domingo, 23 de dezembro de 2012

Feliz Natal (com um poema)


Natal doutros tempos

Eu sou do tempo em que se cantava ao Menino.
Em que não havia Pai Natal
e o Menino descia p’la chaminé
à meia noite em ponto.
Onde o sapatinho nos saía do pé
e a um canto se acomodava, pronto
a receber a prenda habitual.
Bombons em prata colorida
tal qual nossos olhos como estrelas brilhando
na negrura da noite, esperançando a vida.

Sou do tempo em que se prendava
filhós e azevias e rosetas
polvilhadas de açúcar e canela.
Em que se rufava a ronca
entoando louvores ao excelso e ao infinito céu.
Onde a família galhofava reinadia,
à lareira por dentro a noite fria.

Sou do tempo em que a nossa aldeia
tinha a dimensão do mundo
e o mundo se fazia de todos nós.
Em que o presépio se construía
com musgo catado pelas nossas mãos
e uma searinha feita em caco de barro
se oferecia a Jesus.

Desse tempo em que gente devota
na Missa do Galo cantava, louvando
o Menino que nasceu, símbolo do ano inteiro.

Do tempo em que só um dia era Natal.
Setúbal, Natal de 2012
José-António Chocolate


sábado, 22 de dezembro de 2012

Fragmentos 02 - Incertezas


Estou a pagar no posto de abastecimento e o indivíduo aproxima-se de mim. “Bem me parecia que conheci esta voz”, diz-me, no prazer do reencontro depois de muitos anos de desencontro.
Era PC, meu aluno de há vinte e tal anos, outros tantos de tempo sem nos vermos. “Que fazes?” E desfiou-me o rol dos seus projectos, que sempre fora um rapaz de aventura, dinâmico, imparável. Negócios, projectos empresariais, alguma sorte na vida, negócios de família. “Tenho um amigo suíço que desafiei para meu sócio. Quer saber a resposta?” Perante o meu ar de curioso, acabou a história: “Ó pá, entrar na constituição de uma empresa em Portugal? Então a gente nunca sabe o que vai ser isto!... Os impostos são uma coisa de manhã, outra à tarde e outra no dia seguinte… Quem se governa assim? Há empresa que se sustente?”
Ainda conversámos mais. Mas a tónica da conversa estava na contrariedade que se oferece aos projectos empresariais. “Sabe, professor? Dou um ano para isto… Caso não haja resultados, vou-me embora. Já estive de malas feitas para Moçambique e resisti, mas não sei por quanto tempo mais!...”

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Fragmentos 01 - A vida



O homem terminou a sua conversa ao balcão com a frase “Pois, a vida é um problema…”, sem que os outros presentes tivessem percebido a que se referia o sujeito. Ao virar costas, ainda desejou “boas festas”, assim como quem cumpre um ritual, que a época propicia. E veio dizendo “é um problema” e mais “a vida é um problema” e ainda “um grande problema”. Aproximou-se de um que estava à espera de ser atendido, sorriu-lhe e perguntou “não acha que a vida é um grande problema?” O ouvinte, surpreendido, embasbacou e sorriu. O falador prosseguiu caminho rumo à porta de saída enquanto repetia “a vida é um problema, um grande problema…”
Saiu e foi ter com a vida… ou com um grande problema!

domingo, 16 de dezembro de 2012

Para a agenda: Juan Soutullo e figurinos de teatro na Meadela



Figurinos de teatro criados por Juan Soutullo vão estar em mostra na Meadela a partir de 19 de Dezembro, um percurso de criação e de imaginação, a que surge associada a apresentação do livro de Ricardo de Saavedra sobre o artista - Juan Soutullo - Criador de Universos. A ver (e a ler).

Mario Vargas Llosa: a literatura, a cultura, a democracia, a política e a contemporaneidade


No suplemento “Ípsilon” que acompanhou o Público de 14 de Dezembro, Mario Vargas Llosa é entrevistado (páginas 14-16) a propósito do seu mais recente livro traduzido para português – A civilização do espectáculo. Por essa conversa do Nobel da Literatura peruano (2010) com António Rodrigues perpassam ideias que nos deviam abalar, abordando temas tão importantes como a cultura e a política, a democracia e a crise que nos cerca. E andam todos ligados… Deixo alguns excertos.
Literatura e civilização – «(…) A literatura cumpriu uma função nevrálgica na evolução da humanidade. É difícil prová-lo, porque a literatura opera de forma muito subjectiva na intimidade das pessoas, mas eu acho que a fantasia, a sensibilidade, o espírito crítico desenvolveram-se extraordinariamente graças às fábulas, às lendas, aos mitos e, logo, aos continuadores desses géneros que são a poesia, o romance. O mundo é mais livre, mais crítico devido ao desassossego em relação ao mundo real, atiçado por esse olhar crítico perante o mundo que é a literatura. A cultura, em geral, e a literatura, em particular, estão sempre a expor-nos às ideias da perfeição, da beleza, da coerência, de uma ordem que não existe no mundo real; nesse sentido, têm servido como o motor do progresso da civilização. Pode ser uma ideia romântica, mas não acho que seja desmerecida pela realidade. (…)»
Banalização da cultura – «(…) O valor das coisas é fixado por certos padrões culturais, estéticos, e é isso que hoje está muito ameaçado pela banalização da cultura. Há um factor que tem a ver com a educação, no sentido mais amplo da palavra – não só com o professor e a escola, também com a família, com a imprensa, com a informação que chega aos cidadãos, tudo isso marca uma certa orientação na maneira como se formam os cidadãos. E é a formação que hoje está muito estragada pela decadência de uma cultura que procura apenas entreter, divertir, muito mais do que preocupar, formar. Uma cultura que responde pela existência hoje de uma prática de avestruz: não ver, não entender. (…)»
Tempo das crises – «(…) São as ideias que fazem funcionar uma sociedade e que estão por trás das instituições, incluindo as instituições económicas. Acho que esta crise terrível, cívica, moral, por trás da grande crise financeira e económica que vive o Ocidente deriva, em parte, da crise da cultura. (…)»
Cultura e democracia – «(…) Por que razão a democracia se deteriorou tanto? Porque não há fé, não há confiança nas instituições democráticas; há um grande desprezo pela política, por se acreditar que é corrupta, medíocre. Ora, isso não é um problema social, é um problema cultural. A cultura não é só a arte, a literatura, a cultura é a vida inteira de uma sociedade – não está apenas na espuma, mas nas raízes da problemática social. (…)»

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Paulo Castilho, o património, a língua portuguesa, o inglês e o francês

O JL de hoje (Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1101, 12.Dez.2012) , na sua habitual rubrica "Diário", deixa que Paulo Castilho, escritor e diplomata, nos revele alguns dos fragmentos dos seus dias, em registos ocorridos entre 20 de Outubro e 28 de Novembro. Desse diário se retiram as observações que seguem, retrato sentido e verdadeiro da cultura que vamos perdendo e da cultura que nos vai colonizando... Ou a questão linguístico-cultural no centro da discussão, no mesmo momento em que outros dizem que a língua portuguesa significa quase 20 por cento do PIB! Sinais dos tempos, em que tudo se substitui por valores, mais-valias, investimentos, economias, rendimentos... Eis, então, uma mostra das reflexões de Paulo Castilho:

«O património cultural do nosso país, que nasceu há quase 900 anos, está em grande medida votado ao esquecimento e ao desinteresse generalizado, sobretudo quando se trata de literatura. (...) Namora, alguém o lê? Tirando o Eça, alguém lê os escritores do passado? E o Pessoa está transformado em 'celebrity', uma espécie de Paris Hilton das letras lusas, famoso, festejado, mas pouco lido. Quanto à língua,, vivemos na regra do desleixo e do vale tudo - incluindo o acordo ortográfico, que entre muitas outras calamidades, faz tábua rasa da origem latina da nossa língua. Mais um fenómeno de aculturação. É irónico que tenhamos agora de ir a outras línguas, como por exemplo o inglês, que é essencialmente germânico, para encontrar muitas das raízes latinas que deitámos fora nas nossas palavras. (...)
É uma pena que actualmente em Portugal se despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor, em muitas áreas superior ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenha um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto nos encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. (...)»

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Ainda sobre o feriado do 1º de Dezembro

Ontem, não pude aceder ao blogue. O feriado do 1º de Dezembro, o último feriado do 1º de Dezembro (quem sabe?) passou sob o signo das incertezas. Repito o que escrevi aquando do feriado do 5 de Outubro deste ano:
«Um poder que omite, suprime ou suspende o feriado que assinala a fundação do seu regime político (quando poderia ter optado por outros feriados) ou um poder que omite, suprime ou suspende o feriado que assinala a início da independência do país e do povo que governa (quando poderia ter optado por outros feriados) respeita os fundamentos histórico-culturais do país que dirige?»
Acabar, suprimir, omitir (ou o que quer que seja nesta luta pelo esquecimento) o mais antigo feriado português, símbolo da nossa independência e do que nos garantiu como país, só pode ser um acto de ignorância e de falta de respeito pela nossa identidade, mesmo que ela se construa agora com pins na lapela a mostrar a bandeira de Portugal, mesmo que dela se fale a propósito da necessidade de austeridade para garantia da independência! A independência também já entrou na era da globalização, tão (outrora) desejada e apregoada por alguns políticos no seu fascínio de serem grandes e conhecidos... Tristeza, grande tristeza!, a propósito destes pontapés que vão sendo dados em marcos que contribuíram - esses sim! - para a "fundação" ou "refundação" do que somos como país!