As referências de Bocage (1765-1805) a Setúbal, onde nasceu, são escassas; no entanto, sempre ficou gravado aquele verso de despedida “Eu me ausento de ti meu pátrio Sado”, que, abrindo um soneto, se outra mensagem não contivesse, sempre atestaria o laço biográfico do poeta com Setúbal. Mas, quando eram passados 66 anos sobre a partida definitiva de Bocage, a cidade encarregou-se de o pôr a olhar eternamente o mesmo Sado de que se despedira, ao erigir-lhe uma estátua, localizada no centro cívico, com os olhos postos na paisagem que se estende até ao rio.
Batiam as duas da tarde de 21 de Dezembro de 1871 quando se iniciou a cerimónia de inauguração do monumento, figura desenhada por Pedro Carlos dos Reis (1819-1893) e talhada por Germano José de Sales (?-1902), com António Rodrigues Manito (1819-1906), presidente da Câmara de Setúbal, a intervir: “Setúbal paga no dia de hoje uma dívida que não era só nossa, era de todos os que falam a língua portuguesa (...), assinala entre os maiores dias das suas glórias este da inauguração da estátua do grande poeta seu conterrâneo.” E, valorizando o papel da memória: “Do alto daquela coluna será Bocage o incitador da civilização dos seus patrícios, o guia dos nossos progressos, e, ainda depois da trabalhosa vida, o escudo da sua terra natal.”
Documento importante para a reconstituição do ambiente vivido nesse dia é o “Auto da inauguração da estátua de Bocage na cidade de Setúbal”, publicado no Diário do Governo, em 29 de Dezembro de 1871, que transcreve também a intervenção do Marquês de Ávila e Bolama (que presidiu à cerimónia) e lista grande parte dos presentes - aí constando importantes nomes das letras portuguesas como Bulhão Pato, Pinheiro Chagas, Silva Túlio ou Feliciano de Castilho, entre outros.
Século e meio volvido sobre esse 21 de Dezembro, o catálogo O monumento a Bocage - 150 anos olhando o Sado, concebido para a exposição com o mesmo título (em curso na Galeria Municipal do 11, com curadoria de Francisca Ribeiro), constitui bom contributo para o leitor ajuizar do que tem sido a memória bocagiana, seja pela reprodução de documentos, seja pela revelação de alguns dados novos, seja pela coerência quanto ao simbolismo que o tempo tem atribuído à estátua - desde a ideia da construção e respectiva angariação de fundos (1864), passando pelo momento da inauguração (1871), detendo-se na celebração do primeiro centenário do nascimento (1905) e mostrando como até hoje o espaço tem merecido a consideração da cidade.
Interessante é ver que, em torno desta figura e deste monumento, se tem congregado e manifestado a população pelos mais diversos motivos locais assim como a política nos mais variados momentos. Não menos curioso é vermos que a celebração de Bocage teve celebração partilhada com Frei Agostinho da Cruz em 1905 - primeiro centenário do nascimento de Bocage e terceiro centenário da chegada do poeta franciscano à Arrábida.
A ideia da construção do monumento a Bocage terá partido de outro poeta, António Feliciano de Castilho (1800-1875), quando soube da colocação da lápide na casa onde se supunha ter nascido Bocage, em 1864, ideia devida ao setubalense Manuel Maria Portela (1833-1906). A conjugação destas figuras e a participação brasileira através de José Feliciano de Castilho (1810-1879) permitiram que a ideia germinasse e se concretizasse sete anos depois.
Este relevo dado a uma figura nacional como foi Bocage não escapa às tonalidades do Romantismo - independentemente do que valham os prefixos, a verdade é que temos um “pré-romântico” (Bocage) enaltecido à custa da ideia de um “ultra-romântico” (Castilho)...
Exposição a ver e catálogo a conservar, pois!
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 758, 2021-12-21, p. 3
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