quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Joaquim Gouveia entre o sentir e a cidade



“Quem quer os meus poemas? / Quem quer as minhas palavras, / as minhas angústias os meus dilemas, / as minhas emoções as minhas fantasias / os meus cantos tão cheios e vagos / os meus desgostos as minhas alegrias” - é assim que começa um poema que tem o título do primeiro verso, a quarta entrada que surge na obra Toda a poesia é uma canção, do setubalense Joaquim Gouveia (n. 1961), conjunto de cerca de quarenta poemas (The Book Hut Editores, 2022).

O texto estende-se por quatro estrofes, sempre numa atitude interrogativa, extensões da pergunta inicial que se reproduz anaforicamente no início de cada estrofe e ocupa solitariamente a última, assim acabando por apresentar uma variedade grande de possibilidades que outra coisa não é senão a tentativa de o poeta apresentar ou justificar o que escreve. Este livro surge, então, como um baú que alberga as ansiedades, as emoções, as fantasias, os desgostos, os prazeres, os momentos de liberdade, os devaneios, os segredos, os amores, os sítios, as palavras que fazem a vida.

O conjunto organiza-se em quatro partes, a primeira sem título, as restantes a pretenderem circunstanciar as temáticas ou os momentos vividos através da poesia - “A cidade de toda a gente”, “Poemas no facebook” e “Viajante”. Pela primeira parte, passam poemas em que prevalece o “eu”, o tom lírico, os sentimentos, os instantes (olhar o mar, um café, uma viagem de eléctrico, a entrada numa livraria) e a presença do outro, ainda que não tendo voz, mas sendo o destinatário de parte dos poemas e aparecendo, por vezes, aliado numa forma de primeira pessoa do plural, como sucede em “Nos campos onde moro”, concluindo-se o poema com um convite: “E se um dia me fores visitar / leva contigo a tua alma / porque nos campos onde moro / a vida é cântico de amor, poesia em flor / numa tarde tão nossa, / tão calma.”

O grupo “Poemas no facebook” é dominado por textos em que prevalecem leituras sobre o amor, frequentemente dirigidos a uma segunda pessoa, um “tu” que se revela e, por vezes, está ausente, dando azo a que o poeta caminhe no sentido da demanda - “Voltei então só para te amar / como que afagando a solidão, / juntos partimos neste mar / repetindo a mesma canção.” A procura ou o reconhecimento são tónicas também presentes nos textos que compõem a quarta parte, consequências de calcorrear estradas pelo país, quase em viagem permanente, em que a paisagem se revela em momentos de felicidade e de interiorização - “Se ficares parto na descoberta / percorro o mapa deste país / e sigo estrada fora, porta aberta / de teus lábios que sempre quis.”

O segundo grupo, deliberadamente trazido para o final, é um conjunto de olhares sobre a cidade, em que os espaços e as memórias se aliam - Setúbal aparece como figura principal, nas suas ruas, símbolos e vivências. Por aqui, na “cidade mais linda que eu via”, se poetiza em torno de pescadores e varinas, da serra e da vista para o mar, do Sado e dos bairros, do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora do Cais, do vinho e da labuta, das figuras típicas e dos receios pelos perigos das tempestades, num misturar de sentimentos que conduzem ao engrandecimento da cidade e do que a faz. E o desvendar do segredo vai-se construindo: “Eu sei de uma cidade / onde o dia acaba na serra / onde a palavra saudade / se esvai por entre os sulcos da terra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1018, 2023-02-22, p. 10.


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