Manuel Joaquim dos Passos, madeirense nascido em 1812, que “teve de abandonar Ponta do Sol muito à pressa, em consequência de um incidente relacionado com um crime de apunhalamento”, rumo a Baltimore, onde “trabalhou de chumeco”, passando depois para Filadélfia, aí constituindo família. Talvez a emigração do avô se devesse à fuga ao serviço militar e não ao que o neto invoca...

A primeira visita de Dos Passos à Madeira, em 1905, foi para se “restabelecer da operação a uma hérnia”. Instalado no Hotel Reids, o pequeno entregou-se “à tarefa de apanhar lagartixas para as domesticar”. Do Funchal, registou uma mistura de cheiros, entre o odor oleoso dos patins dos condutores dos transportes puxados por bois e o aroma das rosas e heliotrópios sentido nos “carros de vime em que deslizava pela íngreme calçada empedrada”.

A sua ligação à Europa intensificou-se durante a juventude e, na Grande Guerra, momento em que “a propaganda franco-britânica batia os tambores pela intervenção americana” e “odiar os alemães se tornou uma mania”, quis voluntariar-se para os serviços de ambulância na Frente, o que aconteceu em 1917, após o falecimento do pai, servindo em França e Itália. Por final da década de 1910, esteve em Lisboa - “Saí do país com uma impressão mais favorável da pintura portuguesa primitiva do que do governo republicano. Achei os políticos eloquentes e evasivos. O seu ar de benevolência ineficaz pôs-me o pêlo ao contrário.” Esta opinião poderia ser exagerada, mas Dos Passos justifica: “aos vinte e três anos, é-se intolerante”.

Em 1921, na companhia de Cummings, está de novo na Europa, numa viagem em que tentou decifrar Os Lusíadas e visitou os Açores e a Madeira. Portugal não entusiasmou Cummings: em Lisboa, “sentia repulsa pela exuberância do estilo manuelino” e disse preferir Rembrandt aos painéis de Nuno Gonçalves; em Coimbra, manifestou “uma fobia ancestral contra o catolicismo”, pois “os estudantes pareciam-lhe todos jesuítas à paisana”; no Porto, o tempo foi passado em busca de um dentista. Depois, Dos Passos viajou até ao Próximo Oriente, relato com dose substancial de aventura, que pintará também outros registos de viagem como a que fez pela Rússia.

Desde cedo, Dos Passos conviveu com os mais importantes autores, muitos dos quais, como Twain, Jiménez, Aragon, Valle Inclán, Machado ou Joyce, viria a conhecer, sendo o convívio com Cummings, Fitzgerald e Hemingway tema forte nestas memórias, aliando sempre o gosto de falar sobre eles, da sua relação com as obras lidas, do seu encarar o mundo através da arte, fosse pela escrita ou pela pintura. Importante também é o percurso ideológico, simultâneo com o seu conhecimento do mundo - a convicção contra o belicismo, a defesa de Sacco e Vanzetti, a desconfiança do regime soviético.

Em Os melhores tempos, o leitor acompanha intensamente o entusiasmo da juventude nas grandes causas assim como o percurso de uma Europa em busca da sua (re)construção.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 546, 2021-01-27, p. 9.

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

A modernidade, a Natureza, a pandemia & outras coisas...


A modernidade não só dispensou o Criador, como escravizou o mundo natural da Criação à voragem de uma economia que deixa desertos no seu rasto. A partir do século XIX, o primado tecnológico transformou-se numa infeção cultural, que contaminou todas as esferas da existência. A natureza deveria submeter-se, obedientemente, a todos os desvarios do imperativo tecnológico que perdeu a mínima consciência dos limites.” (Viriato Soromenho-Marques. “Na vertigem da desrazão”. Diário de Notícias: nº 55430, 2021-01-23)


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Açores, um arquipélago poético

 


Entre os nascimentos em Ponta Delgada dos micaelenses Gaspar Frutuoso (1522) e Inês Botelho (2004), ambos autores de poemas, passaram cinco séculos. Desse longo período foram respigados 400 poetas pelo jorgense Olegário Paz (n. 1941), amesendados sob o título Os Açores nos versos dos seus poetas (Letras Lavadas Edições, 2020), neste número incluindo 81 “açorianófilos”, os “açorianos de afeição”, recolha que teve origem na partilha semanal de poemas pelo organizador, em missivas para os amigos sob o título “Porque hoje é Sábado”, elaborado ao longo de anos. Os textos, alguns em primeira publicação, provêm maioritariamente de livros de autor e bastantes de publicações colectivas.

A diversidade das ilhas surge por várias vozes, como a do micaelense Raposo de Amaral (1897-1987) - “Em vão o mar retalha em nove cantos, / Nove açafates de verdura e flores, / As nove irmãs no solo e nos encantos, / As ilhas abençoadas dos Açores” - ou a de Henrique Segurado (1930-2021), um dos “açorianófilos” - “Nove ilhas de meio tamanho / Mas de temas tão diferentes, / No mapa são um desenho / No meio de dois continentes.” A ligação ao torrão natal é confessada pelo florense Pedro da Silveira (1922-2003), que, desde Lisboa, proclama: “Estou, Mãe Terra, nas tuas cidades, / nas tuas vilas mortas, / e, mais sobre oeste, / tanto que ali a Europa acaba, / na freguesia onde eu nasci.” Este afecto pelas raízes intensifica-se quando o longe marca a geografia, criando o poeta um rincão interior para o sabor colorido da origem - “Do arco-íris as cores / Quero ir lá cima roubar, / Para as ilhas dos Açores / No meu coração pintar”, escreveu a faialense Fátima Toste (n. 1941) desde Toronto. É pelo dizer da terceirense Bernardete Falcão (n. 1924) que o leitor pode entender que “o sonho do ilhéu / (...) fica suspenso / entre o mar e o céu”, num poema cruzado pelos rastos das gaivotas ou dos navios, por partidas e destinos, celebrados num verso como “Lisboa, Paris, Cidades, o Mundo!...”, um quase eco de Cesário Verde.

A vida, nas suas descobertas, dores, saberes e vivências, passa por muitos dos textos convocados. São reflexões sobre o tempo - “A hora que passa não volta mais”, do faialense Silva Peixoto (1915-2000); sobre a distância - “Veio-nos o exílio / roubar a terra / onde nascemos / e sonhamos morrer”, do terceirense Cunha Ribeiro (1957-1994); sobre o amor - “A paixão não tem limites, / Dura enquanto a vida dura, / Depois que nasce na alma / Só tem fim na sepultura”, do jorgense Gilberto Remador (1916-1993); sobre o campo - “O camponês é o órgão supremo da hierarquia da terra”, do terceirense Santos Barros (1946-1983); sobre a dor - “O coração foi picotado em mil pedaços”, da micaelense Fátima Ribeiro de Medeiros (n. 1950); sobre o ser - “Só hoje sei o ontem que fui e amanhã o que hoje serei”, do micaelense Emmanuel de Sousa (1941-2018); sobre a descoberta do mundo - “Descobrir as coisas / plo cheiro e plo tacto / é a melhor forma / de as libertar / de as percorrer”, da “açorianófila” Ana Inácio (n. 1966).

É uma longa e consistente antologia, em que cada autor fala por um só poema, num percurso pelo tempo e pelas nove ilhas, transitando por geografias e emoções, profissões e costumes, raízes e emigrações. Uma bela e diversificada viagem literária pela tessitura do arquipélago e dos sentires que o fazem!

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 541, 2021-01-20, pg. 10.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Luísa Todi: ler e ouvir a diva de Setúbal



“Há vozes fluidas como veios de água que vão abrindo sulcos no coração, logo ribeiros esguios onde apetece mergulhar os pés, depois correntes caudalosas que arrastam tudo pelo caminho. A voz daquela menina, por acaso minha irmã, provinha de uma nascente encorpada, depressa se transformava num rio que galgava margens e deixava um lastro fértil para semear emoções. ‘É um tesouro fora do comum’, dizia o empresário João Gomes Varela, contente pela aquisição... ‘um achado muito raro’, comentava Giuseppe Scolari, cravista, compositor e então maestro da orquestra, de cada vez que ela ensaiava.”

Quem assim vai contando é Isabel de Aguiar, dois anos mais velha do que a irmã, Luísa. O testemunho não existe, na verdade, pois a Isabel que isto diz é uma personagem de ficção, criada por Maria Helena Ventura para ser a narradora de Minha Irmã Luísa Todi, romance histórico em torno da biografia da diva setubalense de Setecentos (Edições Saída de Emergência, 2019), livro que, segundo a autora, mais não pretende ser do que “uns grãos de areia, para lembrar a erosão do tempo”, como afirma na dedicatória.

O leitor pode hoje mergulhar nesse romance sobre Luísa Todi (1753-1833), que só ganhará no conhecimento das circunstâncias e nas emoções. E, para recriar mais um pouco o ambiente, vale a pena ouvir o notável trabalho que é o cd As árias de Luísa Todi, devido à soprano Joana Seara e ao grupo “Os Músicos do Tejo”, editado em 2010, onde constam excertos de composições de Perez (1711-1779), Piccinni (1728-1800), Gassman (1729-1774), Sachinni (1731-1786), Ottani (1736-1827) e Paisiello (1740-1816). O que une estes nomes é o facto de serem contemporâneos da cantora setubalense e de ela mesma lhes ter dado voz em palcos tão diversos quanto Lisboa (1770), Porto (1772), Londres e Paris (1778), Turim (1781), Bérgamo (1791) e Nápoles (1797). O ouvinte sentirá, assim, um pouco do que seria a magia que Luísa Todi derramava naquela conjugação de canto e de representação que arrastou multidões (em 1794, ao despedir-se do público madrileno, com a lotação do Teatro de Los Caños esgotada, as portas tiveram de ser abertas porque o público que estava fora do Teatro exigiu ouvir a celebridade). 

 

Entre o êxito e o sofrimento

Nascida em 9 de Janeiro de 1753, na Rua de Coina (actual Rua da Brasileira), em Setúbal, Luísa Rosa de Aguiar foi baptizada em 30 desse mês na paróquia da Anunciada e, ainda criança, foi viver para Lisboa com a família, participando aos 15 anos numa representação de Molière, no Bairro Alto, embora a sua estreia como cantora tenha ocorrido em 1770 (um ano depois de ter casado com o violinista Francesco Todi) na ópera Il Viaggiattore Ridicolo, de Scolari, em que actuavam também as suas irmãs Cecília e Isabel. O seu fulgurante trajecto a partir de 1775 levou-a a uma carreira internacional, com actuações nos mais cotados palcos - além dos já indicados, em Berlim, Turim, Varsóvia, Veneza, Viena, Sampetersburgo e Madrid, entre outros - e convivência com as cortes europeias, chegando a ser mestre de música das princesas da Rússia por iniciativa de Catarina II.

A vida longa de Luísa Todi, se teve um considerável período de glória, teve também não menos longo tempo de intenso sofrimento. Com a entrada do novo século, a cantora enviuvou (1803) e, vivendo no Porto, ao fugir da invasão napoleónica de 1809, na travessia do Douro, perdeu todos os bens de valor que conseguira transportar. A viver em Lisboa desde 1811, começaria a cegar em 1813, perdendo completamente a visão por 1822. Em 1833, em 1 de Outubro, desaparecia, no dizer de Mário Moreau (1926-2020), um dos seus mais brilhantes estudiosos, a “maior cantora de todo o século XVIII”. Por coincidência, o primeiro de Outubro passou, a partir de 1975, por iniciativa do International Music Council, a ser o Dia Mundial da Música...

 

Ler a vida de Luísa Todi

De 1872 é a primeira biografia sobre Luísa Todi, subscrita por José Ribeiro Guimarães, publicada com carácter de beneficência, pois o produto da venda revertia “a favor das bisnetas da cantora, filhas de Francisco Xavier Todi”. No ano seguinte, seria Joaquim de Vasconcelos a assinar Luísa Todi - Estudo crítico (reeditado em 1929), investigação que percorreu muitos dos jornais estrangeiros que se referiram à cantora. Em 1943, Mário de Sampaio Ribeiro biografava-a também, tema em que voltou a pegar quando, em 9 de Janeiro de 1957, palestrou em Setúbal a propósito do 204º aniversário da cantora. O ano de 1967 trouxe A vida fascinante de Luísa Todi pela mão de Maria Isabel Mendonça Soares, que, em 2007, voltaria a contar a vida da diva na obra 10 Grandes Portugueses. De 2002 é, talvez o mais completo estudo, Luísa Todi, assinado por Mário Moreau, assunto que já abordara em Cantores de ópera portugueses, publicado em 1981. Aquando do 250º aniversário da cantora, em 2003, Victor Luís Eleutério aumentou a bibliografia todiana com a obra Luiza Todi - A voz que vem de longe, com vasta documentação iconográfica. Em 2011, na colecção juvenil “Chamo-me”, apareceu o livro dedicado a Luísa Todi, redigido por Nuno Quintas, uma biografia contada na primeira pessoa.

* João Reis Ribeiro. In Sem Mais: nº 1110, 2021-01-15, p. 10.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sebastião da Gama e o diário de um professor feliz



Em 11 de Janeiro de 1949, na Escola Veiga Beirão, o metodólogo Virgílio Couto (1901-1972) reuniu com os seus professores estagiários durante uma hora, passando-lhes algumas das suas convicções e princípios profissionais, verdadeiros alicerces da pedagogia e da educação: as aulas deviam ser “um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente”; a partir dessa convivência, “como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando”; finalmente, “aceitar os rapazes como rapazes” e “deixá-los ser”, porque “até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé”. A concluir, uma intenção quanto aos alunos: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes.”

Um dos presentes na reunião foi Sebastião da Gama (1924-1952), que decidiu registar estes princípios no início do seu diário, nesse mesmo dia, comentando: “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Estava assim delineado um programa pedagógico bem simples, mas fundamental, que logo conquistou o jovem professor.

Ao longo de cerca de um ano, Sebastião da Gama lidou com os seus 30 alunos, nascidos entre 1933 e 1935, construindo o diário (ideia do metodólogo) como espaço e tempo de reflexão sobre a prática pedagógica, não escamoteando confidências que bem configurariam um quase diário íntimo. Por ali passam princípios que se mantêm válidos e pertinentes nos domínios da pedagogia, da didáctica da literatura, da formação de leitores, da inclusão, da formação cívica, num testemunho “em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer”.

Em 28 de Janeiro de 1950, relatava o último dia de aulas com a turma e, ao olhar para o percurso feito, lamentava ter “de deixar os moços” - “os rapazes trabalham, interessam-se, disciplinaram-se, e isto foi-se gradualmente acentuando até chegar hoje a um ponto de afinação que era o grande começo que eu ansiava.” A comoção dominou os alunos e o professor, disso dando conta o diarista.

Em 1958, este documento seria publicado sob o título de Diário (Ática), preparado por Hernâni Cidade, que fora professor de Sebastião da Gama. Contudo, a edição completa e anotada desta obra só surgiu em 2011, através da Editorial Presença (como declaração de interesses, registo que preparei esta edição). Entre 1958 e 2011, o livro teve mais doze edições - pela Ática, até à 11ª, em 1999; pelas Edições Arrábida, em 2003 e 2005. Creio ter sido Maria de Lourdes Belchior quem disse que, se esta obra tivesse a assinatura de um autor do mundo anglófono, seria de leitura quase obrigatória em todo o mundo. Contudo, a única tradução da obra que existe é de alguns excertos, em italiano - Frammenti di 'Diário' - Sebastião da Gama e la lingua portoghese, devida a Maria Antonietta Rossi (Viterbo: Sette Città, 2010).

O acesso dos leitores ao Diário do professor azeitonense fica a dever-se também a Joana Luísa da Gama (1923-2014), esposa do autor - depois do estágio, Sebastião da Gama quis oferecer o manuscrito ao metodólogo, mas Joana Luísa opôs-se e disponibilizou-se para copiar o texto, tendo sido essa cópia a ofertada. Se assim não tivesse acontecido, talvez nunca chegássemos a conhecer esta obra, cuja leitura deveria ser indispensável na formação de professores e por todos aqueles que se dedicam à educação, independentemente do grau em que lidam com ela, tal é a sua actualidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 536, 2021-01-13, pg. 14


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Memória: Luís Machado Luciano (1935-2021)


A tarde de ontem abriu com a notícia da partida do Dr. Machado Luciano, informação triste e pesada. Fica a memória de um médico querido, de uma pessoa pragmática, de um cidadão interventivo em vários planos. O nosso convívio surgiu através da LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, organização a cujos destinos presidiu, mantendo-a num nível de intervenção saudável no espaço da cidade. A sua inteligência, o seu sentido de humor (não esquecerei as mensagens através do “seu” mocho facebookiano), o seu sorriso contagiante, a sua disponibilidade e abertura, o seu pragmatismo nas decisões, a sua frontalidade na discussão (normalmente, com frases curtas, mas eficazes e certeiras), a proximidade com deferência que sempre usou - eis marcas a não esquecer de alguém com quem se aprendeu. Obrigado, Dr. Machado Luciano!


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Datas redondas para 2021, com Setúbal incluído

 

Está o ano de 2021 fadado para terminar duas décadas cuja intenção foi importante: a Década para a Segurança Rodoviária (2011-2021) e a Década das Nações Unidas sobre a Biodiversidade (2011-2021). Entretanto, organizações internacionais atribuíram a 2021 propósitos fortes: a ONU aprovou-o como Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil; a FAO denominou-o Ano Internacional das Frutas e Legumes; a Comissão Europeia baptizou-o como Ano Europeu do Transporte Ferroviário. Poderão ser apenas intenções, poderão. Mas fazem-nos pensar, desafiando para mudanças...


Quanto a datas redondas, 2021 é rico para assinalar memórias e para revisitações, pois passam...

700 anos (1321) sobre o falecimento de Dante Alighieri (em Setembro);

500 anos (1521) sobre o falecimento de Fernão de Magalhães (27 de Abril);

250 anos (1771) sobre o nascimento de Manuel Fernandes Tomás (30 de Junho);

200 anos (1821) sobre: a abolição da Inquisição em Portugal (31 de Março); a criação do primeiro banco português (Banco de Lisboa, que, em 1846, se transformaria no Banco de Portugal); o nascimento de Fiodor Dostoievski (11 de Novembro); o falecimento de Napoleão Bonaparte (5 de Maio);

150 anos (1871) sobre: as Conferências Democráticas do Casino (22 de Março a 26 de Junho); a proclamação da Comuna de Paris (18 de Março); o nascimento de Alfredo da Silva (30 de Junho); o falecimento de Júlio Dinis (12 de Setembro);

100 anos (1921) sobre: a primeira ligação aérea Lisboa-Funchal (22 de Março); o início da publicação do Diário de Lisboa (7 de Abril); a designada “Noite Sangrenta” em Lisboa (19 de Outubro); a fundação do Partido Comunista Português (6 de Março) e do Sporting Clube de Braga (19 de Janeiro); a descoberta da insulina (27 de Julho); a atribuição do Nobel da Física a Albert Einstein; a criação do PEN Internacional (5 de Outubro); o nascimento de Mario Lanza (31 de Janeiro), Mário Moniz Pereira (11 de Fevereiro), Simone Signoret (25 de Março), Peter Ustinov (16 de Abril), Vasco Gonçalves (3 de Maio), Andrei Sakharov  (21 de Maio), Filipe Duque de Edimburgo (10 de Junho), Matilde Rosa Araújo (20 de Junho), Carlos de Oliveira (10 de Agosto), Maria Judite de Carvalho (18 de Setembro), Paulo Freire (19 de Setembro), Yves Montand (13 de Outubro), George Brassens (22 de Outubro), Charles Bronson (3 de Novembro) e Jorge Listopad (26 de Novembro); o falecimento de Gomes Leal (29 de Janeiro), Ângelo de Lima (14 de Agosto) e Saint-Saens (16 de Dezembro);

60 anos (1961) sobre o início da guerra colonial;

50 anos (1971) sobre o falecimento de Louis Armstrong (6 de Julho);

30 anos (1991) sobre a publicação de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago;

25 anos (1996) sobre o falecimento de David Mourão-Ferreira.


Em Setúbal, houve também acontecimentos, importantes no contributo para a história e para a cultura nacional, cujos aniversários com datas redondas ocorrem em 2021, como:

550 anos (1471) sobre o casamento de D. João II com D. Leonor de Lencastre (22 de Janeiro), ocorrido em Setúbal;

300 anos (1721) sobre o nascimento do cientista sadino José Joaquim Soares de Barros e Vasconcelos (19 de Março);

150 anos (1871) sobre: a inauguração da estátua a Bocage, na praça que tem o seu nome (21 de Dezembro); o nascimento de Manuel Padilha (17 de Fevereiro, director de O Elmano) e de Manuel José Envia (11 de Março, director de O Sado e autor de história local);

100 anos (1921) sobre: o nascimento do professor e escritor Rogério Peres Claro (6 de Outubro); o falecimento do pintor Pereira Cão (16 de Janeiro);

70 anos (1951) sobre a publicação da obra Campo Aberto, de Sebastião da Gama;

60 anos (1961) sobre a inauguração do Museu de Setúbal (15 de Fevereiro).


Assim 2021 permita que as condições e as vontades se congreguem no conhecimento de identidades e nos encontros com valores que têm feito a história e a cultura que nos rodeiam!