“Deus Nosso Senhor fez o homem de figurado. Para melhor se ver e melhor entender. Não sêmos de forma, nem de sobras e afagados. Sêmos o Seu santíssimo figurado. Assim temos veneta e feitio. E temos ignorância. E havemos temor e destemor. E vergonha e desvergonha e sem vergonha.” Esta tentativa de definir o ser humano nas suas grandezas e nas suas limitações deve-se a Rosa Barbosa Lopes (1888-1977), minhota de Galegos de São Martinho (Barcelos), mais conhecida por Rosa Ramalho, que entrou na história da arte popular portuguesa pelas figuras em barro que imaginou e construiu.
Apesar da simplicidade da construção frásica, com marcas de oralidade locais, a riqueza dos conceitos presentes leva o leitor à reflexão. Foi assim que se sentiram os alunos da Faculdade de Belas-Artes do Porto, no final da década de 1950, quando António Quadros levou Rosa Ramalho a uma aula de Cerâmica para falar sobre a sua arte - não restou registo sonoro, mas houve estudantes que transcreveram algumas frases da barrista-bonequeira pela simplicidade e poesia que carregavam. A história vem contada no livro Rosa Ramalho - Fui eu, quem é que havia de ser?, de Rita Canas Mendes, com ilustrações de Sebastião Peixoto (Pato Lógico / Imprensa Nacional, 2022).
O percurso biográfico de Rosa Ramalho surge apoiado na riqueza humana da personagem, contextualizando as formas de viver e as épocas e valorizando a capacidade imaginativa e a tenacidade da artista, que não se deixava vencer pelas margens de risco da sua arte - material sensível e frágil, a peça de barro nem sempre sai incólume da cozedura, como aconteceu certa vez com Rosa Ramalho, que, “ao retirar do forno um soldado com espingarda, viu que este tinha o braço partido”. Como foi resolvida a situação? “Em vez de o deitar fora, pintou de vermelho a área partida e declarou: ‘Passa a ser um mutilado de guerra.’”
Esta capacidade de surpreender que assentava em Rosa Ramalho (que não sabia ler nem escrever, mas que aprendera a usar a marca “RR” nas suas peças para as autenticar) transmite-se à própria narrativa que ocupa este livro - começando por interrogar sobre os bonecos fantasiados da bonequeira, capta de imediato a atenção ao lançar o desafio que tudo pode permitir em termos de imaginação: “A vida e a obra de Rosa Ramalho estão envoltas em mistério logo desde o início.” Está preso o leitor, que se vai armar de perscrutador desse “mistério”. E, no final, parece que tudo surge desvendado, ainda que com o seu ingrediente de poesia - “O que houve de tão extraordinário em Rosa Ramalho foi ela ter sido sempre ela própria. Rosa foi Rosa. Quem mais havia de ser, afinal?”
O sentido poético advindo das figuras que criou - animais incomuns, cenas do trabalho rural, figuras excêntricas, formas humanas, representações de Cristo e figuras de santos, vivências locais, em peças inicialmente a cores e, depois, usando o vidrado cor de mel - é indissociável de uma visão prática e do sentido de autoria e de criadora: quando, em Julho de 1956, estava numa feira próxima do Porto a vender as suas peças, um jovem (que depois veio a saber-se ser António Quadros) pôs-se a admirar o produto e, “olhando para um lagarto, apontou para o dito e perguntou: ‘Quem fez esta peça?’ ao que Rosa respondeu prontamente: ‘Fui eu, quem é que havia de ser?’ A isto seguiu-se nova pergunta: ‘E como é que o fez?’ vindo logo a resposta: ‘Com as mãos, como é que havia de ser?’”
Um texto que se lê com agrado, intensamente ilustrado, que mantém a elevação da personagem e o seu ar de mistério até ao final, pessoa de afecto à sua criação - “afeiçoei-me aos meus bonecos como aos meus netos. Por isso é que os continuo a fazer...” ou “os bonecos que mais gosto? Olhe, gosto mais de todos que são meus...” foram frases que os estudantes do Porto ouviram de Rosa Ramalho e que, na sua vida, terão sido a caução da continuidade, já que a neta Júlia e o bisneto António seguiram o caminho por ela iniciado.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1014, 2023-02-15, p. 5.
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