quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Máximas em mínimas (54)

1. "Pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão."
2. "Os acontecimentos, às vezes, vão à nossa frente."
Dennis McShade. Blackpot. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, pp. 50 e 55.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Fim de ano com as estrelas

Cada qual em sua mesa, os dois idosos conversavam depois do almoço num gastar das horas a recordar. Eram tempos de juventude, de serviço militar, com recordações de idas ao quartel da Graça e de vidas em Lisboa, à mistura com observações sobre o fado e sobre o agitar da noite. Mas era, sobretudo, o prazer de recordar, à compita, para ver qual deles tinha mais e melhores lembranças, conversa revivida e partilhada com os outros frequentadores daquele restaurante em Palmela.
E o fim de ano? Onde o ia ele passar? Era a pergunta de um para o outro.
- Ah, eu vou a Setúbal, ao Largo onde era a Feira de Santiago. Sabes como se chama? Tem o nome do José Afonso... Há ali um restaurante de frango assado... Não é o Isidro. É o... é o...
O outro não sabia. Ou não se recordava. Se calhar, já estava mais para ouvir.
- Duarte dos Frangos! - disse eu, numa ajuda de memória.
- Isso, isso. O Isidro é lá em cima... Mas vou ali, porque há lá festa de fim de ano.
Silêncio por momentos.
- É que eu gosto de ar livre. E de festa ao ar livre. Vou lá... respirar aquele ar, ver a noite, ver o tempo, ver as estrelas, ver os anjos... tudo isso é que nos guia e eu gosto...
O outro ouvia. Todos ouvíamos. Não sei se o homem estava a partilhar, se estava a sonhar. De repente, parecia que ele se transformava, se soltava dali e todos o víamos a contemplar o universo, falando com as estrelas, dirigindo-se ao firmamento.
- Ah, assim é que é bom! - antegozava no seu espairecer. - É mesmo lá que eu vou, ainda que chova... Gosto muito de lá ir...

sábado, 19 de dezembro de 2009

D. Manuel Clemente, prémio "Pessoa 2009", em entrevista

O suplemento “Actual”, publicado com o Expresso de hoje, reproduz entrevista com D. Manuel Clemente, bispo do Porto a quem recentemente foi atribuído o prémio “Pessoa 2009”. Homem de fé, de cultura, de dúvidas e de ideias, aqui reproduzo cinco tópicos dessa entrevista, todos eles cruzados com debates que estão na ordem do dia.
Trabalho – “O trabalho não é algo exterior à pessoa. Não é um simples meio ou expediente de sobrevivência. A realização de uma sociedade feliz é a realização de uma sociedade com trabalho. Não tenho dúvidas nenhumas de que a infelicidade que muita gente sente na sociedade portuguesa passa muito pelas dificuldades na obtenção de trabalho.”
Portugal – “Portugal é um país crítico. Não tem nenhuma razão de auto-suficiência e, no entanto, é o país com fronteiras definidas mais antigo da Europa. Mas nunca teve possibilidade de se sustentar sozinho. As nossas crises cerealíferas da Idade Média são endémicas. Nunca teve possibilidades, até humanas, quando foi da expansão ultramarina, de garantir uma imensidão como aquela por onde se espraiou. Não tinha possibilidade, no século XVII, de garantir, só por si, a sua independência. Depois do ouro do Brasil, o país fica destroçado. Demorou 50 anos a recompor-se, quando grande parte da Europa já estava mais à frente. Mesmo no século XX, tivemos situações de pobreza muito difíceis de ultrapassar em todos os campos. Portugal, como estudo de caso, é uma coisa apaixonante, porque é um país que não tinha nenhuma razão para subsistir e subsiste. Os portugueses subsistem apesar de Portugal.”
Família e casamento – “Desde que o homem tem consciência de si próprio, com uma enorme variedade, desde as grandes famílias de clãs até à família nuclear dos nossos dias, desde as famílias poligâmicas até às monogâmicas, há sempre um ou dois factores comuns: homem e mulher. A complementaridade masculino e feminino, bem como a possibilidade e a previsão da geração e da educação da prole. As sociedades depois constituídas como Estado reconheceram a família como factor básico de sociabilidade, de educação, de geração… Outras realidades que as pessoas livremente queiram ter e que até possam ser institucionalizadas terão outro nome, porque são realmente diferentes. Outra coisa é outra coisa.”
Liberdade – “Adiro e integro-me na sociedade liberal contemporânea que desde o final do século XVIII se tem sedimentado entre nós e que se conjuga em termos de liberdade. Isto é, da disponibilidade de cada um em levar a sua vida por diante de acordo com o seu próprio projecto. Mas não extravaso para a deriva libertária a que temos assistido desde a última guerra mundial, em que basta eu desejar para isso ser a razão suficiente para avançar, independentemente do que os outros pensam ou do que as instituições me peçam.”
Mistério – “Gostaria de perceber a relação da religião, e concretamente do cristianismo, com dois sentimentos básicos e dificilmente conjugáveis, na Humanidade e na Igreja, que são a segurança e a liberdade.”

Máximas em mínimas (53)

Ser e parecer
"O facto de um homem olhar para o céu à noite não faz dele um astrónomo." (ensinou Pavel a Bruno)
John Boyne. O rapaz do pijama às riscas. 4ª ed. Alfragide: Edições ASA, 2009, pg. 73.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Mariana Angélica de Andrade, "a poetisa do Sado"

O que seria de uma literatura se não houvesse os epígonos? Melhor: o que seria de uma época literária se os mesmos epígonos não existissem? Bem a gente pode lembrar o período romântico com Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, nomes de destaque e fundamentais para a época, nomes máximos do romantismo em Portugal. E os outros? Os que não constam em parangonas nas histórias das literaturas, os que publicaram apenas um livro ou mesmo só em periódicos, mas absorvendo, cimentando ou revelando as marcas da época?
A questão não constitui novidade, claro, e só a trouxe para aqui porque, frequentemente, a gente se vai esquecendo desses outros que ajudaram a fazer as épocas mas que não tiveram o nome lembrado. E Setúbal pôde, recentemente, assistir a um desses casos, quando Anita Vilar veio relembrar o nome de Maria Angélica de Andrade, conhecida como a “poetisa do Sado”, mulher do século XIX (1840-1882) que foi casada com Cândido de Figueiredo e em Setúbal viveu durante três décadas, a partir dos 4 anos.
Há uma semana, foi apresentado o livro Mariana Angélica de Andrade – A poetisa do Sado (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2009), obra antológica organizada por Anita Vilar, que também escreveu uma nota introdutória para o volume. Por esta antologia passam 25 poemas de Mariana Angélica de Andrade, ora extraídos dos seus livros Murmúrios do Sado (1870) ou Revérberos do poente (póstumo, de 1883), ora colhidos da imprensa sadina da época, em títulos como Grinalda literária ou em Gazeta setubalense, perseguindo linhas temáticas como a melancolia, a natureza, a morte, a noite, o pendor individualista, os estados de alma, a revolta, a preocupação social, a liberdade, com imagens fortes como as do naufrágio, do destino ou da afirmação da mulher. Muitos dos poemas abrem com citações que denotam alguns dos seus mestres, lembrando nomes como Bocage e Camões (sobre quem escreve poemas também), Camilo, Castilho, João de Lemos, Herculano, Bulhão Pato ou João de Deus, não faltando sequer uma “imitação de Victor Hugo”. Na nota introdutória, Anita Vilar disponibilizou elementos biográficos desta poetisa nascida em Sousel (com tábua cronológica a propósito), recolheu algumas opiniões da época sobre a autora e fez uma sumária apresentação dos poemas agora relembrados. No final do livro, há ainda indicações de bibliografia activa e passiva alusivas à autora “descoberta”.
Mariana Angélica de Andrade bem carecia desta publicação para a lembrar e talvez mesmo de trabalho mais completo, provavelmente pela publicação integral em volume dos dois títulos saídos em livro, acrescidos da recolha dos poemas que viveram nos jornais. Na apresentação do livro, Anita Vilar revelou mesmo que, estando a antologia já no prelo, descobrira mais colaboração da poetisa noutra publicação setubalense sua contemporânea, Aspirações. Foi, aliás, neste pequeno jornal que se publicava em Setúbal, que, em 19 de Janeiro de 1871, numa carta dirigida a João Matos Silva, a escritora Mariana Angélica de Andrade, no meio de conselhos a um futuro escritor, confessou o seu respeito pelo pensador “austero e profundo” que foi Herculano: “Veja Alexandre Herculano, cujo nome eu pronuncio quase com tanto respeito como Newton pronunciava o nome de Deus.”
A importância de Mariana Angélica de Andrade foi evidenciada por Jacinto do Prado Coelho, no seu Dicionário de Literatura, ao colocá-la, a par com Ana Plácido, Amélia Janny, Guiomar Torrezão e Maria Amália Vaz de Carvalho (para falar apenas de nomes femininos seus coetâneos), como uma das mulheres que, no século XIX, vai “conquistando lugar de certo relevo no jornalismo como na vida literária”. Esta antologia, possibilitada pelo trabalho de procura de Anita Vilar, veio proporcionar o conhecimento de Maria Angélica de Andrade, tornando-se num bom contributo para o estudo de um daqueles autores que, não sendo de nome obrigatório nas histórias da literatura, faz parte do grupo de nomes incontornáveis para o desenho de uma época, no caso, da época romântica, que, como todas as outras, também foi feita com os que alimentaram o espírito da época no dia-a-dia e no seu meio.
[OBS: O poema "Liberdade" foi publicado no jornal Grinalda Literária, em 10 de Junho de 1874.]

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Pérolas & farpas

Caso 1 – Medina Carreira e Novas Oportunidades – «Convidado da tertúlia 125 minutos com, que decorreu no Casino da Figueira da Foz, Medina Carreira disse ainda que a educação em Portugal “é uma miséria” e que as escolas produzem “analfabetos”. “[O programa] Novas Oportunidades é uma trafulhice de A a Z, é uma aldrabice. Eles [os alunos] não sabem nada, nada”, argumentou Medina Carreira. Para o antigo titular da pasta das Finanças a iniciativa dos Ministérios da Educação e do Trabalho e da Solidariedade Social, que visa alargar até ao 12.º ano a formação de jovens e adultos, é “uma mentira” promovida pelo Governo. “[Os alunos] fazem um papel, entregam ao professor e vão-se embora. E ao fim do ano, entregam-lhe um papel a dizer que têm o nono ano [de escolaridade]. Isto é tudo uma mentira, enquanto formos governados por mentirosos e incompetentes este país não tem solução”, acusou. As críticas de Medina Carreira estenderam-se aos estudantes que saem das escolas “e não sabem coisa nenhuma”. “O que é que vai fazer com esta cambada, de 14, 16, 20 anos que anda por aí à solta? Nada, nenhum patrão capaz vai querer esta tropa-fandanga”, frisou. Defendeu um regime educativo “exigente, onde se aprenda, porque os empresários querem gente que saiba”.»
Caso 2 – Nogueira Pinto e o circo – «A primeira audição da Comissão Parlamentar de Saúde ficou hoje marcada por uma troca de ofensas entre a deputada social-democrata Maria José Nogueira Pinto e o deputado socialista Ricardo Gonçalves, que levou o presidente a ameaçar suspender os trabalhos. A troca de insultos ocorreu quando Maria José Nogueira Pinto intervinha na comissão, onde esteve presente a ministra da Saúde e os seus dois secretários de Estado. Uma observação de Ricardo Gonçalves motivou a irritação de Maria José Nogueira Pinto, que chamou o deputado de "palhaço". "Não sabia que tinham contratado um palhaço" para a Comissão Parlamentar de Saúde, disse a deputada. Em resposta, Ricardo Gonçalves teceu comentários sobre a troca de cor política por parte de Maria José Nogueira Pinto. O presidente da comissão apelou à sensatez dos presentes, ameaçando suspender os trabalhos caso continuasse a troca de insultos. O deputado socialista justificou alegando diferentes postos de vista, ao que Maria José Nogueira Pinto respondeu: "Não devem existir em todos os parlamentos deputados como o senhor, um deputado inimputável".»

Será que vale a pena a gente acreditar que o contrário de tudo isto existe? Sim, eu sei que “é preciso acreditar”. Mas será mesmo preciso? E, já agora, acreditar em quê? Os comentários de Medina Carreira poderiam ser acertados se fossem mais equilibrados e não rondassem tanto o nível caceteiro. Por outro lado, a notícia, saída da LUSA e reproduzida no site do Público, também poderia reproduzir os comentários que Medina Carreira fez quanto aos deputados que hoje nos representam, classificados como “uns tipos” que “não podem miar” sob pena de perderem lugar no mandato seguinte (ouvi na rádio). Este lindo (!!!) retrato dos políticos que temos – e que aprovam leis – encontra eco no segundo caso, passado hoje na Comissão Parlamentar de Saúde, também relatado pela LUSA e reproduzido no mesmo site. O circo no seu melhor… E os eleitores têm de se divertir com estes números? De que serve estarmos preocupados com a indisciplina numa escola, concretizada em agressões e ofensas verbais, quando a mensagem que recebemos em casa, sem pedir e que podemos rever até à exaustão, é esta?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ondjaki, depois de uma leitura

Depois da leitura de algumas narrativas de Momentos de aqui (Lisboa: Editorial Caminho), fomos até Ynari- A menina das cinco tranças (Lisboa: Editorial Caminho, 2004), ambos de Ondjaki. Antes de lhes mostrar as ilustrações que Danuta Wojciechowska fez para este último, pedi-lhes que fizessem um desenho a propósito de um momento da história de Ynari. Eis sete propostas, de alunos de 7º ano, que partilho com gosto.
Adriana Santos e Joana Reis, Ynari, a menina das cinco tranças
Joana Simões, Quando o Homem Pequenino sai do capim
Carlota Paulino, Ynari encontra o Homem Pequenino
Beatriz Fortuna, Ynari encontra o Homem Pequenino
Joana Miranda, Ynari, o encontro
Luana Pinto, Ynari conversa com o Homem Pequenino
Catarina Barreiros, O Homem Pequenino leva Ynari à sua aldeia

sábado, 5 de dezembro de 2009

Diário da auto-estima (104)

Minaretes – O resultado referendário na Suíça a favor da proibição dos minaretes acabou por apanhar muita gente de surpresa. Afinal, os fundamentalismos vivem a Oriente, a Ocidente, no mundo islâmico como no europeu ou em qualquer outro. Educar, num mundo como este, é bem difícil, sobretudo quando estão em causa questões como a igualdade, a liberdade, a tolerância, o respeito pelo outro. De que serve falar-se disto se as decisões e as políticas apregoam outra coisa, se a sociedade se encaminha por vias como a suíça?
Insultos I – Apenas ouvi por momentos o debate da Assembleia da República numa estação de rádio. E chegou. O verbo anda muito por baixo naquele espaço e as convicções e os princípios não lhe ficarão atrás. O país assistiu ao enxovalho pelo vocabulário – “lançar lama e suspeição”, “actuação que degrada, (…) indigna, infamante” e que “não devia ter lugar”, “não saber o que é ter vergonha”, “comportamento impróprio”, recomendações a deputado do género “porte-se com juizinho”… Mas em que país estamos? Por vezes, rimo-nos de cenas de pugilato em parlamentos que vão sendo designados como “terceiromundistas”, mas o que nos separa dessas situações é pouco – naqueles, é pugilato físico; no nosso, é pugilato verbal.
Insultos II – Há dias, fui a uma escola para falar de Sebastião da Gama. Durante a sessão, destinada a várias turmas do secundário, os alunos de um grupo foram falando entre si, suscitando chamadas de atenção de alguns professores da escola e interrupções da minha apresentação. A dada altura, uma aluna desse grupo, aos berros, vira-se para um dos professores a contestar uma chamada de atenção quanto ao barulho que lhe tinha sido feita. Um pouco mais tarde, houve o toque da campainha, a assinalar o final de aula (que não o final da sessão) e a mesma aluna, com o gáudio dos que a acompanhavam, desatou a dizer que tinha de ir embora por causa do transporte e não sei que mais. Um dos professores, porque a sessão estava prestes a terminar, recomendou-lhe alguma calma e, novamente aos berros, a criatura responde: “Porquê? Vai levar-me a casa? Mas o que é isto?” e sai porta fora, perante o pasmo de quase todos e os sorrisos e algumas palmas cúmplices dos do seu grupo. A sessão acabou dali a minutos. Os professores desfizeram-se em desculpas. Um explicava-me que aquele grupo era de alunos que não queriam a escola, que só ali estavam porque houve a possibilidade de um curso profissional, que a posição habitual daqueles alunos relativamente à escola era aquela. Não estranhei e lá fui dizendo que conhecia a situação. O que me preocupa é que estes alunos poderiam ter visto o debate de que falei no parágrafo anterior (a força da agressão pela palavra e pelo falar mais alto, por exemplo) e continuariam a achar que os seus procedimentos foram os mais correctos; o que me preocupa é que, em nome do progresso e de outros valores, a escola pública vai ser, cada vez mais, o cadinho onde vão crescer grupos assim, que lá estarão obrigatoriamente até que concluam um qualquer 12º ano, originando que as condições de trabalho e de participação e aprendizagem dos outros e de todos nem sempre sejam as melhores. O que me custou foi ver que não há soluções para este tipo de atitudes, de provocação, de humilhação. Ah, esquecia-me de dizer, mas ainda vou a tempo: a cena não se passou numa escola degradada nem numa escola-problema de qualquer bairro socialmente desfavorecido, nem sequer na Margem Sul, não. E mais: apesar de poder parecer um caso isolado, resta saber se os casos isolados não serão tantos que não exijam medidas superiores para que o respeito e a educação façam parte da escola.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Rostos (138)

Escultura no pórtico (tímpano) da igreja de Bravães (Ponte da Barca)