terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Nos 100 anos de Joana Luísa da Gama

 


Há 100 anos, o mês de Fevereiro terminou numa quarta-feira. Nesse dia 28, em Azeitão, o casal José Rodrigues Júnior e Maria da Conceição Oliveira Rodrigues via nascer a filha que recebeu o nome Joana Luísa, por certo um momento de promessas e de risos ao futuro.

A referência que ela viria a ser, só a vida a diria. E, de facto, no trajecto longo dos 91 anos de Joana Luísa, a marca foi a da fidelidade, uma enorme fidelidade, ao seu grande amor, à poesia e aos valores que a formaram. Não fora ela e, hoje, pouco saberíamos e pouco conheceríamos sobre Sebastião da Gama, o poeta eternamente jovem que faleceu aos 27 anos. Não fora ela e a história deste amor e admiração acabaria nesse momento...

Terá sido por 1944 que Joana Luísa e Sebastião da Gama encetaram o namoro, algo que já era adivinhado vir a acontecer, tão assíduo era o convívio e tão antiga a relação de vizinhança. Isso contava Joana a uma amiga, Gabriela de Jesus da Silva, em carta de 18 de Julho desse ano (inserta no livro Estala de saudade o coração, que reúne memórias de Joana Luísa da Gama, publicado em 2013): “Eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu, enfim, que não me dará o desgosto que temia. (...) Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.”

Este compromisso confessado a Gabriela, levou-o Joana até ao fim. A partir desse 1944, ainda em tempo de guerra mundial, o namoro foi-se construindo e o casamento aconteceu em 4 de Maio de 1951, no Convento da Arrábida (terá sido o primeiro casamento que ali se celebrou), no aconchego da Serra que Sebastião cantou e conheceu como ninguém. No mesmo local decorreu a lua de mel do casal, tempo que também foi de poesia.

Contudo, o tempo de casamento seria curto - nove meses quase exactos (metade deles passados em Estremoz, onde Sebastião fora colocado como professor), pois, em 7 de Fevereiro do ano seguinte, acontecia o falecimento de Sebastião da Gama. Com facilidade se imagina a dor que assaltou Joana Luísa, a mulher que reunia uma série longa de predicados, que fora também referência e inspiração para o jovem poeta, que trocou com ele afectos feitos de poesia e de dedicação e que... teve tão curto calendário para partilhar a construção dessa vida comum!...

Na tentativa de encontrar soluções para a sua vida (que passaram por uma entrada na vida religiosa por curto período de quase três anos, pelo estudo na área da Didáctica Pré-Primária, pelo acompanhamento de crianças como educadora, pelo exercício do voluntariado, pela ligação à paróquia azeitonense), Joana Luísa assumiu a continuidade da divulgação da obra de Sebastião da Gama, gesto inigualável de altruísmo e de consciência cultural, apesar de alguma contestação da parte do pai, como confessou em entrevista publicada na revista “Tabu” (saída com o jornal Sol em 3 de Fevereiro de 2012): “Voltei com todo o material que veio de Estremoz. Trouxe tudo quanto eram papéis do Sebastião e comecei a pô-los em ordem. O meu pai resmungava: ‘Deixa esses papéis’. Eu nem sabia como é que vivia...” Foi da junção e ordenação desses “papéis” e de outros que foi obtendo, recolhidos entre os amigos de Sebastião, que se foi compondo a obra do poeta azeitonense que hoje conhecemos, publicada postumamente. Não fora este trabalho dedicado e só conheceríamos os três títulos que Sebastião deu à estampa - Serra-Mãe (de 1945), Cabo da Boa Esperança (de 1947) e Campo Aberto (de 1951). Graças a Joana Luísa, à relação que ela conseguiu manter com o grupo de amigos do casal (entre os quais constavam David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lurdes Belchior, Luís Amaro, António Manuel Couto Viana e Luís Filipe Lindley Cintra) e ao seu entendimento e proximidade com Sérgio Gama (irmão de Sebastião) e sua esposa Aurora, a divulgação da obra do poeta que amou a Arrábida tanto como amou Joana Luísa prosseguiu com a publicação de Pelo sonho é que vamos (1953), Diário (1958), Itinerário paralelo (1967), O segredo é amar (1969), Cartas (1994), Não morri porque cantei (2003), Estevas (2004) e A minha arca de Noé (2006). Não fora a persistência e o amor de Joana Luísa e estas obras póstumas nunca chegariam ao nosso conhecimento ou viriam em termos deficitários... E mais: a quantidade de testemunhos que deu em favor da memória do seu marido, a questão que fez em estar presente em todas as acções que dissessem respeito à obra do poeta, as portas que abriu a investigadores e autores que quiseram conhecer como se fez o poeta Sebastião da Gama, a opção de pôr esta divulgação como projecto de vida e como dever. Impressionante, verdadeiramente impressionante!

As vidas dos dois cruzaram-se, mesmo no calendário - ele nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro; ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. As vidas dos dois fizeram uma história de amor e de poesia. É por isso que não será excessivo dizer que a obra de Sebastião acaba por ser obra dos dois, embora em responsabilidades diferentes, mas que se completam. É por isso que a celebração do centenário de ambos vai decorrer em conjunto, entre 28 de Fevereiro de 2023 (nos 100 anos de Joana) e 10 de Abril de 2024 (nos 100 anos de Sebastião), um caminho de evocação, de aprofundamento de pluralidades de leituras e de contributo para a memória.

* João Reis Ribeiro. O Setubalense: nº 1022, 2023-02-28, pg. 5


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Joaquim Gouveia entre o sentir e a cidade



“Quem quer os meus poemas? / Quem quer as minhas palavras, / as minhas angústias os meus dilemas, / as minhas emoções as minhas fantasias / os meus cantos tão cheios e vagos / os meus desgostos as minhas alegrias” - é assim que começa um poema que tem o título do primeiro verso, a quarta entrada que surge na obra Toda a poesia é uma canção, do setubalense Joaquim Gouveia (n. 1961), conjunto de cerca de quarenta poemas (The Book Hut Editores, 2022).

O texto estende-se por quatro estrofes, sempre numa atitude interrogativa, extensões da pergunta inicial que se reproduz anaforicamente no início de cada estrofe e ocupa solitariamente a última, assim acabando por apresentar uma variedade grande de possibilidades que outra coisa não é senão a tentativa de o poeta apresentar ou justificar o que escreve. Este livro surge, então, como um baú que alberga as ansiedades, as emoções, as fantasias, os desgostos, os prazeres, os momentos de liberdade, os devaneios, os segredos, os amores, os sítios, as palavras que fazem a vida.

O conjunto organiza-se em quatro partes, a primeira sem título, as restantes a pretenderem circunstanciar as temáticas ou os momentos vividos através da poesia - “A cidade de toda a gente”, “Poemas no facebook” e “Viajante”. Pela primeira parte, passam poemas em que prevalece o “eu”, o tom lírico, os sentimentos, os instantes (olhar o mar, um café, uma viagem de eléctrico, a entrada numa livraria) e a presença do outro, ainda que não tendo voz, mas sendo o destinatário de parte dos poemas e aparecendo, por vezes, aliado numa forma de primeira pessoa do plural, como sucede em “Nos campos onde moro”, concluindo-se o poema com um convite: “E se um dia me fores visitar / leva contigo a tua alma / porque nos campos onde moro / a vida é cântico de amor, poesia em flor / numa tarde tão nossa, / tão calma.”

O grupo “Poemas no facebook” é dominado por textos em que prevalecem leituras sobre o amor, frequentemente dirigidos a uma segunda pessoa, um “tu” que se revela e, por vezes, está ausente, dando azo a que o poeta caminhe no sentido da demanda - “Voltei então só para te amar / como que afagando a solidão, / juntos partimos neste mar / repetindo a mesma canção.” A procura ou o reconhecimento são tónicas também presentes nos textos que compõem a quarta parte, consequências de calcorrear estradas pelo país, quase em viagem permanente, em que a paisagem se revela em momentos de felicidade e de interiorização - “Se ficares parto na descoberta / percorro o mapa deste país / e sigo estrada fora, porta aberta / de teus lábios que sempre quis.”

O segundo grupo, deliberadamente trazido para o final, é um conjunto de olhares sobre a cidade, em que os espaços e as memórias se aliam - Setúbal aparece como figura principal, nas suas ruas, símbolos e vivências. Por aqui, na “cidade mais linda que eu via”, se poetiza em torno de pescadores e varinas, da serra e da vista para o mar, do Sado e dos bairros, do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora do Cais, do vinho e da labuta, das figuras típicas e dos receios pelos perigos das tempestades, num misturar de sentimentos que conduzem ao engrandecimento da cidade e do que a faz. E o desvendar do segredo vai-se construindo: “Eu sei de uma cidade / onde o dia acaba na serra / onde a palavra saudade / se esvai por entre os sulcos da terra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1018, 2023-02-22, p. 10.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Rosa Ramalho: a imaginação e as mãos



“Deus Nosso Senhor fez o homem de figurado. Para melhor se ver e melhor entender. Não sêmos de forma, nem de sobras e afagados. Sêmos o Seu santíssimo figurado. Assim temos veneta e feitio. E temos ignorância. E havemos temor e destemor. E vergonha e desvergonha e sem vergonha.” Esta tentativa de definir o ser humano nas suas grandezas e nas suas limitações deve-se a Rosa Barbosa Lopes (1888-1977), minhota de Galegos de São Martinho (Barcelos), mais conhecida por Rosa Ramalho, que entrou na história da arte popular portuguesa pelas figuras em barro que imaginou e construiu.

Apesar da simplicidade da construção frásica, com marcas de oralidade locais, a riqueza dos conceitos presentes leva o leitor à reflexão. Foi assim que se sentiram os alunos da Faculdade de Belas-Artes do Porto, no final da década de 1950, quando António Quadros levou Rosa Ramalho a uma aula de Cerâmica para falar sobre a sua arte - não restou registo sonoro, mas houve estudantes que transcreveram algumas frases da barrista-bonequeira pela simplicidade e poesia que carregavam. A história vem contada no livro Rosa Ramalho - Fui eu, quem é que havia de ser?, de Rita Canas Mendes, com ilustrações de Sebastião Peixoto (Pato Lógico / Imprensa Nacional, 2022).

O percurso biográfico de Rosa Ramalho surge apoiado na riqueza humana da personagem, contextualizando as formas de viver e as épocas e valorizando a capacidade imaginativa e a tenacidade da artista, que não se deixava vencer pelas margens de risco da sua arte - material sensível e frágil, a peça de barro nem sempre sai incólume da cozedura, como aconteceu certa vez com Rosa Ramalho, que, “ao retirar do forno um soldado com espingarda, viu que este tinha o braço partido”. Como foi resolvida a situação? “Em vez de o deitar fora, pintou de vermelho a área partida e declarou: ‘Passa a ser um mutilado de guerra.’”

Esta capacidade de surpreender que assentava em Rosa Ramalho (que não sabia ler nem escrever, mas que aprendera a usar a marca “RR” nas suas peças para as autenticar) transmite-se à própria narrativa que ocupa este livro - começando por interrogar sobre os bonecos fantasiados da bonequeira, capta de imediato a atenção ao lançar o desafio que tudo pode permitir em termos de imaginação: “A vida e a obra de Rosa Ramalho estão envoltas em mistério logo desde o início.” Está preso o leitor, que se vai armar de perscrutador desse “mistério”. E, no final, parece que tudo surge desvendado, ainda que com o seu ingrediente de poesia - “O que houve de tão extraordinário em Rosa Ramalho foi ela ter sido sempre ela própria. Rosa foi Rosa. Quem mais havia de ser, afinal?”

O sentido poético advindo das figuras que criou - animais incomuns, cenas do trabalho rural, figuras excêntricas, formas humanas, representações de Cristo e figuras de santos, vivências locais, em peças inicialmente a cores e, depois, usando o vidrado cor de mel - é indissociável de uma visão prática e do sentido de autoria e de criadora: quando, em Julho de 1956, estava numa feira próxima do Porto a vender as suas peças, um jovem (que depois veio a saber-se ser António Quadros) pôs-se a admirar o produto e, “olhando para um lagarto, apontou para o dito e perguntou: ‘Quem fez esta peça?’ ao que Rosa respondeu prontamente: ‘Fui eu, quem é que havia de ser?’ A isto seguiu-se nova pergunta: ‘E como é que o fez?’ vindo logo a resposta: ‘Com as mãos, como é que havia de ser?’”

Um texto que se lê com agrado, intensamente ilustrado, que mantém a elevação da personagem e o seu ar de mistério até ao final, pessoa de afecto à sua criação - “afeiçoei-me aos meus bonecos como aos meus netos. Por isso é que os continuo a fazer...” ou “os bonecos que mais gosto? Olhe, gosto mais de todos que são meus...” foram frases que os estudantes do Porto ouviram de Rosa Ramalho e que, na sua vida, terão sido a caução da continuidade, já que a neta Júlia e o bisneto António seguiram o caminho por ela iniciado.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1014, 2023-02-15, p. 5.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Livros amordaçados (2)


Poemas de Egito Gonçalves, in A Viagem com o teu Rosto - proibido em 1959

Em 1970, no sexto volume de Páginas, Ruben A. (1920-1975) confessava: “O que sinto mais terrível de tudo é o eu próprio fazer a primeira censura, quando escrevo já estou a fazer-me censuras, a ver se passa, equilibrar a prosa, falar nas entrelinhas, mentir. Esta censura mental, esta rede que coloco no pensamento é que é o verdadeiro drama.” Um quarto de século antes, ao Diário de Lisboa (17 de Novembro de 1945), Ferreira de Castro (1898-1974) dava longa entrevista sobre o tema da censura, puxada para a primeira página sob o título “O momento político: ‘O mal não está apenas no que a Censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir’ - diz-nos o escritor Ferreira de Castro”.

Ambos os escritores estavam a referir-se à mesma coisa - a auto-censura e o papel que os serviços de censura desempenhavam na criação artística. E Ferreira de Castro ia mais longe, ao afirmar: “O que se tem estado a fazer em Portugal é desfalcar o futuro do legado espiritual que lhe podíamos deixar. (...) Os livros nacionais publicados na última década estão, geralmente, deformados pelos seu próprios autores, receosos da censura.”

Ao percorrermos as justificações para interdição ou recomendações de alteração reproduzidas em Obras proibidas e censuradas no Estado Novo, não restam dúvidas sobre a forma como esta influência se exercia. Joaquim Lagoeiro (1918-2011) viu a decisão final para o romance Os Fraldas, em despacho de Junho de 1950 - “autorizado com cortes”, baseado no parecer que argumentava ser o livro “profundamente mau”, questionando se o autor “poderá refundir o livro, de modo a fazer desaparecer a feição comunista que actualmente apresenta” e admitindo: “atendendo  às condições presentes, julgo que será de autorizar com os cortes que fiz a azul.” De igual modo, a obra Romances do mar, de Bernardo Santareno (1920-1980), impressa em 1955, repositório de “versos maus, doentios, irreligiosos, associais e imorais, numa palavra, deseducativos”, levou o director a despachar: “Poderá ser publicado, desde que seja suprimida a poesia ‘Romance do Pescador Velho’”.

Não havendo dúvidas sobre o papel que a  censura queria exercer sobre a consciência dos escritores, também perpassa, em situações variadas, uma sensação de hipocrisia por parte dos decisores, sobretudo relacionada com as inconveniências que pudessem resultar das interdições, como foi o caso da obra Bichos, de Miguel Torga (1907-1995), que, em 1951, teve o seguinte despacho: “Este livro (...), embora inconveniente, não foi autorizado nem proibido, por razões óbvias”, pois o autor é “escritor de forte poder de aceitação por leitores de deficientes recursos espirituais”, que “procura motivos sugestivos, em prol da descrença, da aversão ao dirigente ou ao afortunado, fomentando o desrespeito social.”

Caricata, pelos motivos invocados, se torna a razão da proposta de proibição da  Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, organizada em 1966 por Natália Correia (1923-1993): “não é possível admitir que seja viável a circulação deste livro em Portugal, dado o seu carácter pornográfico.  (...) Fica-nos a impressão de que esta obra pretende ser a contribuição comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização.”

É evidente que a prática da censura durante o Estado Novo quis construir normas para controlar mentalidades. Mas as consequências foram brutais - como Álvaro Seiça recorda, elas foram “físicas, materiais e psicológicas”, com escritores exilados e violentados, numa prática que permitiu mesmo que alguns fossem publicados “para não levantar ‘publicidade’ inoportuna após vários anos de circulação, sendo negadas recensões ou citações nominais em jornais”. Em suma: uma morte que pretendeu ir muito além daquilo que seria o acto de escrever, visando a limitação na criatividade, na opinião e na denúncia. No fundo, o amordaçar do livro e do pensamento, prática que este catálogo Obras proibidas e censuradas no Estado Novo pretende não se repita!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1009, 2023-02-08, pg. 10.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Livros amordaçados (1)



Em 26 de Abril de 1974, o edifício-sede dos Serviços de Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa, foi invadido e parte significativa dos haveres em arquivo foi atirada pelas janelas ou furtada. Salvaram-se, no entanto, cerca de mil e duzentos títulos, graças ao pedido que A. H. Oliveira Marques (1933-2007) fez  a um seu colaborador no sentido de ser feita a recuperação dos livros que ainda estariam naquele serviço, acervo que passou a integrar a Biblioteca Nacional.

A coincidir com a publicação da colecção “Biblioteca da Censura” (que o jornal Público tem vindo a distribuir nos dias 25, num projecto que irá até Abril de 2024), a Biblioteca Nacional de Portugal acaba de publicar o seu catálogo Obras proibidas e censuradas no Estado Novo, com estudos introdutórios de Álvaro Seiça e de José Pedro Castanheira, compreendendo a descrição dos títulos da Biblioteca dos Serviços de Censura e a lista das obras proibidas que existiam na Biblioteca Nacional e não podiam vir a público, além de excertos de relatórios dos leitores que serviam para fundamentar a autorização ou a proibição das obras.

Sobre as origens dos títulos proibidos pouco se sabe - oriundos de bibliotecas particulares ou de associações recreativas, de livrarias, de editoras, por certo, mas sem haver indicação precisa desse ponto de recolha. Livros em português ou noutras línguas, provenientes de diversos países, muitos deles proibidos, outros autorizados apenas em língua estrangeira ou porque a proibição poderia dar nas vistas - enfim, um  mundo de decisões onde parece campear a arbitrariedade ou o gosto discutível. Proibidos eram temas como a Rússia ou URSS (chegando-se ao ponto de proibir títulos como uma Histoire de la Littérature Russe, de Hofmann, ou guias linguísticos como Le Russe: Manuel de langue russe pour les français, de Potapova, ou Elementary Russian Conversation, de Kany e Kaun), a China, a sexualidade, o retrato de questões sociais delicadas, o pensamento contra a religião. Fosse como fosse, está o leitor perante aquilo que Maria Inês Cordeiro, na apresentação desta obra, escreveu: “a memória de uma biblioteca  para não ser lida, um testemunho do que é contrário à própria ideia de Biblioteca.”

As justificações para as propostas de interdição assentam sempre em argumentos que pretendem ser moralizadores - por exemplo quem leu um título como Harmonia e  desarmonia conjugais, de A. César Anjo (colecção “Saber”, 1950), opinou: “Trata-se de uma porcaria desmoralizadora e desmoralizante, encapada no disfarce dum pseudo cientismo técnico que só pode enganar primários ou muito incautos. Julgo de proibir rigorosa e urgentissimamente, por se estar a vender na Feira do Livro com toda a força, numa sementeira maléfica de  todas as horas.”

O almadense Romeu Correia (1917-1996) viu o seu livro Sábado sem sol proibido em 1947, decisão assim justificada pelo censor: “Este livro de contos é, de um modo geral bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social. (...) São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”

A hesitação da censura quanto à proibição ou não de um livro surge a propósito de um título como La peau, de Curzio Malaparte (1898-1957), proibido em 1960 com o seguinte argumento: “um livro (...) que apesar de bem escrito, o é por um comunista”. Uma década depois, outro relatório dizia para o mesmo título: “Autorizado o original e qualquer versão em língua estrangeira, mas vedada a autorização para qualquer tradução para língua portuguesa, seja qual for a sua origem.” Assim, a leitura era permitida ao grupo restrito dos que soubessem falar outra língua...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1004, 2023-02-01, pg. 9.